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MUNDO

A Guerra na Ucrânia 70 dias depois: uma análise em perspectiva

Waldo Mermelstein e Gabriel Casoni
Sergei SUPINSKY / AFP / Estado de Minas

À velha ideia de que a guerra é a continuação da política por outros meios se deve unir o fato de que se sabe como ela começa, mas é difícil prever seus rumos e desenlace.

Pois a presente guerra na Ucrânia, que começou há cerca de 70 dias, está tendo um ritmo frenético e um desfecho ainda difícil de estabelecer.

A Ucrânia foi estabelecida oficialmente como nação quando de sua união com a Rússia e outras repúblicas na formação da União Soviética em 1922. No entanto, o direito de autodeterminação ucraniano já era defendido por Lenin, máximo dirigente bolchevique, anos antes. E sua existência sem opressão nacional pela maioria grão-russa foi reivindicada por Lenin em seus últimos escritos antes de morrer, no que foi conhecido como seu “último combate”.

Com a dissolução da URSS em 1991, a Ucrânia se constituiu como nação independente. Ao contrário do que dizia Putin ao justificar a invasão do país, a reivindicação dessa independência e a disposição de lutar por ela é o que explica que tenha havido uma resistência à invasão muito maior do que todas as previsões, incluindo as das potências ocidentais e da própria Rússia.

Sem termos muitas certezas, pela costumeira manipulação das informações durante as guerras, parece evidente que o plano inicial de Putin não funcionou. Nem a Ucrânia caiu como um castelo de cartas perante um poderosíssimo inimigo, nem seu exército se desfez. O apoio em armas e inteligência proporcionado pela Otan desde 2014 – e acelerado com o começo da guerra – foi um ponto fundamental para isso, mas se não houvesse um repúdio popular contra a perda de sua soberania e independência, não haveria armas que bastassem para enfrentar o poderio militar russo. As cenas da mobilização popular em tarefas de apoio aos soldados parecem indicar isso.

Um tema correlato é que os possíveis planos de Putin de conquistar o país rapidamente e colocar um títere em uma Ucrânia submissa não se realizaram. Ressalte-se também que as cenas de destruição massiva por todo o país, provocadas pelas tropas invasoras, a criação de milhões de refugiados e deslocados internos, e até os episódios trágicos de massacres (ainda com averiguação independente pendente), só fizeram aumentar a vontade de resistir, inclusive por parte das populações de origem e/ou fala russa.

Os efeitos dramáticos da guerra no mundo

Do ponto de vista da situação geopolítica mundial, podemos salientar que ocorreu uma unificação inédita nos últimos anos de todas as potências européias sob a direção dos EUA e com importantes aliados pelo mundo (Austrália, Japão e Coreia do Sul), além de um crescimento dramático de um processo que já vinha de antes – o rearmamento dessas potências e países.

Um exemplo claro foi a mudança de atitude da Alemanha. Se antes da guerra ela insistia em manter sua política de conciliação com o regime de Putin, fruto da aproximação econômica com a Rússia, da qual dependia pesadamente (e ainda depende) para o suprimento de energia, o conflito militar levou a que aderisse à política de sanções econômicas e suspendesse a certificação do gasoduto Nord Stream II desde a Rússia, chave para o abastecimento energético futuro do país.

Por outro lado, rompendo com uma política que vinha desde a II Guerra, anunciou um drástico aumento em seu orçamento militar que, se for mantido, deverá levá-la, em um certo tempo, a se constituir no maior poder militar europeu. O que, claro, não elimina as contradições oriundas da competição entre as potências europeias e os receios trazidos pela memória de anteriores programas de fortalecimento militar alemão, que desembocaram em duas guerras mundiais. Apenas as retiram do centro do debate no curto prazo. Este exemplo se estendeu a muitos países na Europa e pelo mundo. Até as pacíficas Suécia e Finlândia estão considerando seriamente pedir ainda neste mês a entrada na OTAN.

