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CULTURA

Edição do programa rádio-poesia Aguaceiro descomemorou os cinquenta anos do golpe de 1964 no mês de abril e lança novo episódio completando seu primeiro ano no ar

Alexandre Vander Velden e José Rodrigues
Abaixo a ditadura
Reprodução / Memórias Reveladas

Aguaceiro

Substantivo masculino

1 chuva forte, súbita e passageira

2 Derivação: sentido figurado.

contrariedade, infelicidade inesperada, infortúnio

3 Derivação: sentido figurado.

zanga de pouca duração; arrufo.

(Dicionário Houaiss da língua portuguesa) 

Aguaceiro (@_aguaceiro) se apresenta: “programa mensal de poesia. O que é poesia? Chave para uma orientação pelas estrelas. Naveguemos!”

Criado, produzido e apresentado por Monique Lima (letrista de música, educadora e artista de rua do Rio de Janeiro) o programa de rádio mensal apresenta através de música, poesia e intervenções artísticas mensagens, reflexões e arte contra-hegemônicas. “Poesia de luta”, “plantar con un verso una verdad”, “com quantos gestos se faz um mutirão”, “mulheres”, “literaturas subterrâneas”, “Mário de Andrade”, “Semana Sonora da arte moderna”, “O que é poesia?” são alguns dos temas que permearam as 12 edições do programa.

A edição de abril desse “rádio-poesia” apresentou o tema “Cinquenta anos do golpe”. Descomemorando o golpe empresarial-militar de 1964, o programa faz-se entre poemas de luta e resistência, depoimentos de ex-militantes e “canções que ainda resistem para não deixar esquecer a luta que abriu a construção da democracia”. São fortes os depoimentos presentes no programa, como a abertura em que a presa política Eliane Rollemberg relembra a canção de Dorival Caymmi, Suite do pescador, cantada nos porões do DOPS quando alguém era levado pelos guardas e não se sabia se iria retornar: “Adeus, companheiro, não esqueça de mim, vou fazer sua caminha macia perfumada de alecrim”. Também são fortes as canções de luta e resistência apresentados, como o melhor do cancioneiro popular brasileiro engajado na voz de Geraldo Vandré em “Réquiem para Matraga” que inicia sua canção com a ressalva “Vim aqui só pra dizer, ninguém há de me calar” e a finaliza: “Você que não me entendeu, não perde por esperar”. A militante Soledad Barret, militante da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) assassinada no “Massacre da Chácara São Bento” no ano de 1973 é relembrada pela voz de sua filha em trecho do filme Utopia e Barbárie de Silvio Tendler. La Internacional, hino dos deserdados, também faz-se presente através de trecho do cinema, do filme Terra e Liberdade de Ken Loach. O teatro épico da Companhia do Latão é lembrado na canção Tonteei da peça “Os que ficam” que visita a história dos exilados durante a ditadura, como o dramaturgo Augusto Boal. O cancioneiro político latino americano é lembrado nas vozes de Mercedes Sosa, Luis Trochón. A “revolução brasileira” e seu sentimento nacional-popular na versão de María Xosé Silvar da clássica música O Grileiro gravada no LP do CPC da UNE O Povo canta, entre outras canções de luta e resistência.

Já os poemas e depoimentos ficam por conta da participação das mais importantes e representativas como a do Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e das mulheres do MST apresentando a Coleção de Caderno Foguera – Mulheres em rebeldia. Além da própria Monique Lima, participam declamando poesias integrantes dos grupos Coletivo Trunca – poesia de luta, Coletivo de teatro Alguns de Nós e a Revista intempestiva.

Valéria Becker, fundadora da Rádio Graviola, comentou à nossa reportagem o intuito contra-hegemonico e alternativo da Rádio e o sentido do Aguaceiro em sua programação: “Nesses 14 anos no ar, sempre procuramos dar voz a artistas e produtores de conteúdo independentes, preteridos das grandes estruturas de mídia. Nosso objetivo, desde o princípio, é ser um espaço para a livre experimentação sonora, onde cabe muita música, poesia, informação e liberdade. E a Monique, com o Aguaceiro, representa todo esse intuito muito bem. Traz para a nossa programação a pura arte em liberdade, o que me deixa profundamente feliz e realizada não só como diretora e curadora de conteúdo da Rádio, mas como pessoa admiradora das artes em geral.”

