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BRASIL

Defender o direito ao voto das massas contra o bolsonarismo

Euclides de Agrela, de Fortaleza (CE)
urna votação
EPA

Nos últimos dias de abril, o presidente Jair Bolsonaro e seus discípulos nas redes sociais retomaram uma série de ataques ao STF, reclamando o direito à liberdade de expressão e, particularmente, a liberdade do deputado Daniel Silveira (PTB-RJ). Bolsonaro chegou inclusive a esgrimir a prerrogativa de indulto, que lhe cabe como presidente da República, para evitar a prisão do pitbull do neofascismo tupiniquim. Mas isso não é tudo, sequer o mais importante.

O mais grave é que na esteira da defesa da liberdade de Daniel Silveira, Bolsonaro chegou a ventilar que as eleições de 03 de outubro podem não acontecer. Segundo o Correio Brasiliense: “Durante o evento ‘Liberdade de Expressão’ — no Palácio do Planalto — nesta quarta-feira (27/4), o presidente Jair Bolsonaro (PL) sugeriu uma possível suspeição das eleições de 2022 se tiver ‘algo anormal’”. Ainda de acordo com essa mesma fonte, Bolsonaro afirmou: “Eles [TSE] convidaram as Forças Armadas para verificar o processo, mas se esqueceram que o chefe das Forças Armadas é Jair Messias Bolsonaro”.

Se estamos de acordo que as urnas eletrônicas são comprovadamente invioláveis por hackers, na medida em que não estão conectaras à internet, e que as mesmas são auditáveis, como o sabem todos os partidos políticos que participam das reuniões preparatórias dos processos eleitorais junto ao Tribunal Superior Eleitoral e seus respectivos tribunais regionais, perguntamos: o que poderia acontecer de anormal durante a votação de 03 de outubro?

A resposta para isso é o obvio ululante: fatalmente os bolsonaristas devem já estar preparando a violação de locais de votação e urnas através de ações violentas em alguns territórios dominados pelas milícias, particularmente, nas comunidades do Rio de Janeiro. A rigor, será o próprio Bolsonaro e seus seguidores fascistas que buscarão gerar o “algo anormal” com vistas a melar as eleições de 03 de outubro, abrindo o caminho para impugnação de urnas eletrônicas e, consequentemente, o questionamento da legalidade e validade do processo eleitoral.

Esse quadro perigoso fará das eleições de 2022 uma das mais polarizadas, senão a mais polarizada, da história do país. Sem medo de cometer exageros impressionistas, diria que, sem sombra de dúvidas, serão mais importantes do que as eleições de 1989, a primeira eleição presidencial após a ditadura militar.

Só a luta muda a vida?!

Aproveito para fazer aqui uma autocrítica, antes de dar continuidade ao desenvolvimento das ideias centrais deste artigo. Não estou mais entre aqueles que acreditam que “só a luta muda a vida”. Esta palavra de ordem, por mais que seja um apelo à luta, à ação direta em contraposição à ação parlamentar e eleitoral, é superficial, imprecisa e, por isso mesmo, passível de gerar confusões políticas. Explico: não só a luta muda a vida; o fato de as massas não lutarem também muda a vida. Enfim, não só uma ação proativa muda a vida, a inação também pode mudar a vida, em geral, para pior. Mas quero ir mais fundo nesta questão: os processos eleitorais do Estado capitalista também podem mudar a vida… para pior ou para melhor. E o maior exemplo disso foi a própria eleição de Bolsonaro em 2018.

Portanto, enquanto as massas trabalhadoras tiverem ilusões nas eleições da democracia representativa, a participação dos revolucionários socialistas nestes processos é fundamental para disputar os corações e as mentes dessas mesmas massas trabalhadoras para assim ajudá-las a superar suas ilusões e dar saltos cada vez maiores em sua consciência de classe e auto-organização.

Quem me fez chegar a esta conclusão foi ninguém menos que Trotsky, ao analisar a situação da luta de classes na Espanha de 1931, cinco anos antes do simbólico ano de 1936, quando teve início a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).

Espanha: um exemplo histórico sobre a participação dos revolucionários nas eleições

O ano é 1931, portanto, cinco anos antes da revolução espanhola. No início deste razoável período preparatório que desembocaria na guerra civil entre republicanos (que uniam desde os socialistas, comunistas, anarquistas até os trotskistas) contra os monarquistas-franquistas, Trotsky faz uma importante discussão com os membros da Oposição de Esquerda sobre qual deveria ser a política do Partido Comunista diante das eleições das Cortes. As Cortes Gerais eram e são até hoje o nome dado ao Parlamento espanhol. Elas têm uma configuração bicameral assimétrica, composta por: o Senado, considerado a câmara alta; e o Congresso dos Deputados, conhecido como a câmara baixa.

