“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.” (artigo 142, Constituição Federal, 1988)
Nos últimos 4 anos, todos nós já vimos cartazes das hostes bolsonaristas reivindicando a tal da “Intervenção militar com Bolsonaro no Poder!”. Eis aí, na epígrafe acima, a “base legal” dessa agitação fascista febril. Ou seja, uma interpretação abusiva de um artigo que, por si só, já é um cavalo de Tróia com o qual os herdeiros da Ditadura presentearam a assim chamada Nova República, que tem como certidão de nascimento a Constituição de 1988.
Um entendimento mais de fundo sobre os últimos lances do xadrez político brasileiro, particularmente a participação destacada dos militares do governo e da ativa (esses últimos representados pelo Alto Comando Militar) na campanha contra o TSE e a integridade do sistema eleitoral brasileiro; requer um recuo no tempo que vai além da conjuntura.
O artigo 142 e a tese do Poder Moderador
O período que vai de 1979 (lei da Anistia) até 1988 (promulgação da nova Constituição) marca a transição da Ditadura para Nova República. Para nós, é a derrocada do regime de exceção que durou 21 anos. Para eles, nas palavras do Ditador Geisel, foi a etapa da “transição lenta, gradual e segura” do poder político para as mãos dos civis.
Em que pese toda ampla e pujante mobilização da sociedade civil (incluindo a reorganização dos movimentos sociais que deu berço, por exemplo, ao PT, à CUT e ao MST), é incontornável reconhecer que a Lei da Anistia “perdoou” torturados e torturadores, vítimas e algozes. Bem como, apesar da multitudinária campanha pelas “Diretas já”, a emenda Dante de Oliveira – que visava reestabelecer as eleições diretas para presidente do Brasil – foi derrotada no Congresso nacional em abril de 1984. A primeira presidência civil, após 21 anos de regime militar, seria resultado de uma eleição indireta pelo Colégio eleitoral, mecanismo criado pela própria Ditadura.
Por conta do acima exposto, existe um debate bastante crítico entre historiadores e cientistas políticos que se debruçam sobre este período. Em que pese a importância qualitativa da mobilização social, muitos caracterizam ter ocorrido uma certa “captura” dessa transição pelos atores políticos do antigo regime, no caso, as Forças Armadas. No livro “Militares e a crise brasileira” (2021), o historiador Francisco Carlos Teixeira da Silva, ao tratar das contradições do período da reabertura democrática pós Ditadura, argumenta que:
“A eleição, indireta e por um colégio eleitoral nos moldes da Ditadura, de Tancredo Neves e de José Sarney, em 1985, e a tragédia subsequente, artes do destino, levando a um líder da Ditadura e seus conselheiros militares a dirigir a transição, sublinharam os limites desta” (da Silva, Francisco Carlos Teixeira in: “Os militares e a crise brasileira. 2021)
Da parte das forças Armadas, figura de destaque que cumpriu o papel de fiador na crise da posse e ao longo do governo Sarney, foi o General Leônidas Pires da Silva, à época Ministro do Exército. Ainda no âmbito político-institucional, outra garantia importante para Sarney foi a base governista no Congresso, formada por uma amorfa aliança suprapartidária que ia de antigos arenistas (egressos da Arena, partido do governo na Ditadura) até novos carreiristas profissionais. Essa base, na época já batizada de Centrão, representava na constituinte 459 dos 509 representantes, segundo aponta novamente o historiador já citado.
O artigo 142 da Constituição é um embuste que só pode ser compreendido inserido no contexto de uma transição no qual as forças conservadoras, à revelia de toda mobilização popular, ainda exerceram grande influência. Não à toa, volta e meia há todo um debate no meio jurídico sobre a interpretação desse artigo.
Em 2020, foi a secretaria-geral da mesa diretora do Congresso (sob a presidência de Rodrigo Maia) quem emitiu parecer sobre o polêmico artigo da Constituição. A motivação do parecer foi a crise entre os poderes e a ameaça bolsonarista de decretar Estado de defesa e intervir, se utilizando das Forças Armadas, supostamente para garantia da Lei e da ordem. Em outras palavras, passar por cima do Congresso, do Judiciário e dos governadores, e impor a sua vontade perante a crise da pandemia. Disse o seguinte, na época, o parecer da mesa diretora da Câmara:
“Não há qualquer fragmento normativo no texto constitucional ou em qualquer outra parte do ordenamento jurídico brasileiro a autorizar a mediação ou mesmo solução de conflitos entre os poderes da União pelas Forças Armadas.”
Crise política e politização da Caserna
Primeiramente, é bom que se diga que a política nunca abandonou as fileiras fardadas. Seria ingênuo acreditar num longo período de hibernação dos anos 80 até o golpe de 2016 e as eleições de 2018. Mesmo perante a derrocada do regime militar, os fardados não renunciaram a ideologia da tutela. Em consonância com ela, em maior ou menor grau, se manteve presente nas Forças Armadas uma visão de si como uma espécie de poder moderador, o que as eleva na prática ao mesmo nível dos poderes Executivo, legislativo e Judiciário.
A própria trajetória do ex-Capitão reformado que agora é presidente, deve ser compreendida como parte dessa continuidade do envolvimento da Caserna com a política. No caso de Bolsonaro, é ainda pior, pois revela a continuidade da atuação de oficiais ligados a chamada “linha dura” que eram contra até mesmo Geisel e a sua transição lenta, gradual e segura.
Desde os anos 90 o então deputado federal mantinha estreita relação com o Ternuma (Terrorismo Nunca Mais), grupo formado por ex-Oficiais dos serviços de inteligência da Ditadura. Entre os principais líderes do Ternuma, não por coincidência, estava o Coronel Brilhante Ustra. Outras personalidades militares do atual governo também tiveram conexões anteriores com oficiais da chamada linha dura. O General Augusto Heleno, Ministro chefe do Gabinete Institucional, era assessor do General Sylvio Frota, Ministro do exército no governo Geisel que tentou articular um golpe contra a política de reabertura.
Em resumo, tanto os que ainda vestem a farda, quanto os que as trocaram pelo terno ao passar à reserva, jamais renunciaram ao apetite pelo poder. Com o Bolsonarismo, se ofereceu a oportunidade de retomar posições, recursos e influência como há muito tempo não possuíam. O comportamento desses militares governistas com o apoio ou, no mínimo, leniência do oficialato das 3 Forças, é escandaloso. Os militares estão no governo, terão a vice-presidência na chapa por meio do General Braga Netto, e ainda assim requerem pra sí um papel de auditores no processo eleitoral no qual serão parte interessada.
Não precisamos esperar ver tanques nas ruas para começar a falar de golpe. Não é disso que se trata. O golpe, ou melhor dizendo, o Estado de golpismo permanente, já está instalado quando a própria eleição em si é colocada em questão. Os militares, alinhados com a extrema-direita bolsonarista, buscam criar as condições para se manterem vivos na cena política alimentando a crise e margeando a sociedade com a ameaça da sua perspectiva autoritária de poder.
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