A história esclarece duas grandes “crises internas” do bolchevismo no ano da revolução. Na primeira, Lênin, que acabara de voltar da Suíça, apresenta suas “Teses de Abril” e “rearma” poIíticamente o seu partido para a guerra contra o regime de fevereiro; na segunda, no penúltimo estágio da revolução, os defensores e adversários da insurreição se enfrentam mutuamente no Comitê Central bolchevique (…) Em ambas as crises, somos levados a sentir que é dos poucos membros do Comitê Central que a sorte da revolução depende: seus votos decidem se as energias das massas devem ser dissipadas e derrotadas, ou dirigidas para a vitória.
O problema das massas e lideres é apresentado com toda a sua agudeza e quase que imediatamente as luzes focalizam de forma ainda mais limitada e intensiva, um único líder, Lênin. Tanto em abril como em outubro Lenin fica quase que sozinho, incompreendido e renegado pelos seus discípulos. Membros do Comitê Central quase queimam a carta na qual ele insiste em que se preparem para a insurreição, e Lênin resolve “travar a guerra” contra eles e, se necessário for, recorrer às fileiras, desobedecendo a disciplina partidária. “Lenin não confiava no Comitê Central – sem Lenin.”, comenta Trotski, e “Lênin não estava muito errado nessa desconfiança” (…) Trotski enfrenta aqui o problema clássico da personalidade na história e, talvez, tenha menos êxito.
Isaac Deutscher
Sem Lenin e as teses de abril o bolchevismo teria vencido em outubro? A pergunta é retórica. Não é possível respondê-la. Contrafactuais são exercícios legítimos, porém, hipotéticos, que só podem ter o mérito de sugerir um problema.
Publicadas no jornal Pravda (A Verdade) no dia 7 de abril de 1917, as “Teses de Abril” eram sucintas e impactantes, inclusive, inicialmente, para a própria direção do partido bolchevique. Eis as conclusões fundamentais: nenhum apoio ao governo provisório! Paz, pão, terra! Todo poder aos Soviets! Neste episódio, o problema não é simples: e se Lênin não tivesse atravessado a Alemanha no trem blindado, não tivesse ganho o partido bolchevique para as teses de Abril, e depois, para a iminência da insurreição, a Revolução de Outubro teria ocorrido? A resposta não é simples, e nunca poderá ser irrefutável.
A questão é pertubadora porque, nos primeiros meses depois de fevereiro, a direção bolchevique, no interior da Rússia, cedendo às pressões de sua própria base social embriagada pela vitória fulminante de fevereiro, defendia uma linha de apoio crítico ao governo provisório liderado pelo príncipe Lvov. Especulava-se na direção do bolchevismo até com uma unificação com o menchevismo, já que o horizonte de uma República Democrática ainda parecia um limite programático comum.
Não foram poucas as dificuldades de Lênin para conseguir a aprovação das Teses de Abril. Publicadas no dia 7 de abril, correspondiam a um giro estratégico. Também foi complexo conseguir aprovar nas vésperas de outubro, por pequena maioria em uma reunião sem quorum, a linha de preparação da insurreição. O papel de Lênin, só pode ser compreendido, apropriadamente, na condição de líder dos milhares de líderes que compunham a organização bolchevique.
Ou, em outras palavras, pelo lugar que ocupava na direção do sujeito político coletivo. Sua autoridade teria sido, de fato, insubstituível, como sugere Trotsky? Trotsky se coloca a questão e responde que não. A sugestão de Deutscher é que Trotsky, talvez porque só, tardiamente, tenha defendido a união da organização interdistritos com o partido bolchevique, tenha se inclinado por uma hípervalorização do lugar individual de Lenin no desenlace vitorioso de Outubro.
Por outro lado, é bem conhecido que o giro tardio de Trotsky para a unificação com Lenin, que fez dele, até ao final de sua vida, um defensor entusiasmado do bolchevismo como modelo de partido. Deixou como herança uma posição “superleninista”.
Acontece que uma supervalorização da autoridade de Lenin, necessariamente, diminui a ideia da eficácia do papel do partido como organização coletiva, portanto, uma contradição lógica. O que não impediu Trotsky, surpreendentemente, de escrever variadas vezes:
A ditadura do proletariado se deduzida a partir de toda a situação. Além disso, era necessário instaurá-la, e isso não teria sido possível sem o partido. E ele só poderia cumprir sua missão se a compreendesse. Para isso era necessário Lenin. Antes de sua chegada a Petrogrado, nenhum dos líderes bolcheviques se atreveu a fazer o diagnóstico da revolução. Pelo curso dos acontecimentos a direção Kamenev-Stalin foi empurrada para a direita, para a posição dos social-patriotas: a revolução não deixou espaço para uma posição intermediária entre Lenin e os mencheviques. A luta intestina dentro do partido bolchevique era inevitável. A chegada de Lenin só acelerou o processo. Sua ascendência pessoal reduziu as proporções da crise. No entanto, alguém pode afirmar com segurança que, sem ele o partido teria encontrado o seu caminho? Nós não ousaríamos dizê-lo. O fator decisivo nesses casos é o tempo, e quando a hora passou é muito difícil ter uma visão retrospectiva do relógio da história. De qualquer forma, o materialismo dialético não tem nada em comum com o fatalismo. Sem Lenin, a crise que inevitavelmente tinha que causar esta liderança oportunista tinha tomado um caráter excepcionalmente acentuado e prolongado. Claro, as condições da guerra e da revolução não deixavam para o partido muita margem de tempo para cumprir sua missão. Portanto, poderia muito bem acontecer que o partido, desorientado e dividido, perdesse por muitos anos a ocasião revolucionária. O papel da personalidade alcança aqui, diante de nós, proporções verdadeiramente gigantescas.