A primeira questão fundamental levantada por Trotsky nesse debate foi a caracterização das ilusões das massas nos processos eleitorais, particularmente quando se trata de um período não revolucionário ou pré-revolucionário:

Atualmente, existem na Espanha muitos operários que imaginam que podem resolver as questões fundamentais da vida com a ajuda de uma cédula eleitoral. Estas ilusões não poder ser destruídas sem o auxílio da experiência. Porém há que saber facilitar esta mesma experiência. Como? Voltando as costas às Cortes ou, ao contrário, participando das eleições? Há que dar uma resposta. (1) 

Trotsky com todo o realismo político que lhe era peculiar, jamais ignorou o problema das ilusões das massas nos processos eleitorais e a necessidade de ajudá-las, em sua experiencia concreta a superar essas ilusões, na medida em que se dispõem a entrar em ação para defender o seu direito ao voto: “Na agitação é necessário colocar desde o início, em primeiro lugar, a questão dos direitos eleitorais. Sim: a questão prosaica dos direitos eleitorais!”. (2)

Como polemista que era, Trotsky tampouco se furta ao debate com os setores esquerdistas da própria Oposição de Esquerda e, sobretudo, com a política ultra-esquerdista do comunismo espanhol animado pelas teses do chamado “terceiro período” da Internacional Comunista:

Existe no mundo gente que se permite chamar marxista e que manifesta um enorme desprezo por palavras de ordem tais como, por exemplo, sufrágio universal e igual, direto e secreto para todos os homens e mulheres a partir dos dezoito anos. (3)

E chega ao ponto de acusar de “pedantes depreciáveis” aqueles supostos marxistas que não consideram as ilusões das massas em sua elaboração política concreta, particularmente para as táticas eleitorais:

Não nos solidarizamos nem um instante com as ilusões das massas; mas o que essas ilusões têm de progressivo devemos usar até o fim; do contrário, não seríamos revolucionários, senão uns pedantes depreciáveis. (4)

Neste contexto, o que é mais interessante é que Trotsky também acusa os comunistas espanhóis em seus arroubos ultra-esquedistas, na medida em que limitam sua agitação às questões econômicas (jornada de sete horas) ou transitórias (comitês de fábrica e armamento dos operários), a se aproximarem das posições anarco-sindicalistas:

Ao falar unicamente da jornada de sete horas, dos comitês de fábrica e do armamento dos operários, ignorando a política, sem mencionar nem uma só vez em seus artigos as eleições para as Cortes, o Pravda faz o jogo do anarcosindicalismo, alimenta-o e encobre-o.

Na medida em que a luta política dos trabalhadores espanhóis em 1931 tratava-se ainda de um período preparatória à revolução, Trotsky defendeu que o objetivo imediato dos comunistas espanhóis não deveria ser a tomada do poder, mas algo que a antecede e que sem isso seria impossível lutar pelo poder, ou seja, a conquista de uma ampla influência de massas:

No entanto, o objetivo imediato que se coloca aos comunistas espanhóis não é a luta pelo poder, senão a luta pelas massas, e esta luta se desenvolverá no próximo período sobre as bases da república burguesa e, em proporções enormes, sob as palavras de ordem da democracia. O objetivo imediato é, indubitavelmente, a criação de juntas operárias (sovietes). Mas seria absurdo opor as juntas operárias às consignas da democracia. (5)

Para conquistar os corações e as mentes das massas trabalhadoras, Trotsky propõe um método de análise que não despreza, mas, ao contrário, considera o voto dos trabalhares como um importante termômetro para medir os avanços ou retrocessos da sua consciência de classe:

Temos que buscar conhecer como votam os operários, em particular os anarco-sindicalistas. Em certas regiões, a resposta deve deduzir-se de uma maneira clara da estatística eleitoral. É muito importante saber como tem votado os camponeses em diferentes províncias. (6)

Por fim, Trotsky busca concluir a discussão fazendo uma consideração muito importante: enquanto os comunistas espanhóis não tivessem forças para derrubarem o Estado capitalista e seu regime democrático representativo, deveriam defender esse mesmo regime dos intentos fascistas de liquidar as liberdades democráticas ou o direito ao voto das massas trabalhadoras:

