Aproveito o 18 de maio, Dia da Lua Antimanicomial, para esboçar algumas reflexões e apontamentos que podem contribuir ao debate programático na esquerda para as eleições de 2022 no que se refere ao campo da saúde mental. Historicamente, a saúde mental configurou-se como uma pauta central dos partidos de esquerda, refletindo em lutas históricas, como as protagonizadas pelo Movimento da Luta Antimanicomial em sua amplitude e diversidade, e em conquistas e avanços teórico-conceituais, técnico-assistenciais, jurídico-políticos e socioculturais às pessoas em sofrimento psíquico em nosso país – a Reforma Psiquiátrica como processo social complexo1 –, bem como na compreensão e na relação com a loucura. Contudo, tal processo não aconteceu sem suas contradições que, por sua vez, têm se intensificado no presente momento de Contrarreforma Psiquiátrica. Como apontei anteriormente, há a necessidade de uma “profunda reflexão e autocrítica dos partidos de esquerda”2, sobretudo uma esquerda que renega sua própria história e condição de “esquerda”, apoiando os mais recentes retrocessos no campo da saúde mental e se configurando como esquerda manicomial, um oxímoro em que o adjetivo se opõe e nega o substantivo.
Como pontuaram Marco Pestana e Valerio Arcary em tentativa de esboço de uma Programa de Esquerda para 20223: “Há que perder o medo. Não deveríamos regredir para uma polêmica entre programa mínimo ou programa máximo. A história já deixou lições que permitem superar os limites do possibilismo e do maximalismo. Precisamos de um programa de transição. Ousadia, ousadia, ousadia!”. Imbuído por esse espírito e intuito, e considerando a(s) árdua(s) batalhas que teremos em 2022, objetivo esboçar um programa de esquerda para o campo da saúde mental, que se oriente ao combate no presente, de caráter tático, em face da configuração atual do campo e retrocessos vividos, mas que aponte à construção do futuro, no caso uma sociedade antimanicomial, que não pode sê-la sem também não ser socialista. Elenco pontos que considero essenciais, mas que não excluem a adição de outros que, por minha falha, não abordo. Novamente, trata-se de um esboço, uma contribuição em andamento, e não um programa acabado ou uma posição coletiva e fechada da organização, com o intuito de contribuir para o debate e construções no campo, sendo, inclusive, aprimorado.
1. Pelo fim do Teto de Gastos e revogação das contrarreformas trabalhista e previdenciária
Mesmo com o desenvolvimento e implantação da Reforma Psiquiátrica a partir dos anos 1990, o campo da Saúde Mental continuou cronicamente subfinanciado, expressando nas suas particularidades o próprio subfinanciamento do SUS. Segundo estudo de Oliveira (2017)4, o auge do investimento na saúde mental foi nos anos de 2007, 2008 e 2010, com 2,7% do orçamento em saúde, sendo que conforme a Organização Mundial da Saúde5, o orçamento para o campo nos países desenvolvidos supera 5% do orçamento em saúde. Com a Emenda Constitucional 95, de 2016, conhecida como Teto de Gastos, vemos o recrudescimento ainda maior de tal subfinanciamento. O cenário e medidas de austeridade fiscal têm matado por asfixia o SUS e a saúde mental brasileira, desmontando uma série de conquistas e avanços históricos, assim como incidindo na piora da assistência prestada e, consequentemente, na saúde e saúde mental dos usuários, familiares e dos próprios trabalhadores do SUS e saúde mental. Sobre estes, soma-se a isso as contrarreformas trabalhista e da previdência, que resultam em condições ainda mais precárias de trabalho e de vida.
2. Fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS), do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e demais políticas sociais
A pandemia, mais do que nunca, escancarou a importância do SUS e do SUAS em nossa realidade. Não fossem por nossas políticas sociais e pelo árduo trabalho dos profissionais que as materializam e sustentam no cotidiano, mesmo longe das condições adequadas, teríamos um cenário ainda mais devastador. Muito se fala sobre os impactos à saúde mental da população decorrente das inúmeras perdas; muito se fala da importância do SUS (e aqui acrescentamos o SUAS e demais políticas setoriais). Contudo, há a necessidade de se sair do discurso – genérico, abstrato – em direção à defesa e fortalecimento concretos do SUS, do SUAS. Assim, mais do que nunca, impera a necessidade de fortalecimento de ambos e, neles, das políticas de saúde mental, a partir dos marcos da Luta Antimanicomial e Reforma Psiquiátrica. Até porque, quando as políticas sociais são sucateadas, temos o recrudescimento da precarização das condições da classe trabalhadora que, por sua vez, necessitam de tais políticas só que estas se encontram ainda mais fragilizadas, conformando um ciclo vicioso. E isso passa, obrigatoriamente, pelo financiamento adequado de tais políticas. Não há, portanto, possibilidade de construção de uma assistência à saúde mental em nossa realidade sem romper com as medidas de restrição orçamentária, austeridade fiscal e o saqueamento do fundo público – p. ex. as Desvinculações de Receitas da União (DRU), a Lei de Responsabilidade Fiscal, o câmbio flutuante e as metas inflacionárias que compõem o tripé macroeconômico neoliberal criado por FHC e mantido nos governos petistas. Deve-se opor aos processos cada vez mais comuns de terceirização da gestão de serviços e das políticas por Organizações Sociais (OSs) e Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), ao repasse de verbas a instituições de caráter não-governamental que incutem uma lógica mercantil ao que é direito, a saber: a saúde, o cuidado em saúde e em saúde mental. Por fim, fazemos questão de mencionar o SUAS e demais políticas sociais – e não apenas o SUS – pela própria complexidade do que é saúde mental, entendida aqui enquanto produção de vida, dizendo, então, de como estamos vivendo, se (e como) estamos comendo, se (e como) temos emprego, moradia, escola e educação etc., o que demanda todo um conjunto de políticas e medidas para a melhoria das condições de vida que, com certeza, impactarão em uma melhor saúde mental da classe trabalhadora. Políticas de pleno emprego, de combate à pobreza, de moradia, educação etc. são todas elas também políticas de saúde mental e devem ser pensadas articuladamente.
3. Revogação de todo aparato normativo, legal e político que configura a Contrarreforma Psiquiátrica no período 2016-2022
É urgente desarmar o arcabouço normativo da Contrarreforma Psiquiátrica brasileira, revogando leis, resoluções, portarias que a sustentam. Sob o risco de desconsiderarmos importantes medidas, afinal são muitas desde o golpe de 2016, mencionamos as seguintes: a) Portaria nº 3.588, de 21 de dezembro de 2017, que descaracteriza a RAPS (com a inserção, por exemplo, dos hospitais psiquiátricos, entre outros retrocessos); b) Decreto 9.761, de 11 de abril de 2019, que aprova a “nova” Política Nacional sobre Drogas; c) Lei 13.840, de 5 de junho de 2019, a “Nova Lei de Drogas, que altera a Lei 11.343, de 2006; d) Nota Técnica 3/2020-DESF/SAPS/MS que extingue o NASF; e) Portaria 1.325, de 18 de maio de 2020, que extingue o “Serviço de Avaliação e Acompanhamento de Medidas Terapêuticas Aplicáveis à Pessoa com Transtorno Mental em Conflito com a Lei”; f) Resolução 3, de 24 de julho de 2020, que regulamenta o asilamento de adolescentes em Comunidades Terapêuticas; g) Portaria 596, de 22 de março de 2022, que revoga o Programa de Volta para Casa e medidas de desinstitucionalização. Junto a essas normativas temos várias outras que reajustam (aumentam) o repasse a Hospitais Psiquiátricos, Comunidades Terapêuticas e fortalecem a importância de tais instituições, ao mesmo tempo que retiram repasse aos serviços substitutivos não-asilares de caráter territorial-manicomial, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs), Unidades de Acolhimento (UA), dentre outros, e os deslegitimam, carecendo, assim, de serem igual e urgentemente revogadas.
