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OPRESSÕES

Direito ao aborto ameaçado nos EUA: o que acontece no Brasil?

Juliana Bimbi, de Porto Alegre RS
Aborto é serviço de saúde
EFE/EPA/TANNEN MAURY

Na última segunda-feira (02), ocorreu o vazamento da primeira versão do voto do ministro Samuel Alito em um caso que re-analisa a decisão de 1973 por conta de uma situação no estado de Mississippi. O documento indica a possibilidade concreta, a partir da correlação de forças atual da Suprema Corte Americana, de anulação do precedente que legalizou o aborto nos EUA há 49 anos atrás. A decisão final ainda não está confirmada, porém, já foi confirmado pela corte a veracidade do rascunho. Um trecho do voto do ministro diz: 

“O aborto apresenta uma profunda questão moral. A Constituição não proíbe os cidadãos de cada estado de regulamentar ou proibir o aborto. (Os precedentes) Roe e Casey usurparam essa autoridade. Agora, revogamos essas decisões e retornamos essa autoridade ao povo e a seus representantes eleitos”. 

 Se confirmada, a decisão sobre a interrupção da gravidez, que foi reconhecido como um direito constitucional no caso Roe vs Wade, será responsabilidade dos Estados, o que ameaça principalmente os estados republicanos. Além disso, a decisão pode influenciar outros direitos já reconhecidos pela Suprema Corte, como o casamento LGBT, por serem decisões baseadas na mesma argumentação constitucional. 

Aborto é um ponto central na luta ideológica norte-americana

A possibilidade de revogação do direito ao aborto é fruto de uma luta política de anos, no cenário da chamada “guerra cultural” entre a extrema direita e os democratas, esse é um dos pontos mais importantes. O movimento que se auto-denomina “pró-vida” influencia centenas de milhares de pessoas e acumula já uma série de vitórias importantes, como em 2015, quando barraram o repasse de fundos para uma das maiores clínicas de aborto no país, a Planned Parenthood. 

Além disso, nas legislações estaduais, já são mais de 50 leis consideradas “pró-vida”. O Texas, por exemplo, proibiu a interrupção da gravidez após a detecção da atividade cardíaca, o que na prática restringe o processo, levando em consideração que a grande maioria das gestantes não sabe que está grávida a esse ponto – a Suprema Corte decidiu não revogar essa lei. O estado, que é um dos mais conservadores, foi além na sua decisão, empoderando o próprio cidadão para fiscalizar e ter o direito de processar um profissional que realizar o procedimento de forma ilegal. Se aprovado a decisão do rascunho vazado, o aborto se tornaria imediatamente ilegal em 13 estados, por conta das “leis de gatilho” já aprovadas nos locais governados pelos republicanos. Sem dúvida, haveria um esforço por parte do movimento pró-Trump de avançar para ainda mais estados.

Alguns analistas políticos sugerem que o tema seria uma tentativa da extrema-direita de impôr uma primeira derrota política para os democratas antes das eleições legislativas que ocorrerão no final do ano. É um exemplo da luta ideológica e política permanente encampada pelo movimento neofascista norte-americano, e também dos resquícios institucionais da gestão Trump. A revisão da decisão sobre o aborto só é possível por conta da nomeação, por parte do ex-presidente, de três juízes conservadores, o que foi inclusive uma promessa da sua campanha. A possibilidade do congresso norte-americano lutar pela revogação depende de uma maioria democrata, que vem sendo ameaçada pelas pesquisas eleitorais. Os grupos anti-aborto norte-americanos tem sido inflamados pela brecha na discussão, e vem se preparando para avançar com seu projeto.  

O projeto neofascista segue vivo e tem como alvo as mulheres pobres e negras

Mesmo com a derrota de Trump nas últimas eleições, o tema do aborto é mais um exemplo de como a guerra ideológica e política no país que é a maior potência imperialista do mundo está longe de ter um fim. Os republicanos ligados às ideias mais conservadoras tem lutado para avançar no projeto anti-feminista e anti-aborto, que não é um tema menor na política norte-americana. A promessa de reversão da decisão Roe vs Wade era parte importante do programa que elegeu Donald Trump.

A cruzada contra o aborto encampada pela extrema-direita também tem um alvo: as mulheres pobres e negras. Nos EUA, assim como no Brasil, seriam elas que sofreriam mais com a ilegalidade do aborto, visto que as mulheres com maior poder aquisitivo poderiam arcar com os custos de viajar para os estados governados por democratas, que mantiverem a garantia do direito para as mulheres. O movimento “pró-vida” não é uma mera “cortina de fumaça” na política estadunidense, e sim parte do que é a gênese do neofascismo: o ódio as mulheres, a população negra e aos LGBTs, que infla uma base social branca e de classe média ressentida com os avanços políticos das últimas décadas. 

A última indicação de Joe Biden para a Suprema Corte, Ketanji Brown Jackson, a primeira mulher negra a ocupar o cargo, gerou uma revolta que demonstra esse alvo. O partido republicano gerou uma estratégia para impedir sua posse que envolve fake news e acusações de cunho machista e racista. A senadora republicana Marjorie Taylor Greene, uma mulher branca, tem sido a porta voz dos ataques baixos à juíza, como mais uma perseguição e violência política contra mulheres racializadas no país.

Extrema-direita no Brasil se espelha no Trumpismo e a esquerda brasileira precisa defender o direito ao aborto 

Não é segredo que o movimento que elegeu Donald Trump presidente nos Estados Unidos é espelho para a extrema-direita bolsonarista no Brasil, importando técnicas de disparo de informações falsas e dando subsídio ideológico para os neofascistas da América do Sul. O movimento antiaborto estadunidense já tem inspirado reações no Brasil, tendo como principal repercutora a ministra Damares Alves, que é abertamente pertencente a um grupo chamado Brasil sem Aborto, promovendo eventos de debate defendendo a proibição total do aborto e a abstinência sexual. 

O Brasil já é um dos países com a legislação mais restritiva em torno do tema, que só permite a sua realização em três casos, mas o movimento neofascista segue na busca por mais retrocessos. Esses grupos fazem avançar no Congresso Nacional projetos que inviabilizam o aborto em qualquer circunstância, mesmo em caso de estupro, anencefalia ou quando há risco de vida para a mulher. A Frente Parlamentar em Defesa da Vida e da Família reúne mais de 200 congressistas. 

Não há dúvidas que, sendo os EUA uma vitrine legislativa para o resto do mundo e também uma influência direta no bolsonarismo brasileiro, essa decisão da Suprema Corte terá impacto negativo por aqui, empoderando os grupos antifeministas e fazendo avançar ainda mais o projeto que vai contra a vida das mulheres. Assim como lá, aqui as maiores atingidas são as mulheres pretas e periféricas, que mais morrem realizando abortos inseguros e que sofrem também com a falta de condições dignas de exercerem a maternidade. 

Bolsonaro já declarou que “enquanto for presidente, não haverá aborto” no Brasil. A esquerda brasileira, hoje representada pela pré-candidatura presidencial de Lula, deve incorporar um programa radicalmente favorável aos direitos reprodutivos das mulheres. Foi o feminismo, o antirracismo e o movimento LGBT que se levantou contra o neofascismo nos Estados Unidos e ao redor do mundo, e é nesses movimentos também que reside a esperança de derrota do bolsonarismo no Brasil, pelas ruas e pelas urnas. É preciso um programa radicalmente feminista, antirracista e anticapitalista para derrotar afundo o projeto do Bolsonarismo.