(…).
5) Hoje, se os comunistas quiserem voltar as costas às Cortes, opondo a elas a palavra de ordem se sovietes e da ditadura do proletariado, somente demonstrariam com isso que não se deve tomá-los a sério. Não há um só comunistas nas Cortes (segundo os jornais turcos). É evidente que a corrente revolucionária é muito mais forte na ação, na luta, que na representação parlamentar. Não obstante, existe uma certa correlação entre as forças de um partido revolucionários e sua representação parlamentar. A debilidade do comunismo espanhol revelou-se por completo. Nestas condições, falar de derrubar o parlamento burguês pela ditadura do proletariado significaria simplesmente desempenhar o papel de palhaço e charlatão. A questão coloca-se em chegar a adquirir forças sobre a base da etapa parlamentar da revolução e em agrupar as massas ao seu redor. Somente assim será possível vencer o parlamentarismo. Precisamente, por esta razão resulta indispensável desenvolver atualmente uma agitação violenta sob as palavras de ordem de extrema e decisiva democracia.
6) Quais são os critérios para lançar essas palavras de ordem? Por um lado, é necessário saber apreciar exatamente a direção geral do desenvolvimento revolucionário que determina nossa linha estratégica; por outro lado, há que ter em conta o estado de consciência das massas. O comunista que não conte com este último fator pode romper a cabeça. (7)

Trotsky arremata o debate com a brilhante conclusão de que o comunista que não leve em consideração a consciência das massas para elaborar sua política concreta, sobretudo as táticas momentâneas, pode romper a cabeça e, ao invés de aproximar o partido da influência de massas, afasta-o de todo e qualquer diálogo com milhões de trabalhadores.

Obviamente que a situação da luta de classes no Brasil não é exatamente a mesma da Espanha de 1931. Tampouco nada nos garante que nos aproximaremos de um embate decisivo entre revolução e contrarrevolução no Brasil durante os próximos cinco anos. Mas, independentemente dos desdobramentos concretos da situação brasileira e suas semelhanças e dessemelhanças com a revolução espanhola, apoiar-se no método de análise, caracterização e política que propõe Trotsky é essencial para que os revolucionários socialistas no Brasil não venham a romper a sua cabeça.

Dirigir é prever

A luta para destituir Bolsonaro da presidência da República não passa hoje por um processo de impeachment e, muito menos, por uma insurreição de massas. Quer gostemos ou não, queiramos ou não essa luta passa pelas eleições de 03 de outubro e pelo impedimento do segundo mandato deste genocida.

Bolsonaro e sua gangue de vendilhões do templo e milicianos tentarão nos próximos meses intimidar a campanha de Lula presidente e todas as campanhas eleitorais dos partidos de esquerda, começando por aqueles que conclamam as massas a votar em Lula, o que inclui obviamente o PSOL, até outros partidos que resolveram lançar candidaturas próprias no primeiro turno, como UP, PCB e PSTU.

Diante dessa ameaça real, precisamos discutir urgentemente nos movimentos sociais, sindicatos e na esquerda partidária a necessidade de organizar mecanismos de autodefesa das sedes dos nossos movimentos, sindicatos, partidos e comitês eleitorais, bem como a segurança de nossos candidatos e seus eventos de campanha. Seria desmoralizante para toda a esquerdada brasileira se os fascistas nos impedissem de fazer campanha eleitoral em algum território das periferias das grandes cidades, o que limitaria significativamente nossos espaços de ação e alcance, que precisam ser transformados num amplo movimento para botar para fora do Palácio do Planalto Bolsonaro e sua gangue.

Não podemos esquecer dos atentados sofridos pelas caravanas de Lula durante o período imediatamente anterior às eleições de 2018. A tendência é que, muito provavelmente, essas provocações e ataques físicos voltem a se repetir em 2022. Por isso, a principal responsabilidade e iniciativa de organizar a autodefesa das campanhas eleitorais do conjunto da esquerda cabe ao PT e ao próprio Lula. Seria muito importante, por exemplo, que durante a campanha eleitoral os movimentos sociais, sindicatos e a esquerda partidária organizassem mecanismos de autodefesa contra as provocações fascistas.

O ápice desta luta pela defesa das eleições de 2022 contra as provocações fascistas será o dia 03 de outubro. Mais do que fazer a chamada “boca de urna” nesse dia, deveremos organizar brigadas de autodefesa nas sessões eleitorais em todo o país, prontas para filmar toda e qualquer provocação fascista e defender os locais de votação. Fascistas, não passarão!

Notas

1 TROTSKY, León. La revolución española y sus peligros. In: La Revolución Española, Colección la Pluma I, El puente Editorial, p. 71. Tradução livre.

2  Idem, P. 72.

3  Idem, P. 72.

4  Idem, P. 73.

5  Idem, P. 73.

6 TROTSKY, León. Cartas sobre la revolución, Al SI de la Oposición de Izquierda. In: La Revolución Española, Colección la Pluma I, El puente Editorial, p. 98. Tradução livre.

7 Idem, P 99.