Lígia Maria, de Brasília, DF, da Coletiva SUS*
O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, anunciou em pronunciamento na noite deste domingo, 17, em rede nacional de rádio e TV, o fim da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) referente à pandemia de COVID19. A medida, que será publicada nos próximos dias, é tomada após um período de declarações do ministro e de Jair Bolsonaro em relação à reclassificação da pandemia para endemia, sob uma perspectiva de redução de cuidados em vez de adequação a critérios epidemiológicos.
Faz parte da argumentação de Queiroga a estatística de cobertura vacinal de 73% da população, pouco mais do que o recomendado como cobertura segura; assim como a menção ao fato de que o fim da ESPIN não significa o fim da COVID19. Esta afirmação, contudo, vai de encontro à tradição do Ministério da Saúde bolsonarista de menosprezar a pandemia e trabalhar para que as reclassificações epidemiológicas signifiquem, na verdade, o afrouxamento dos cuidados sanitários e o recrudescimento das perdas do SUS, fragilizando a capacidade da rede de atenção à saúde. Além disso, a medida do MS de Bolsonaro vai contra a determinação da Organização Mundial da Saúde (OMS), que recentemente ratificou a COVID19 como, ainda, uma ESPIN para os países.
O que muda com o fim da ESPIN
A ESPIN permitia compra mais rápida de insumos, contratação emergencial de profissionais, gestão da circulação de pessoas no País e adequação do regime de trabalho de acordo com a situação de saúde, protocolos sanitários de uso de máscaras, compra emergencial de vacinas, melhores condições de negociação dos preços e possibilidade de aportes financeiros adicionais ao setor saúde – que foram cruciais, tendo em vista as baixas econômicas ocasionadas pelo desmonte estruturado do Sistema Único de Saúde (SUS) e institucionalizado pela Emenda Constitucional 95. Além disso, é a prerrogativa de ESPIN que impõe a exigência do passaporte vacinal e da adequação dos protocolos de biossegurança em estabelecimentos de saúde, tanto para profissionais quanto para usuários.
Nota-se, assim, que dado o histórico do governo federal, a declaração de fim da ESPIN representa, essencialmente, a institucionalização do negacionismo, que pode significar importantes retrocessos para o Brasil quanto à COVID19.
A declaração de fim da ESPIN representa, essencialmente, a institucionalização do negacionismo
O mundo mostra que a flexibilização dos cuidados sanitários, assim como da fiscalização sobre aglomerações em locais fechados e o uso de máscaras, é responsável por novos surtos de COVID19, que fazem com que os sistemas de saúde transitem frequentemente entre momentos de estabilidade e outros de estresse na capacidade instalada de atenção à saúde. O próprio Brasil já deu exemplos do prejuízo da flexibilização sanitária, com a produção de novas variantes que, embora menos agressivas, são responsáveis pelo aumento da contaminação – que leva a rede de saúde à saturação, implicando em sobrecarga profissional, uso exacerbado de escassos insumos e atravessamento negativo do atendimento às demais demandas de saúde, cuja consequência é a agudização de condições crônicas e a desassistência à demanda programada de saúde.
A reclassificação epidemiológica não é sobre gravidade, mas sobre frequência e localidade da ocorrência de uma questão de saúde. Isto não significa menor seriedade, desprezo às medidas de cuidado ou fragilização do aporte de recursos ao sistema de saúde; pelo contrário, exige ainda mais rigor de gestão, assistência e articulação intersetorial para manter o avanço na redução da circulação do vetor de uma doença e na contenção dos seus efeitos. Essas ressalvas não devem significar nenhum tipo de anacronismo na interpretação das condições sanitárias, pelo contrário: devemos considerar e valorizar os avanços oriundos da ciência e do trabalho de profissionais de saúde e redes territoriais no combate à COVID19 e seus efeitos, compreendendo o aumento da imunização e a redução da média móvel de casos e mortes. Contudo, não se pode abrir espaço para um afrouxamento sistemático das condições que nos permitem, hoje, lidar de maneira mais preparada e resguardada com a COVID19 – o que Bolsonaro e Queiroga demonstram como intenção.
No caso brasileiro, qualquer reclassificação epidemiológica precisa passar por uma robusta campanha de educação em saúde, que mitigue os efeitos do negacionismo científico nos últimos dois anos; por continuidade da ampliação da vacinação; por garantia de aporte de recursos que atenue os efeitos da EC95 sobre o SUS neste momento de enfrentamento urgente dos efeitos dos momentos mais intensos da pandemia de COVID19, garantindo recursos materiais e humanos que viabilizem os serviços de diagnóstico e tratamento da COVID19, reabilitação das sequelas provocadas pela doença, vacinação, condução das demais demandas de saúde e execução da abordagem territorial e coletiva na prevenção e promoção da saúde. Não se acaba com uma pandemia por decreto.
* A Coletiva SUS é um coletivo em defesa da saúde pública, universal, integral e equitativa no Distrito Federal.
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