Pular para o conteúdo
Colunas

A estratégia de Ciro Gomes

Apesar do episódio indesculpável da viagem para Paris em 2018, ainda desperta fascínio sobre uma parcela do povo de esquerda que admira seu estilo frontal, e guarda algum grau de crítica, pela direita, centro e até pela esquerda, ao PT. Mas cumpre um papel perigoso nestas eleições. A questão relevante, nestas eleições, é que Ciro Gomes pode ser um obstáculo para que Lula vença no primeiro turno.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Quem tudo quer nada tem
Satisfação de vaidades não recompensa virtudes.
Sabedoria popular portuguesa.

Devemos ser honestos. Ciro Gomes é uma liderança obstinada e inteligente que impressiona pelo seu grau de articulação e notáveis habilidades de polêmica. Teimoso e meio messiânico é um caudilho em busca de um destino.

Apesar do episódio indesculpável da viagem para Paris em 2018, ainda desperta fascínio sobre uma parcela do povo de esquerda que admira seu estilo frontal, e guarda algum grau de crítica, pela direita, centro e até pela esquerda, ao PT.

Mas cumpre um papel perigoso nestas eleições. A questão relevante, nestas eleições, é que Ciro Gomes pode ser um obstáculo para que Lula vença no primeiro turno.

A atração que Ciro exerce sobre uma parcela das camadas medias assalariadas de escolaridade media e alta inclinadas à esquerda é significativa. Não se explica somente pelas frustrações da experiência dos treze anos de governos Lula e Dilma Rousseff. Ciro Gomes se apresenta como terceira via defendendo um projeto desenvolvimentista inspirado na ideia de que um capitalismo regulado pela ampliação do mercado interno turbinado pela expansão de um crédito mais barato para consumo e investimento pode impulsionar crescimento com justiça social e responsabilidade fiscal. Insiste, obcessivamente, também, no perfil “mãos limpas” e tem um apelo.

Mas a estratégia de Ciro Gomes não parece ser a disputa a sério da eleição de 2022, embora nunca se deva subestimar o grau de autoengano narcisista. O cenário de um confronto entre Bolsonaro e Lula, mantidas as atuais condições, passou a ser uma hipótese irreversível, porque a exasperação política antecipou a polarização do segundo para o primeiro turno. Até as “pedras sabem” que Ciro Gomes não conseguirá sequer manter os 12% de 2018. Mesmo no Ceará está em terceiro com menos de 10%.

O objetivo realista de Ciro Gomes não pode ser senão sobreviver. Ambiciona manter posições e ocupar um lugar para o que der e vier em 2026, ou mesmo depois. Trata-se de um cálculo que repousa na avaliação de que, mesmo não sendo competitivo agora, ainda tem tempo para um futuro. Candidato de si mesmo, estranho a projetos coletivos partidários, aposta na etapa que se abrirá no período pós-Lula, e numa crise irremediável de um PT fracionado.

Derrotar Bolsonaro no primeiro turno ganhou enorme importância diante da estratégia golpista da corrente neofascista.

Derrotar Bolsonaro no primeiro turno ganhou enorme importância diante da estratégia golpista da corrente neofascista. É impossível prever as ameaças que enfrentaremos diante de um segundo turno. Mas Ciro Gomes já deixou claro que não considera que haja perigo imediato e real.

Um candidato não precisa de 50% mais um dos votos no primeiro turno para vencer. Basta que tenha mais votos que a soma de todos os outros concorrentes. Neste momento, Lula pode vencer no primeiro turno. O que teria importância decisiva, diante das sucessivas ameaças de Bolsonaro ao processo eleitoral, a constante mobilização contrarrevolucionária nas ruas, desde o 7 de setembro até o 1º de maio, e o projeto bonapartista de impor uma derrota histórica à classe trabalhadora e os aliados oprimidos.

Alguns alimentam a ideia de que Ciro Gomes se situaria “à esquerda” de Lula. Este tipo de avaliação depende da “régua”, ou seja, dos critérios. Numa avaliação marxista, portanto, orientada por critérios de classe esta opinião é indefensável. Quando consideradas opiniões circunstanciais, é algo impossível de saber, porque os dois estão em “perpétuo” movimento.

