Como toda a grande Revolução, aquela iniciada faz hoje 48 anos foi múltipla. O 25 de Abril começou em África, gestado pelas lutas de libertação dos povos africanos, contra o colonialismo e o racismo. Prosseguiu nas ruas de Lisboa e do país, quando a revolta do povo trabalhador explodiu nas ruas e este, com as próprias mãos e corações, garantiu que não só o governo marcelista, mas também todo o aparelho fascista era varrido – e assim se possibilitava também o fim da guerra colonial e, por esta via, a independência das colónias.
Ondas sucessivas e profundas de mobilização do povo trabalhador, eis o código genético da revolução de 1974-75. Nos campos, nas fábricas, nos serviços e nas escolas. Eram lutas pelo salário e direitos laborais, mas, mais que isso, pelo direito a decidir sobre o que produzir e como. Era a luta democrática radical a romper as cadeias da exploração, fazendo da revolução democrática também socialista.
Todas as cadeias de opressão foram questionadas, pelo que também Abril foram as trabalhadoras e as jovens a lutar pelo direito ao decidir sobre os seus corpos, a trabalhar e a autodeterminarem-se. Como foi então, ainda que duramente e com revezes, que se plantaram as sementes do futuro movimento LGBT.
Uma Revolução Socialista incompleta
As múltiplas camadas da revolução sucederam-se e radicalizaram-se, dos matos da Guiné, Angola e Moçambique, aos campos do Alentejo e às fábricas de Setúbal, retornando às ex-colónias, aprofundando, também aí as transformações em curso. Internacional, anticolonial, antifascista, popular e proletário: assim foi Abril. E foi, por isso, Socialista. É verdade que nem todas essas aspirações se cumpriram. Nem todas as portas que Abril abriu foram transpostas. Mas foram, ainda assim, abertas.
As tarefas democráticas venceram radicalmente e as lutas sociais conquistaram um terreno profundo, daí nascendo o Estado Social. Aí se funda a palavra Liberdade como a concebemos neste dia, longe da mesquinhez individualista da liberdade liberal que, fazendo dos indivíduos mercadoria, os libera para serem comprados e vendidos. Esta Liberdade hoje em disputa, nascida de uma revolução Socialista incompleta, é ela mesmo transitória. É radicalmente democrática e igualitária, coletiva e social. A sua realização plena exige que a sociedade avance para lá de onde a revolução parou: para a além da democracia capitalista e do Estado Social, rumo ao poder democrático das maiorias trabalhadoras, para que disponham de si mesmas, sem exploração nem opressão. Exige o Socialismo.
Abril ameaçado
Posto isto, vivemos hoje num paradoxo. Se não esquecemos a incompletude da revolução de Abril e lutamos pelas suas aspirações por cumprir, vemo-nos obrigados a defender o que se alcançou – tanto, mas também tão aquém – perante as ameaças crescentes.
O redespertar do fascismo é hoje um facto. Ele está na Assembleia da República, mas também nas ruas e nas mentes. O ressentimento ultranacionalista que alimenta o neofascismo, e que é por ele alimentado, não pode não perigar tudo o que Abril conquistou, mesmo as mais básicas liberdades democráticas. Ele nutre-se da nostalgia colonial, do imaginário de um inexistente paraíso branco perdido, e assim expressa-se no racismo político, cujas palavras de ódio são sempre antecâmara da ação fascista. E daqui parte para dividir quem trabalha, primeiro pela cor da pele e pela nacionalidade, depois através de todas as outras fissuras, fragmentando o povo trabalhador em prol da única minoria perigosa: a dos ricos.
A par da serpente fascista, com ela relacionada, mas não obstante, distinta, cresce a febre ultraliberal. O novo ultraliberalismo crescente é a versão radicalizada e ideológica da ofensiva do extremo-centro liberal que nos governou nas últimas décadas. É a versão cínica, descontrolada e destravada do capitalismo realmente existente, do pragmatismo dito de centro que se radicaliza na ultradireita. Como parte da sua ofensiva, procura disputar o sentido da palavra Liberdade, opondo-a ao bem-comum, aos direitos sociais e laborais. Esvazia-na historicamente para a vender como o direito a espezinhar o próximo para subir na vida. Busca, assim, convencer a juventude a enbandeirar o seu direito a ser espezinhada pela cobiça dos mercados. Se o consegue temporariamente, não é provável que o faça definitivamente. A maioria, condenada à precariedade e baixos salários, desiludir-se-á com essa pretensa Liberdade anarcocapitalista. Segue-se então um de dois caminhos: a vertigem autoritária ou o horizonte da Liberdade plena, social e coletiva.
Defender a Liberdade, lutar pelo Socialismo
Esta é por isso uma disputa também nossa, da esquerda. Partimos não só do passado, mas, desde logo, do presente. É na luta contra a guerra e a carestia, pela paz e os salários, que concretizamos o conteúdo da Liberdade que hoje celebramos. Assentes nesse combate, partimos da defesa de Abril para uma aspiração de mudança radical.
Há que saber defender Abril em toda a sua multiplicidade radical, a da revolução Socialista, sem ceder um milímetro das trincheiras democráticas e na defesa do estado social. A nossa Liberdade abrange essas várias dimensões, pois ela não opõe democracia ao socialismo; não abdica dos direitos laborais, sem por isso esquecer o fim da exploração; é radicalmente antirracista, feminista e LGBTQ e, por isso mesmo, é unificadora das maiorias sociais. Nela os indivíduos aspiram a realizar-se por meio da emancipação coletiva que nasce da luta de classes. Esta compreensão permite assim defender o legado de Abril com o qual crescemos e frutificamos e, nessa luta, semear um novo Abril Socialista.
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