4. Fim dos manicômios em suas novas(-velhas) formas, como os Hospitais Psiquiátricos e as Comunidades Terapêuticas
A principal razão de ser da atual Contrarreforma Psiquiátrica é a remanicomialização ou a reinstituicionalização da lógica manicomial. Como apontamos em trabalho de crítica à economia política da Contrarreforma Psiquiátrica, esta se configura enquanto “processo de enxugamento orçamentário, remanicomialização e mercantilização, com: retorno do Hospital Psiquiátrico às políticas, centralidade das Comunidades Terapêuticas na área de álcool e outras drogas, aumento no repasse a tais instituições e reversão da tendência de fechamento de leitos psiquiátricos e investimento em ações extra-hospitalares”6. No caso dos Hospitais Psiquiátricos e Comunidades Terapêuticas, todo este processo é feito utilizando-se de uma série de recursos retóricos, que buscam dissociar tais instituições de suas próprias naturezas asilares, segregatórias e de violência – como postulou Basaglia –, colocando-as como “novas” e distanciando-as dos manicômios “velhos” que supostamente ficaram no passado. Com isso, ganham terreno e força política ao se passarem por instituições de tratamento, de cuidado. Na aparência, cumprem papeis de relevância ao cobrirem algumas das lacunas assistenciais existentes; concretamente, reforçam tais lacunas e constituem-se como as principais formas de se ampliar a lógica asilar-manicomial, colocando em xeque uma série de conquistas da Luta Antimanicomial, bem como a própria Reforma Psiquiátrica brasileira. Cabe ressaltar que tais instituições são a materialização da lógica asilar-manicomial e seu caráter violento não se resume às práticas mais extremadas de violação de direitos e violência – que também são comuns nelas –, mas pela própria lógica manicomial que as rege. Também é necessário pontuar que, no caso das Comunidades Terapêuticas, é no governo do Partido dos Trabalhadores (PT) que elas são inseridas nas políticas sociais, mais especificamente na RAPS, por meio da Portaria 3.088, de 2011. Já o Hospital Psiquiátrico foi inserido na RAPS por meio da Portaria 3.588 de 2017, aproveitando-se da própria “brecha” e do lastro manicomial deixado pelas Comunidades Terapêuticas. Por fim, tais instituições são de caráter não-governamental, privado – no caso das CTs, a maioria é vinculada a instituições religiosas – conformando um amplo e lucrativo mercado ou indústria da loucura, do asilamento de “loucos”, “drogados” e afins – que, em nossa realidade, não por acaso, são majoritariamente pobres e negros.
5. Fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS)
Tudo isso nos leva à necessidade de fortalecimento da RAPS. E fortalecer a RAPS significa potencializar seu caráter originário substitutivo ao manicômio, como uma rede de serviços dos mais variados níveis e modalidades assistenciais, com ênfase no cuidado em liberdade, de caráter territorial-comunitário. Fortalecê-la, portanto, significa, antes de tudo, livrá-la dos serviços aos quais ela surge para substituir, no caso as Comunidades Terapêuticas e Hospitais Psiquiátricos como novos(-velhos) manicômios. Também deve-se pensar para além dos CAPS, evitando certa CAPSsalização que ocorreu no desenvolvimento e implantação da Reforma Psiquiátrica brasileira, contribuindo para a minimização de outros serviços e níveis assistenciais. Isso não significa desconsiderá-los, sobretudo quando se constata que, desde 2016, há uma abrupta queda na implantação de CAPS7. Algumas das lacunas prioritárias são: fortalecimento da atenção básica; ampliação de leitos e enfermarias em saúde mental nos hospitais gerais para internação de curto e curtíssimo prazo (atenção à crise); cuidado a pessoas com problemas associados ao consumo de álcool e outras drogas, com atenção específica àqueles(as) em situação de rompimento de vínculos e pauperização, por meio das Unidades de Acolhimento enquanto serviço residencial de caráter transitório; retorno do fomento e ampliação à desinstitucionalização, com fortalecimento dos Serviços Residenciais Terapêuticas, estratégias de geração de renda, cooperativas sociais.