Mas, há uma diferença muito importante. Lula cumpriu um papel insubstituível na construção do PT, preservando relações orgânicas com os principais movimentos sociais, enquanto Ciro é um político profissional errático.

A luta para tirar Bolsonaro do segundo turno das eleições de 2022 deve ser um dos eixos de todas as correntes da esquerda. Quem pensa que a luta contra Bolsonaro é somente uma luta eleitoral se engana. O combate contra os neofascistas não se reduz à arena eleitoral. Imaginar que vai terminar em Outubro é uma ilusão ou desejo: pensamento mágico.

Uma presença nas pesquisas que oscila somente entre os 5%  e os 9% indica que a audiência diminuiu e sugere que o destino de Ciro Gomes já foi selado. Vai terminar menor do que já foi porque, mesmo piscando, alternadamente, à direita ao insistir na ferocidade de críticas ao PT, e à esquerda distribuindo xingamentos a Bolsonaro, não tem espaço para crescer.

A terceira via abortou com a suspeição de Moro, a divisão do PSDB e o isolamento de Doria, a fragmentação do MDB e a paralisia do União Brasil. Moro ainda era o nome de maior popularidade da oposição de direita liberal até o mês passado. Hoje é um cadáver insepulto. Sem Moro na disputa a hipótese de ocupação de um terceiro campo ao “centro”, entre Bolsonaro e Lula, deslocando uma parcela do voto das camadas médias e populares atraídos por Bolsonaro, mas que se afastaram em função do desastre da gestão da pandemia, é mais que duvidosa. Acontece que, por sua história, Ciro não pode ocupar este papel.

Isso é assim por, pelo menos, três razões profundas. Primeiro: nada é mais funcional para Ciro Gomes que insistir no “pânico” de que o país estaria diante de dois perigos extremos, o “coisa ruim” e o “coisa pior”, e ele seria o caminho do meio. Mas esse equilíbrio é insustentável, porque precisa disputar o voto antibolsonarista no primeiro turno, para poder avançar sobre o antipetista no segundo.

Ciro aprendeu a lição de 2018, e sabe que o piso do PT não é menor que 30%, e o de Lula não é menor que 40%, o dobro do piso de Bolsonaro, embora a corrente neofascista tenha o potencial de arrastar até 35%, dependendo das condições da disputa. O problema  para Ciro Gomes é que uma maioria dos votos de Lula e de Bolsonaro estão consolidados.

Ciro admite que Lula já está no segundo turno, mas argumenta que, se Bolsonaro oscilar para menos de 30%, ele poderia superar os 10% e, gradualmente, atrair os votos da direita moderada e centro-esquerda necessários para encostar e, quiçá, superá-lo. Paradoxalmente, o inverso do seu discurso de 2018, quando argumentava que Haddad era o obstáculo para derrotar Bolsonaro em um segundo turno, e somente ele poderia derrotá-lo.

Agora o discurso será que somente Ciro Gomes poderá derrotar Lula em um segundo turno. A realidade, porém, é que Bolsonaro permanece muito forte. E a candidatura de Ciro Gomes é um obstáculo para garantir o que seria uma vitória extraordinária, muito difícil, mas não impossível de Lula no primeiro turno.

Segundo, porque o lugar de disputa da candidatura Ciro Gomes é o espaço do centro, portanto, necessariamente, dialogando com a classe média contra a esquerda. Este papel é reacionário. A candidatura Lula representa, ainda que com muitas ambiguidades em função da aliança com Alckmin, o impulso da mobilização popular contra Bolsonaro, e se apoia na maioria explorada e oprimida.

Terceiro, porque defende um programa de “ajuste fiscal calibrado”, transformando uma parte das reservas cambiais em fundo de investimento, para desbloquear o mercado interno, e precisa se diferenciar de Lula acenando para a direita, porque sua campanha obedece a um cálculo: estima que uma parte da base social antipetista não foi arrastada por Bolsonaro, e as outras candidaturas da terceira via não têm repercussão social.