O outro aspecto, inédito pela sua aplicação a um país tão poderoso como a Rússia, foram as sanções econômicas brutais impostas ao Estado russo, que são verdadeiros atos de guerra. A revista The Economist, porta-voz tradicional da ala supostamente liberal do imperialismo, colocou em sua manchete, “Sanções como as do Ocidente à Rússia o mundo nunca viu”.

A reação de Putin, ao colocar em prontidão seu arsenal nuclear (o único que pode fazer frente a um ataque devastador americano), mostra o quão delicada é a tensão militar inter-potências. É a primeira vez desde a crise dos mísseis em 1962 que tal possibilidade tenha sido trazida à tona. Além disso, os rumores de que os russos poderiam utilizar armas nucleares táticas (de efeito supostamente inferior aos grandes cogumelos que ficaram gravados nas cenas dos testes nucleares e no horror desencadeado pelos EUA sobre Hiroshima e Nagasaki) ou químicas mostram a mudança na situação.

E as tensões não cessam de aumentar: na semana passada, a Rússia suspendeu temporariamente o envio de gás para a Polônia e a Bulgária. Somente o envio para a primeira nação foi restabelecido. Por outro lado, ao concluirmos esta nota, as notícias dão conta que a União Europeia começou a debater novas sanções econômicas contra a Rússia, que incluiriam a proibição das transações do bloco com petróleo russo, de forma gradual até o final do ano, mas não ficou claro ainda se a medida terá a unanimidade necessária para sua aprovação. A gravidade do tema não pode ser minimizada: um antecedente histórico pouco mencionado é que o ataque das forças militares do Japão sobre Pearl Harbour em dezembro de 1941 foi antecedido pelo bloqueio total americano à importação de petróleo pelo Japão em julho daquele ano. Não queremos ser alarmistas: continua existindo um mecanismo de precaução que tem um nome que evidencia seu risco: é o chamado Mecanismo de Destruição Mútua Assegurada, que evita maiores choques entre grandes potências nucleares. Há vários degraus que levam a essa escalada em direção a uma confrontação catastrófica que não foram, por enquanto, ultrapassados: a guerra cibernética, o envolvimento direto de tropas ocidentais na guerra ou uma ainda maior destruição da infraestrutura ucraniana.
No entanto, precisamos salientar, nesta rápida síntese, que, diferentemente do período da Guerra Fria, não há mecanismos estabelecidos de negociação como os acionados na crise de 1962 e também na crise anterior em Berlim. Além da imprevisibilidade, um elemento presente em todos os conflitos bélicos.

A guerra em nova fase

Uma segunda etapa da guerra começou com o anúncio em 22 de abril, pelo major-general (máxima hierarquia no exército russo) Rustam Minnekaev, de que o exército russo iria se concentrar na Donbass (Leste do país) e em parte do Sul da Ucrânia. Foi o reconhecimento de que a ideia inicial de uma grande operação que assumisse rapidamente o controle de todo o seu território tinha se mostrado inviável ou custosa demais. De lá para cá, a guerra tem se concentrado nessas regiões, mas o avanço das tropas russas continua a ser, aparentemente, igualmente lento.

E nos últimos dias, há sinais preocupantes de que a guerra continua escalando. Em primeiro lugar, pelo já mencionado processo de rearmamento mundial. O presidente Biden pediu ao Congresso americano a aprovação de uma ajuda militar e humanitária à Ucrânia no valor de 33 bilhões de dólares nos próximos anos. O que é a expressão do que os documentos da inteligência americana já estavam pedindo: a preparação para uma longa guerra na Ucrânia.

Essa intenção ficou clara ao final de abril, na reunião de mais de 40 países, na base aérea alemã de Ramstein, em que foi formado o “grupo de contato” em apoio à Ucrânia. E, fato importante, o tipo de armamentos enviados para o exército ucraniano evoluiu das chamadas armas defensivas para as ofensivas, como tanques e os misseis antiaéreos Gepard alemães, além de poderosos drones.