6. Contra o absolutismo médico-psiquiátrico e a favor de uma práxis assistencial e de cuidado transversal, transdisciplinar e de caráter comunitário
Com a Reforma Sanitária brasileira e, no seu bojo, a Reforma Psiquiátrica, enquanto pautas e fundamentos da própria Luta Antimanicomial, ganha fôlego a perspectiva de trabalho inter ou transdisciplinar: a saúde mental não se restringindo à psiquiatria, mas sendo também de várias categorias profissionais que devem trabalhar articuladamente (psicologia, enfermagem, serviço social, terapia ocupacional, fisioterapia, trabalhadores das artes etc.) e, sobretudo, daqueles(as) em sofrimento psíquico, afinal, se trata de suas próprias vidas. Em nenhum momento tal perspectiva, que condiz com a complexidade da saúde mental, desconsiderou, minimizou ou mesmo rompeu com a hegemonia da psiquiatra no campo. Contudo, um dos pilares da Contrarreforma Psiquiátrica tem sido o absolutismo médico-psiquiátrico, enquanto (re)afirmação do poder hegemônico da Psiquiatria. Cumprem papel de relevo no conjunto de retrocessos: o Conselho Federal de Medicina (CFM) e a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), com cargos de gestão nos governos Temer e Bolsonaro. Recrudesce-se com isso a psiquiatrização, a medicalização, chancelando não só a remanicomialização e mercantilização na área, mas o retorno de práticas como eletroconvulsoterapia (ECT) – também mistificada, por meio de tecnicalidades e retóricas que não rompem com sua essência violenta. Cabe, então, a crítica e superação desse modus operandi. Aliado a isso, é necessário o apoio às lutas das categorias profissionais por melhores condições de trabalho, como, por exemplo, as iniciativas que buscam garantir pisos salariais mais justos, jornada laboral de 30 horas, entre outras. Contudo, a transversalidade deve encampar não só o trabalho na saúde mental, mas também a luta. A Luta Antimanicomial em nosso país tem sua origem no Movimento de Trabalhadores da Saúde Mental: uma unidade na diversidade, em que as pautas e necessidades individuais, corporativas não se sobrepunham às necessidades coletivas contra o manicômio enquanto lógica (mortificadora e desumanizante) de vida que tem, historicamente, sua fundamentação racional-científica na psiquiatria tradicional, sendo a materialização desta.
7. Fortalecimento da Redução de Danos como fundamento, horizonte e ética do cuidado e combate ao moralismo, fundamentalismo religioso e conservadorismo na área de drogas
Um dos pontos que carecem de autocrítica no movimento antimanicomial e, sobretudo, no que se refere ao desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica brasileira, diz respeito à marginalização de álcool e outras drogas. Não à toa, as maiores brechas para a resintitucionalização manicomial na saúde mental vieram da área de álcool e outras drogas, como as medidas de internação compulsória, as Comunidades Terapêuticas, entre outras. Isso requer um olhar mais cuidado às especificidades da área sem, no entanto, tratá-la como algo em si, de maneira autocentrada. Com os recentes retrocessos, em especial a nova(-velha) Política sobre Drogas (ou antidrogas), o Decreto 9.761/2019, e a nova(-velha) Lei de Drogas (ou antidrogas), a Lei 13.840/2019, temos a construção das drogas com males em si que devem ser combatidas e expurgadas de nossa sociedade. Logo, a abstinência se põe como única forma de se relacionar com as drogas, de modo que a Redução de Danos se faz desnecessária; não faça sentido. Tanto que a Redução de Danos é suprimida na Lei e no Decreto aparece genericamente apenas duas vezes na primeira e uma vez na segunda como “redução dos riscos e danos sociais”. Contudo, assim como a Luta Antimanicomial – e atrelada a ela – a Redução de Danos no Brasil constitui não só como conjunto de ações, técnicas e procedimentos, mas, antes de tudo, um movimento social, que nasce e se desenvolve pelos trabalhadores na área, redutores de danos, militantes, consumidores de drogas e seus familiares. Como apontamos em trabalho prévio: “ao se tratar de uma inversão da lógica hegemônica na área, tomando como norte os ‘de baixo’, ao nascer de baixo para cima, por e com estes, e se voltando para eles, não serão tais políticas, formuladas e implantadas de maneira autoritária, justamente de ‘cima para baixo, que extinguirão a RD e sua importância”. Nesse sentido, é também necessário o fortalecimento da Redução de Danos, em contraponto ao recrudescimento conservador, irrealista e moralista, não apenas como um conjunto de ações e técnicas para reduzir danos e riscos associados ao consumo de drogas, mas como um outro olhar para a relação ser humano-drogas; uma forma de se compreender tal relação de maneira não estigmatizante, moralista, preconceituosa, individualizante; em suma, um olhar realista que foca no indivíduo como um ser social e não na droga em si; mais, não reduz ele à substância ou ao seu consumo, extraindo disso possibilidades de ação que vão, inclusive, para além das drogas. Por fim, o fortalecimento da Redução de Danos, inclusive, para além e fora do Estado, como movimento social a tensioná-lo.