Não hesitará nesta disputa porque Ciro Gomes não é, aliás, nunca foi uma liderança de esquerda. Mas é bom esclarecer qual é régua que devemos usar como parâmetro de avaliação. O critério marxista para a caracterização político-social de alguém não é a certidão de nascimento. Não é irrelevante para o futuro político de quem quer que seja sua origem social. Mas ninguém escolhe em que família nasce. Seria desonesto considerar Ciro Gomes um líder burguês somente pela origem de classe.

A família de Ciro Gomes não era burguesa, somente pequenos comerciantes, ainda que com protagonismo político burguês. Mas a verdade é que não foram muitos aqueles que nasceram em famílias da classe dominante no Brasil, e romperam com sua classe de origem para defender os interesses dos trabalhadores. Embora raro, já aconteceu: Caio Prado, Leôncio Basbaum, por exemplo.

O que importa é quando na vida adulta as pessoas são chamadas a escolher a que classe social querem unir o seu destino. Marxistas não julgam dirigentes políticos somente pelo que dizem, mas pelo que fazem. Ciro Gomes não é uma liderança popular, nem sequer um representante das camadas médias.

Sua trajetória desde a juventude em 1979, quando disputou a eleição da UNE pela chapa de direita, animada por filiados da ARENA, o partido que defendia a ditadura, foi a de um político profissional da burguesia. Em 1982 concorreu pelo PDS (herdeiro da Arena) para deputado estadual, o partido do seu pai, prefeito em Sobral, interior do Ceará.

Depois, passou pelo PMDB em 1983, esteve na fundação do PSDB seguindo Tasso Jereissati, de uma das famílias mais ricas do Ceará e insuspeito de ideias socialistas, filiou-se ao PPS de Roberto Freire para ter legenda para se candidato à presidência em 1998 e 2002, do qual saiu para ir para o PSB, depois ao PROS e, finalmente, ao PDT.  Construiu, portanto, uma trajetória errática de caudilho passando por sete partidos em quarenta anos, e colaborando com os governos Itamar Franco, FHC e Lula.

Ciro Gomes está encurralado. Porque a luta política não é, somente, uma luta de ideias boas contra ideias ruins. A luta pelo poder é uma luta de representação de interesses de classe.

A ida para Paris no segundo turno de 2018 não foi um erro acidental, mas um momento culminante na carreira de Ciro Gomes. Ela simbolizou a marcação de uma equidistância entre Bolsonaro e Haddad, entre um neofascista e uma candidatura moderada de esquerda. Essa decisão pesa sobre os seus ombros de forma imperdoável. Agora Ciro Gomes está encurralado. Porque a luta política não é, somente, uma luta de ideias boas contra ideias ruins. A luta pelo poder é uma luta de representação de interesses de classe. E Ciro Gomes não conquistou a confiança dos trabalhadores, nem diminuiu a desconfiança dos capitalistas.

Ciro Gomes subestima, dramaticamente, a avaliação do papel e projeto de Bolsonaro. Bolsonaro se apresenta como um “escolhido” em luta messiânica do bem contra o mal: um “iluminado”. Não se luta contra Bolsonaro com ofensas pessoais. Isso é infantil. Só favorece a consolidação das relações de uma parte de sua base eleitoral.

A luta contra Bolsonaro é uma luta política. Não é uma luta entre pessoas boas contra pessoas más. Luta política não se faz com insultos, mas com propostas, com um programa. São as propostas concretas que podem separar Bolsonaro de uma parcela do eleitorado. Propostas como a elevação do salário mínimo, a anulação da PEC do Teto dos Gastos, a revogação da reforma trabalhista, a defesa da Amazônia, do SUS e do Fundeb, dos direitos das mulheres ao aborto livre e gratuito, contra a guerra ás drogas, o encarceramento em massa da juventude negra, o reconhecimento dos direitos LGBTQIA+, e tantas outras.

Se Ciro Gomes terminar sendo “útil” para que Bolsonaro consiga disputar um segundo turno será fatal.

Marcado como:
ciro gomes