Os temores de que a guerra ultrapasse as fronteiras ucranianas não são extremados. Já em março, mísseis russos atingiram alvos a poucas dezenas de quilômetros da fronteira com a Polônia, país da OTAN. Recordemos que Biden várias vezes afirmou que nenhuma polegada de território de países pertencentes à organização militar poderia ser atingida sem reação.

Também merece menção a explosão de bombas na Transnístria, região separatista da vizinha República da Moldávia, onde há uma importante população de origem e/ou fala russa, a exemplo do que ocorre nas autodenominadas repúblicas populares na região da Donbass. Na mesma declaração citada antes, o general Minnekaev incluiu como um dos objetivos russos a formação de um corredor terrestre entre a anexada Crimeia e a Moldávia. As explosões poderiam servir como pretexto para estender a operação militar russa para o vizinho país.

Os dois aspectos principais da guerra

A guerra tem dois componentes centrais, a saber:

i) uma luta defensiva justa de um país independente contra a ocupação de um antigo opressor, a Rússia, uma potência regional com reconhecida presença em seu entorno e que é ressaltada em momentos de crise (como nos levantes populares no Cazaquistão e Bielorrússia nos últimos anos). Um elemento altamente negativo e limitador nessa luta é o caráter da liderança ucraniana, Zelensky, estreitamente aliado ao imperialismo americano.

ii) O conflito inter-imperialista que opõe o bloco imperialista hegemônico liderado pelos EUA à Rússia de Putin, aliada da China, principal potência emergente. Com o avanço do patrocínio militar dos países da OTAN à Ucrânia e das sanções econômicas à Rússia, a guerra dá passos no sentido de se transformar numa guerra diretamente entre potências. Vale notar que a Rússia é a segunda maior potência nuclear do mundo e a segunda maior exportadora de armas do planeta. Esse segundo aspecto expressa a extensão e ampliação para o terreno militar de uma disputa pelo controle hegemônico do mundo. Não se deve esquecer que a Rússia é aliada privilegiada da China (segunda potência econômica mundial), e que com ela estabeleceu, apenas vinte dias antes do começo da guerra, um pacto de “amizade sem limites” (como afirma textualmente a declaração conjunta russo-chinesa). Pela determinação dos impérios ocidentais em apoiar a Ucrânia, o tema da disputa entre ambos os blocos imperiais tem adquirido cada vez mais peso na evolução da guerra. Recordamos isso porque, desse ponto de vista, nenhum dos dois blocos merece qualquer apoio ou esperança por parte da classe trabalhadora e dos oprimidos do mundo, já que essa disputa é feita para ganhar espaço geopolítico e sempre se mostraram implacáveis com sua própria população trabalhadora. Em nível mundial, o papel dos EUA na América Latina, no Vietnã e em tantos outros lugares não deixa lugar a dúvidas. No caso da China, ela foi cúmplice na privatização de empresas-chave em vários países durante a onda neoliberal, como no porto do Pireu na Grécia ou nas companhias de eletricidade em Portugal. Além da repressão interna em Hong Kong e Xinjiang (contra a minoria Uigur).

Sem abordar em profundidade o tema, merece ser mencionado que a guerra acelera a crise econômica de um mundo que lentamente vem saindo da pandemia, levando a inflação para índices inéditos nas últimas décadas, aumentando qualitativamente o sofrimento das grandes massas populares. A fome, que já vinha crescendo pelo mundo desde a pandemia, tem aumentado. As últimas estatísticas falam que, só em nosso país, 19 milhões de pessoas passam fome. E a guerra também se dá em meio à aceleração dos efeitos da crise climática civilizacional e diminui ainda mais os limitados esforços em busca de uma transição energética dos combustíveis fosseis.

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