8. Legalização das drogas e o consequente fim das políticas proibicionistas de “guerra às drogas”
Ser antimanicomial é, por coerência, ser antiproibicionista. Se se luta pelo fim da lógica asilar-manicomial, que se pauta na prisão, segregação e opressão, se é pelo fim da lógica punitiva-prisional, que cumpre a mesma função social, resguardadas as especificidades de sua dinâmica de funcionamento. Além disso, historicamente em nosso país, os aprisionados nos manicômios ou nas prisões têm classe e cor muito bem definidas: são majoritariamente pobres, negros – importante também salientar o aprisionamento de mulheres, pessoas LGBTQIA+ e todos(as) aqueles(as) que desafiam em suas próprias existências a normalidade da ordem capitalista e a ordem capitalista como normalidade. Isso tudo nos leva à necessidade de que as lutas antimanicomial e antiproibicionista se façam uma só, o que não significa a negação das especificidades de cada; novamente, fica o desafio, mas a necessidade de construção da unidade na diversidade. Temos hoje em dia na chamada “Guerra às Drogas” como modelo por excelência das políticas proibicionistas, o principal mecanismo de aprisionamento e genocídio da população negra brasileira. E sabemos muito bem que não existe guerra contra coisas, sobretudo contra mercadorias tão valiosas. Como bradou Marielle Franco: “quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”. Inclusive, a nosso ver, qualquer debate sobre a legalização das drogas em nosso país deve passar pela necessidade reparatória do Estado frente àqueles e àquelas vítimas dessa política racista e classista. Por fim, sabe-se que existem várias possibilidades de regulamentação das drogas – que é o que significa legalizá-las. Em termos de um programa de esquerda, socialista, devemos ter cuidado com o “atrelamento automático ao liberalismo econômico, onde o mercado passa ser o regulador da comercialização das drogas e indicador de acesso aos direitos sociais – como a ideia do cidadão-consumidor”8, pensando e debatendo propostas de legalização que, taticamente, se pautem em uma participação ativa e rigoroso controle do Estado sobre os níveis de produção, como, por exemplo, a estatização dos meios de produção e o controle dela e da comercialização, mas que se oriente enquanto mediação à transformação de nossa sociabilidade; a mesma que transforma as drogas em mercadorias.
