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BRASIL

Cinismo, espetáculo e o “novo” Plano Diretor de São Luís

Luiz Eduardo Neves dos Santos*
prefeito Eduardo Braide durante a apresentação do Plano Diretor
Prefeitura de São Luís

“O papel e o alcance da produção discursiva acerca das cidades se apresentam como novidades da época atual, daí a necessidade de analisar suas noções estruturadoras, seus pontos de fraqueza e de força, seus caminhos e descaminhos”.

Fernanda Sánchez em ‘A reinvenção das cidades para um mercado mundial’, Argos, 2010, p. 93

É preciso situar o processo de revisão do Plano Diretor

Norteador da política de desenvolvimento e de expansão urbana nos limites municipais, o Plano Diretor constitui-se num importante meio de organização, ordenação e produção do espaço. Ao menos na teoria, o princípio fundamental da propriedade urbana, por exemplo, é a sua função social, que possibilita ao poder público municipal, através do Plano Diretor, exigir do proprietário o cumprimento do uso e das finalidades de seu imóvel para atendimento do interesse social das coletividades. 

O Plano Diretor é o instrumento pelo qual os municípios definem os objetivos que devem ser atingidos, estabelecendo o zoneamento, as exigências quanto às edificações e um sem número de outras matérias fundamentalmente pertinentes ao uso do solo. Com advento da Constituição de 1988 e da promulgação do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), o processo de construção das propostas passou a ser participativo.

A revisão do Plano Diretor de São Luís é iniciada em 2014, momento em que o objetivo do ente municipal era atualizar apenas o macrozoneamento, para logo em seguida, num mesmo processo, revisar a lei de zoneamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, que completa no corrente ano três décadas sem revisão. O processo seguiu com vícios, ilegalidades e pouca participação popular, fazendo com que o Ministério Público recomendasse a separação das revisões dos processos do Plano Diretor e do Zoneamento.

Passadas reuniões técnicas no Conselho da Cidade (CONCID), oficinas de capacitação e audiências públicas, a proposta apresentada é enviada à Câmara Municipal em 2019 com uma série de pontos polêmicos e questionáveis, como a diminuição das áreas de dunas no litoral norte e também das áreas de recarga de aquíferos, da mudança de função do Sítio Santa Eulália e da expansão substancial de territórios urbanos em detrimento de áreas rurais, para atender os interesses corporativos industriais e portuários, num espaço que abrange dezenas de comunidades, como a do Cajueiro, objeto de arbitrariedades provenientes dos poderes públicos e da justiça. 

No início de 2020, a Câmara Municipal votaria a proposta, momento em que o MPE envia, no dia 27 de fevereiro daquele ano, um documento de 14 páginas com recomendações ao legislativo municipal sobre o projeto. Tal documento se baseia em medidas legais – amparadas pelo Estatuto da Cidade – no qual a proposta não se adequava, que dentre outras questões, apresenta equívocos e omissões no que tange aos mapas de macrozoneamento (ambiental e urbano), nos errôneos recortes das dunas e suas novas delimitações e na considerável expansão do perímetro urbano sem os devidos estudos técnicos, ferindo os artigos 42-A e 42-B do Estatuto da Cidade, configurando grave omissão técnica pelo executivo municipal. Portanto, a recomendação era para que o projeto retornasse ao executivo municipal a fim de passar por correções, e que fossem observadas regras de controle social, com o crivo do Conselho da Cidade, sob pena de ajuizamento.

O Plano Diretor sob a gestão Eduardo Braide

Após o fato mencionado veio a pandemia, mas a Câmara enviou uma notificação à prefeitura sobre a recomendação recebida, e ao que se sabe, o executivo municipal silenciou. Em novembro daquele ano, Eduardo Braide chega ao Palácio La Ravardière e em fevereiro de 2021, via decreto, prorroga o mandato dos conselheiros da cidade por 1 ano ad referendum, sem fazer quaisquer consultas aos seus membros. E até a presente data não foi convocada nenhuma reunião para debater o Plano Diretor, ou seja, o atual prefeito de São Luís e seu Secretário de Planejamento (presidente do CONCID) estrangularam a principal instância de participação popular, de caráter representativo e deliberativo sobre assuntos relacionados ao município de São Luís.

Durante todo o primeiro ano de seu mandato, o prefeito Braide não abriu a boca para falar sobre o Plano Diretor, muito embora sua agenda pública incluísse reuniões com Edilson Baldez, presidente da FIEMA e Fabio Nahuz, que preside o SINDUSCON, duas entidades muito interessadas na aprovação do Plano Diretor. Não por acaso, na abertura da Feira do Empreendedor no último dia 31 de março, promovida pelo SEBRAE, o prefeito de São Luís anuncia aos empresários presentes no evento, que encaminharia para a Câmara Municipal o “novo” projeto do Plano Diretor de São Luís que, segundo ele, deve ser votado ainda no primeiro semestre de 2022.

De fato, o projeto foi apresentado ao vivo – via redes sociais – no 5 de abril nas dependências da prefeitura para um público seleto, a exemplo da presidente do INCID, Érica Garrêto, do presidente da Câmara Osmar Filho, de Edilson Baldez (FIEMA) e do vice-presidente do setor de relações de trabalho do SINDUSCON, Celso Gonçalo. O vídeo durou 10 minutos e segundo o prefeito, este foi um dia muito esperado pela cidade de São Luís.