Neste ano, em sua décima edição no mês de fevereiro, o programa visitou a memória de 1922, homenageando Mario de Andrade e os 100 anos da Semana de Arte Moderna. Bruno Borja, poeta e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), colaborou nesse programa e nos comenta a potência pedagógica dos programas: “O programa Aguaceiro traz um jorro de poesia desaguando nas ondas do rádio. A experiência de produzir duas de suas edições com o projeto Mario22 foi incrível. Nos possibilitou articular Mario de Andrade e a Semana de Arte Moderna com a produção contemporânea de música e poesia. Esse diálogo subliminar conduziu a montagem dos programas, selecionando artistas e obras que costurassem um fio vermelho de memória entre 1922 e 2022. Por tratarem do centenário da Semana de Arte Moderna, os programas que produzimos ainda se tornaram interessantes instrumentos pedagógicos para a sala de aula – mas sem didatismo. Pude trabalhar com estudantes da UFRRJ essa forma lúdica, artística e crítica de abordagem de temas centrais da cultura brasileira.“

E assim Aguaceiro se constitui também como possibilidade coletiva de produção artística e educativa, tendo chamado até o momento mais de 300 participações entre poemas, músicas e outra artes. E assim o programa mensal apresenta-se entre vozes de poetas, leitoras e leitores e junto colaboradores e canções e integra há um ano a Quarta-Fera (ocupação feminina) da Rádio Graviola (RJ) (www.radiograviola.com), circulando ainda na programação da Rádio Cafundó (https://radiocafundo.com.br/) e na Rádio Literária Carrapato (www.radios.com.br/play/100144), web-rádios e rádio postes do Crato, Ceará. 

Nas palavras de Deanna Ribeiro, poeta pernambucana e colaboradora técnica e poética do Aguaceiro:

“Assim é o Aguaceiro: derramamento que flui poeticamente por caminhos sinuosos, deixando marcas, sedimentos, sentimentos. Com a força de uma maré,  convida a transformações. Com seu corpo d’água e a obstinação de um córrego, abre sulco sobre o chão, desembocando ideias no tempo. É aquilo que se sente também pelo cheiro de terra – e nos inebria. Poesia antifa bem-vinda e necessária à travessia da vida: mãos dadas e resistência.”

A iniciativa conta ainda com a participação de Tomás Rosati, carioca, músico, integrante da banda El Efecto e do Coletivo Trunca Poesia de Luta. 

No dia 04 de maio ao completar um ano de existência, a nova edição faz-se de seu próprio tema, sempre com vozes contemporâneas do nosso Norte, o Sul Global e pode ser ouvida a partir das 10h na Rádio Graviola (www.radiograviola.com).

Andando pelos caminhos urbanos, reais e virtuais, não é difícil esbarrar, ou ser atropelados por palavras de baixo calão, pouca inteligência, nenhuma sutileza e muita, muita violência. Se nossa pátria é a nossa língua, o falar brasileiro não parece espelhar o país de Carlos Drummond de Andrade, Caetano Veloso, Chico Buarque ou Machado de Assis. Mas, de repente, um Aguaceiro lava alma que um dia fora gentil. Quanta poesia se esconde nas veredas brasileiras. Quantas brasas brilham sob a fuligem de nossa língua? Algumas são colhidas por Monique Lima e lançadas no éter eletromagnético, como garrafas sob a forma de podcast, um nome pós-moderno de se fazer rádio de poste. Aguardamos interessados esse Aguaceiro de comemoração de um ano e os próximos Aguaceiros em sopros de poesia, luta e resistência.

Ditadura nunca mais

P.S: Ei, equipe do Houaiss, é preciso urgentemente avaliar a necessidade de se acrescentar mais alguns sentidos ao verbete Aguaceiro.

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Você pode conferir os programas Aguaceiro no repositório do mixcloud (https://www.mixcloud.com/moniquelima) e acompanhar a “rádio-poesia” no instagram (@_aguaceiro).

Também conferir os canais da Rádio Graviola (www.radiograviola.com), Radio Cafundó (https://radiocafundo.com.br/) e Radio literária carrapato (www.radios.com.br/play/100144).

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aguaceiro / poesia