9. Defesa e fortalecimento de um Movimento Antimanicomial atuante, com autonomia e independência de governos
Um programa de esquerda antimanicomial deve se orientar ao fortalecimento da Luta Antimanicomial como um todo enquanto movimento social, articulada a partidos, sindicatos outras lutas e movimentos, e não “apenas” da absorção de suas pautas e reivindicações pelo aparato estatal, por mais que isso também seja fundamental. O fortalecimento da Luta Antimanicomial implica, então, na politização do tema, suas pautas, no trabalho de base, no fomento à organização de usuários do SUS, familiares e trabalhadores, na aproximação e luta conjunta com outras organizações políticas, indo para além do aparato estatal, até porque, por mais que este seja importantes, conforme consta na Carta de Bauru, de 1987: “[o] Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada”. Nesse sentido, é premente romper com certa endogenia que tem perpassado a Luta Antimanicomial, bem como as disputas fratricidas no seio dela, buscando construir a unidade na diversidade, ao mesmo tempo que rememorando sua gênese histórica, no bojo de lutas pela reabertura democrática e contra a ditadura militar, pela anistia, do Movimento Sanitário etc. Tudo isso demonstra a trilha na qual a Luta Antimanicomial, as perspectivas de Reforma Psiquiátrica se inserem e dão continuidade, que é a luta de classes como motor da história, sendo elas próprias algumas das facetas ou fragmentos desta luta. Um movimento e luta antimanicomiais fortes devem possuir independência e autonomia frente a governos e ao Estado, ao passo que tenham força o suficiente para pautar também a sua atuação, mas sem se confundir com ele, entendendo o seu papel e potência enquanto movimento social, atrelado a outras formas organizativas e lutas do conjunto dos explorados e oprimidos.
10. Por uma Reforma Psiquiátrica antimanicomial, antirracista, antipatriarcal e anticapitalista
A partir do exposto, acreditamos ter evidenciado que um programa antimanicomial deve ser, por coerência, um programa antirracista, antipatriarcal, anticapitalista – e contra quaisquer formas de exploração e opressão. Além disso, se nos pautamos pela transformação radical da ordem, orientados à emancipação humana, ser antimanicomial é também uma obrigatoriedade. Portanto, defendemos que não há oposição ou contradição entre a Reforma (Psiquiátrica) e a Revolução, mas como a primeira pode contribuir e mediar a segunda; o fim do manicômio requer o fim da sociedade que o produz, o faz manicômio e se reproduz nele/por ele. Salientamos que nada do que aqui foi falado é novo – na própria Luta Antimanicomial. Talvez, um de nossos grandes desafios seja resgatar a radicalidade que nos conformou, sem ficarmos presos ao passado; pelo contrário, resgatarmos nossa história, analisando-a criticamente, para apreendermos o presente e construirmos o futuro: um futuro, de fato, sem manicômios, socialista. Terminamos, novamente, reproduzindo nosso Manifesto, a Carta de Bauru de 1987:
“O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. Lutar pelos direitos de cidadania dos doentes mentais significa incorporar-se à luta de todos os trabalhadores por seus direitos mínimos à saúde, justiça e melhores condições de vida. […] Por uma sociedade sem manicômios!”.
Notas
1 AMARANTE, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
2 https://esquerdaonline.com.br/2021/12/01/uma-esquerda-manicomial-apoio-as-comunidades-terapeuticas/
3 https://esquerdaonline.com.br/2021/12/16/um-programa-de-esquerda-para-2022/
4OLIVEIRA, E. F. A. Gastos da Política de Saúde Mental e os rumos da Reforma Psiquiátrica. 2017. Tese (Doutorado em Política Social) – Centro de Ciências Políticas e Econômicas, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2017.
5ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Mental Heath atlas 2017. Geneva: WHO, 2018.
6 COSTA, P. H. A.; MENDES, K. T. Contribuição à Crítica da Economia Política da Contrarreforma Psiquiátrica Brasileira. Argumentum, v. 12, p. 44-59, 2020.
7 DESINSTITUTE. Painel Saúde Mental: 20 anos da Lei 10.2016/01. Brasília: Desinstitute, 2021.
8 DALLA VECCHIA, M., RONZANI, T. M. & AZEVEDO, B. L. Os Cuidados à Saúde dos Usuários de Drogas em Perspectiva Psicossocial: Conquistas e Desafios 10 Anos após a Nova Lei de Drogas. In: ABRAPSO. Democracia, Política e Psicologia Social: Rupturas e Consolidações. Porto Alegre: ABRAPSO, 2017, p. 168-181.
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