O que chama atenção de cara é que o gestor municipal afirma que a proposta se encontra na Câmara, de lá nunca teria saído, mas mesmo assim a prefeitura estava trabalhando nele, isto já aponta uma primeira inconformidade com a recomendação do MPE. Além disso, duas questões básicas estão na explanação do prefeito e, que, segundo ele, se referem às adequações requeridas pelo MPE, a primeira é a delimitação das áreas de risco no município e a segunda a questão do perímetro urbano.

Em relação a delimitação das áreas de riscos, a recomendação de fato faz essa cobrança em seu item 8.1 e a explanação do chefe do executivo municipal cita as fontes para a elaboração do mapa, os dados do Serviço Geológico do Brasil e o Relatório de Áreas de Riscos de São Luís de 2021 elaborado pela Defesa Civil, mas não dá maiores detalhes sobre os critérios de escolha dessas áreas ou as definições do que seria “risco”.

No que se refere ao perímetro urbano, Eduardo Braide afirmou que a prefeitura fez uma re-análise respondendo às manifestações das audiências públicas, restabelecendo assim 22 localidades que haviam perdido o status de rural na proposta de 2019. Mencionando as fontes, Braide diz que a metodologia se deu a partir de imagens de satélite, dados do INCID, da SEMURH, da SEMAPA e do SEBRAE. O que o prefeito esconde é que na 43ª reunião extraodinária do CONCID, realizada em 2 de abril de 2019, o INCID elaborou um mapa urbano-rural (ver mapa 1) com base nas reivindicações massivas – sobretudo de habitantes da zona rural – de cidadãos presentes nas audiências públicas e que foi derrotada pelos votos combinados entre os integrantes do poder público e do empresariado na reunião do CONCID de maior quorum entre todas as 45 reuniões analisadas sobre a construção da proposta. O mapa que Braide diz ter sido elaborado a partir das reinvidicações das audiências públicas de 2019 é o mapa 2.

Plano diretor BraideReprodução

Observando os mapas é possível perceber que os autênticos anseios da população não foram respeitados em 2019 pelo CONCID e pela administração municipal anterior, muito menos agora pela gestão Braide, que ignora o mapa e se recusa a enfrentar o problema de frente, já que não quis interferir nos objetivos de acumulação do empresariado. 

É sabido que toda a porção costeira oeste (circulo vermelho do mapa 1), onde se encontra, dentre outras, a comunidade do Cajueiro, é de interesse dos setores industriais transnacionais que miram a construção de um mega terminal portuário a fim de escoar uma produção agrícola e mineira que extrapola os limites de São Luís e do Maranhão. Por isso a segurança jurídica é imprescindível, algo cinicamente mencionado por Eduardo Braide em sua explanação quando usa a expressão “nossa FIEMA” de que as áreas destinadas ao retroporto e outros territórios de interesse industrial foram preservadas para garantir o desenvolvimento de São Luís.

Aliás, o gestor municipal se atrela a uma racionalidade cínica, legitimada por uma sociedade capitalista neoliberal, como destaca Vladimir Safatle em sua obra Cinismo e Falência da Crítica (2008). Tal cinismo se revela pelas estreitas ligações que ele estabelece com setores corporativos, o agradecimento pela presença de representantes do setor durante a exposição da proposta é sintomática, ao mesmo tempo em que se vangloria pelo “retorno” de 22 localidades para a zona rural. 

O cinismo aparece ainda quando ele utiliza o discurso recorrente da cidade inteligente, ao mesmo tempo em que São Luís possui graves problemas no transporte público, no que se refere ao saneamento básico e na questão da acessibilidade, além dos já conhecidos gargalos ambientais. 

No caso do Plano Diretor, o gestor municipal repete cinicamente o mantra dos liberais: “vamos gerar emprego e renda, garantindo desenvolvimento com equilíbrio em São Luís”, ou seja, na prática ele defende ideias e políticas que atendem aos interesses de mercado, mas trata de fazer sua imagem brilhar nas redes sociais, como gestor trabalhador, preocupado com a população, utilizando justificativas em tom apelativo, que vão de vídeos ao vivo para além do expediente de trabalho, passando por filmagens de assinaturas de convênios e similares, até propagandas de nivelamento de bueiros nas ruas e avenidas da ilha! 

Tudo soa espontâneo, mas é apenas espetáculo. E como nos disse Debord: “tudo o que era diretamente vivido, se esvai na fumaça da representação […] sob todas as formas particulares de informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto do entretenimento, o espetáculo constitui o modelo presente da vida socialmente dominante” (A Sociedade do Espetáculo, 1992, p. 13 e 15). Tal estratégia serve para capturar a massa singularizada presente no “enxame digital” ludovicense, como na expressão de Chul Han (No enxame: perspectivas do digital, 2018, p. 29), fazendo encolher os espaços de contrapoder para o agir conjunto.

O espetáculo de Braide escondeu e não obedeceu a questões essenciais expostas na recomendação do MPE. Não foi mostrado em sua exposição, por exemplo, o novo mapa de macrozoneamento urbano (Item 6), tampouco se tocou nas questões referentes às dunas (Item 7) e, por fim, a prefeitura ignorou quase que completamente o item 8.2, que trata das determinações do Art. 42-B do Estatuto da Cidade.

 O tratamento que a administração Braide tem dado ao Plano Diretor tem servido para nos mostrar que os interesses de mercado continuam a prevalecer. E na contradição entre o cinismo e o espetáculo, quem sai perdendo sempre são as populações carentes e vulnerabilizadas de São Luís, ameaçadas em seus modos de vida e na (re)produção de suas existências.

* Luiz Eduardo Neves dos Santos é Geógrafo e Professor da UFMA