Por Karoline Souza*, de Brasília, DF.
Instituída, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), pela Portaria Nº 1.459/2011, a Rede Cegonha objetiva garantir às mulheres o direito ao planejamento reprodutivo e à humanização da assistência ao pré-natal, parto e pós-parto, assim como assegurar às crianças o direito ao nascimento seguro e ao crescimento e desenvolvimento saudáveis. Baseada no respeito e proteção aos direitos humanos, na promoção da equidade e com enfoque de gênero e na multiprofissionalidade, a Rede Cegonha busca fomentar a implementação de um novo modelo de atenção à saúde da mulher, das pessoas que gestam e podem parir, e à saúde da criança, além de organizar a Rede de Atenção Materno-Infantil para que haja acesso, acolhimento e resolutividade, reduzindo, assim, a mortalidade do público alvo.
Para entender a importância da Rede Cegonha é necessário entender o contexto histórico da atenção ao parto no Brasil. Até o século XVIII, os partos eram auxiliados por parteiras tradicionais, as pessoas pariam em seus próprios lares na presença de sua rede de apoio, sendo o parto um evento familiar e íntimo. Com a justificativa de redução da taxa de mortalidade materna e infantil, após este período o parto se tornou um evento hospitalocêntrico, sob uma perspectiva misógina de controle dos corpos que gestam. Parir deixou de ser um evento íntimo e se tornou um procedimento médico, realizado em hospitais, ambientes procurados por enfermos e doentes, fomentando a visão patológica que passou a predominar sobre o parto.
A institucionalização do parto retirou de gestantes seu protagonismo, sua individualidade e sua privacidade, já que, para se encaixar nas normas e rotinas dos hospitais, era necessário cumprir um padrão de comportamento: uma pessoa gestante submissa, calada e obediente à equipe assistencial. Foi neste cenário que mulheres negras tiveram seus ventres violados em cesáreas experimentais, realizadas pelo obstetra Marion Sims, em nome da ciência.
É sob esta perspectiva que o Ministério da Saúde de Bolsonaro e Queiroga institui, de maneira unilateral, contrariando as discussões realizadas na CIT através do pacto federativo, contradizendo a diretriz de descentralização da gestão e sem aval do controle social do SUS, a nova Rede Materna e Infantil (RAMI) que substitui a Rede Cegonha. A portaria nº 715/2022, que normatiza a RAMI, dá ênfase à atuação do médico obstetra, sem contemplar a atuação da enfermeira obstétrica, que tem sido essencial no aprimoramento da assistência perinatal, na redução da mortalidade materna e infantil e na implementação da humanização da atenção ao pré-natal, parto, nascimento e pós-parto.
A atuação da enfermagem obstétrica foi e segue sendo um dos pilares da Rede Cegonha. Atuação esta que é reconhecida e incentivada pela Organização Mundial de Saúde, estando associada ao aumento do número de partos normais no Brasil, redução da taxa de cesáreas – em 2019, a taxa de cesáreas no Brasil era de 84% dos partos, quando o recomendado pelas organizações de saúde é de 15% -, bem como a redução de intervenções desnecessárias e iatrogênicas para pessoas parindo, seus bebês e famílias.
No Distrito Federal, a Casa de Parto de São Sebastião, modelo de assistência para o Brasil que apresenta indicadores comparáveis a países como Holanda e Inglaterra, encontra-se ameaçada, uma vez que, desde 2009, a equipe assistencial é composta exclusivamente por enfermeiras obstétricas, técnicas de enfermagem e residentes de enfermagem em obstetrícia. A medida unilateral que cria a RAMI também embarreira a construção de novas casas de parto nas sete regiões de saúde do DF, prevista pela Lei nº 6.497/2020, da deputada distrital Arlete Sampaio (PT). É importante salientar que, assim como em São Sebastião, em outros pontos do Brasil as casas de parto são o único ponto de atenção a populações vulneráveis.
O CONASS e o CONASEMS caracterizam a portaria nº 715/2022 como um desrespeito ao comando legal do Sistema Único de Saúde, além de ser uma normativa descolada da realidade dos territórios e distante dos processos de trabalho e das necessidades locais. Inegavelmente vivemos um cenário político de retrocessos e ataques aos direitos humanos mais básicos, dentre eles o direito de parir e nascer sem violência. O desmonte da Rede Cegonha possui caráter machista, racista e classista, pois impacta diretamente grupos vulneráveis, sobretudo mulheres negras das periferias.
Além disso, a RAMI representa uma iniciativa de reserva de mercado ao retirar do escopo profissional a enfermagem obstétrica, assumindo o processo de gestar, parir e nascer como objeto de lucro, fazendo da saúde um meio de barganha e negociação. O ramo da obstetrícia na atenção médica é substancialmente rentável, por resgatar o sentido hospitalocêntrico, fragmentado e procedimental, fazendo com que um processo que deve ser o mais natural possível seja alvo de intervenções – muitas vezes prejudiciais – às quais se atribui um preço e um tempo incompatíveis com a vida e a atenção humanizada à saúde perinatal.
É necessário defender e fomentar políticas públicas que fortaleçam e defendam aqueles que, vítimas de um projeto de necropolítica, encontram-se marginalizados na sociedade. Reconhecer a importância da Rede Cegonha e da atuação das enfermeiras obstétricas e obstetrizes na melhoria de acesso à atenção à saúde perinatal nas periferias mostra como o ataque coordenado do governo federal à Rede Cegonha possui alvos específicos. A Portaria nº 715/2022 é uma afronta ao direito de parir e nascer sem violência, com segurança e assistência adequada, por isso deve ser revogada e a elaboração da assistência perinatal deve ser uma construção coletiva, valorizando a atuação multiprofissional, o controle social e a descentralização da gestão, reconhecendo o trabalho indispensável da enfermagem obstétrica.
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