O papel do indivíduo na História é um tema particularmente espinhoso para os marxistas, e por muitas razões. A mais importante é que uma das monstruosidades ideológicas do século XX foi o culto abjeto à personalidade dos líderes. Em nome do marxismo se praticou uma liturgia sinistra da política monolítica, um método de exercício do poder próprio de déspotas asiáticos, elevado a política de Estado pelo stalinismo, e feita em nome do socialismo. Depois dessa tragédia haveria que guardar mil reservas contra estes excessos.
O argumento polêmico mais forte de Trotsky é que a oportunidade poderia ter sido perdida, porque os prazos seriam irreversíveis e, sem Lênin, a crise política do bolchevismo, em sua opinião inexorável, teria se prolongado muito mais e exaurido o partido em uma luta fracional da qual não poderia sair intacto.
Deutscher argumenta contra o Trotsky que a personalidade “excepcional”, elevada a uma grande autoridade pelos sua capacidade ou pelas circunstâncias, bloqueia o caminho para que outros, que poderiam ocupar o seu lugar pudessem cumprir a mesma tarefa, ainda que imprimissem aos acontecimentos as marcas próprias do seu estilo. É o “eclipse” dos outros que criaria a “ilusão de ótica” da personalidade insubstituível. Deutscher acrescenta que mesmo que a crise revolucionária aberta entre Fevereiro e Outubro se perdesse, outras voltariam a se abrir:
Trotski afirma que somente o gênio de Lênin podia enfrentar as tarefas da Revolução Russa e insinua frequentemente que, em outros países, também, a revolução deve ter um partido como o bolchevique e um líder como Lênin, para vencer. Não há nada de novo em falar-se da extraordinária capacidade de Lenin ou da boa sorte que teve o bolchevismo encontrando um líder como ele. Mas em nossa época, as revoluções chinesa e iugoslava não triunfaram sob partidos muito diferentes do boIchevique de 1917, e sob líderes de menor estatura, em certos casos de muito menor estatura? Em cada caso, a tendência revolucionária encontrou ou criou seu órgão com o material humano de que dispunha. E se parece improvável supormos que a Revolução de Outubro teria ocorrido sem Lenin, tal suposição não será tão pouco plausível quanto a inversa, de que um tijolo caindo de um telhado em Zurique em princípios de 1917, poderia ter modificado a sorte da humanidade neste século. (grifo nosso)
Deutscher leva o raciocínio até ao fim, e conclui que a hipótese de Trotsky seria “espantosa em um marxista”. No entanto, não nos enganemos, não estamos diante de uma discussão “bizantina”, mas diante do lugar do último elo de uma complexa cadeia de causalidades. A questão remete tanto à personalidade política notável de Lênin, quanto sobre o lugar do sujeito político coletivo na crise revolucionária.
Se até o partido bolchevique, talvez, o mais revolucionários da história contemporânea, teve uma fração hostil à luta pelo poder em sua máxima direção, em plena crise revolucionária, que dificuldades esperar no futuro? A pressão das classes socialmente hostis a um projeto socialista seria tão grande que esse processo tenderia a se repetir?
A premissa de que os fatores subjetivos se neutralizam, mutuamente, e, portanto, se anulam, não tem sustentação: são justamente as diferentes margens de erro, ou seja, a qualidade do sujeito político que pode fazer a diferença, e inclinar a balança em uma ou noutra direção. Se as oportunidades históricas colocadas pela luta de classes se perderem, sempre existe a possibilidade de um impasse histórico prolongado cujos desenlaces são, a priori, indefinidos e imprevisíveis. George Novack acrescentou um argumento:
A discrepância observada por Deutscher entre as observações de Trotsky sobre que Lênin era essencial para a vitória de outubro, e as que dizem que as leis objetivas da história são mais fortes do que as características peculiares dos protagonistas, deve ser explicada pela diferença entre o curto prazo, e a história a longo prazo (…) A qualidade da direção pode decidir qual das alternativas válidas que emergem das condições prevalecentes irão realizar-se. O fator consciente tem uma importância qualitativa distinta, ao longo de uma época histórica inteira, que a que tem em uma fase ou situação específica dentro dela (…) O tempo é um fator importante no conflito entre as classes sociais enfrentadas. A fase indeterminada em que os acontecimentos podem ser desviados em qualquer direção não dura muito tempo. A crise das relações sociais deve ser, rapidamente, resolvida de uma forma ou de outra. Nesse ponto, a atividade ou passividade de personalidades dominantes, os grupos e partidos, pode fazer pender a balança de um lado ou do outro. O indivíduo pode intervir como um fator decisivo no processo de determinação histórica somente quando todas as outras forças em jogo estão, temporariamente, empatadas. Então, o peso extra pode servir para inclinar a balança. (grifo nosso)
Não parece haver escapatória para essas perguntas. Elas oferecem uma dimensão dramática para a importância dos fatores subjetivos. Os critérios de Deutscher são estritamente deterministas. E os de Trotsky, talvez, mais flexíveis: os fatores objetivos e subjetivos são, também, mutuamente, relativos, e guardam uma sutil interação entre si.
A análise deve ser feita em diferentes graus de abstração. Na relação com as massas operárias e camponesas, o partido bolchevique era um fator subjetivo. Mas em relação aos seus membros ele era um elemento objetivo. Em relação ao partido, a presença de Lênin era um elemento subjetivo, mas nas suas relações com os outros membros da direção, sua presença era um fator objetivo.
*Texto publicado inicialmente na revista Jacobin.
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