Como se sabe, o Tribunal Superior Eleitoral (STE) acatou o pedido do Partido Liberal (PL), do presidente da República, Jair Bolsonaro, e vetou manifestações políticas no festival Lollapalooza, em São Paulo, após Pabllo Vittar ter levantado uma bandeira com a foto de Lula, virtual candidato à presidência pelo Partido dos Trabalhadores (PT). O órgão da Justiça Eleitoral estipulou uma multa de R$ 50.000,00 por ato de descumprimento da proibição ao que foi caracterizado como propaganda eleitoral. Mas a medida teve efeito contrário ao previsto pelo seu autor, o ministro do TSE Raul Araújo, e desencadeou uma série de protestos contra o chefe de Estado.
Segundo juristas, advogados eleitorais e entidades de advocacia, ela pode ser caracterizada como censura prévia e como um ato contra a liberdade de expressão, contrariando o ambiente democrático.
Antes de lembrar certas páginas da história da resistência cultural no Brasil, como um repertório de ações que pode ser retomado por artistas atuais, vale ressaltar a impropriedade da decisão do TSE. Segundo juristas, advogados eleitorais e entidades de advocacia, ela pode ser caracterizada como censura prévia e como um ato contra a liberdade de expressão, contrariando o ambiente democrático. Isso porque não se deve proibir previamente uma manifestação política; o procedimento adequado é acionar depois a Justiça, caso seja detectado possível abuso. Além disso, não houve pedido de voto específico a Lula, que sequer é candidato oficial. Esse foi o mesmo órgão que vetou a exibição de uma mensagem atribuída ao ex-presidente no horário político de Fernando Haddad, com o pedido de votos para esse candidato, em 2018. E que foi pouco enérgico (empregando aqui um eufemismo) no combate às práticas de fake news, tão prejudiciais ao representante do PT na mesma eleição presidencial.
Não apenas especialistas da área do Direito se colocaram contra a proibição imposta pelo TSE. Em suas redes sociais, Caetano Veloso se mostrou revoltado com a sugestão de punição a um festival de música porque artistas expuseram a sua opinião política, e pediu para que a Constituição fosse respeitada. Não custa lembrar que esse personagem central da cultura brasileira tem uma longa atuação contra a censura no Brasil. Em 1968, pouco antes do Ato Institucional N. 5 (AI-5), ele foi intimidado pelo promotor Carlos Mello e pelo delegado Fontoura Carvalho durante a sua temporada na boate Sucata, no Rio de Janeiro, ao lado de Gilberto Gil e dos Mutantes. A primeira autoridade exigiu que Caetano Veloso se comprometesse a não se pronunciar entre as músicas do show, como condição para o seu não cancelamento. O compositor não apenas se recusou a assinar o documento apresentado por conta própria pelo delegado, como denunciou o episódio no decorrer do espetáculo. A casa de espetáculos foi fechada na manhã seguinte, mas o autor de “É proibido proibir” se manteve fiel a sua palavra cantada. Já no contexto da Nova República, em 1986, o então presidente José Sarney proibiu pessoalmente o filme francês Je vou salue, Marie, de Jean-Luc Godard, após pressão da Igreja Católica. O cantor Roberto Carlos endossou o veto, o que levou o baiano de Santo Amaro da Purificação a criticar duramente o seu colega, atentando para o absurdo da postura de um artista que apoia a censura a obras de arte, por motivos religiosos. Por fim, com Fernando Henrique Cardoso na presidência, em 1997, Caetano Veloso colocou-se publicamente contra a prisão dos integrantes do Planet Hemp, acusados de fazer apologia às drogas. Um contraste a esse histórico foi o seu apoio à interdição de biografias não autorizadas. Seja como for, é interessante que o líder do grupo musical citado, Marcelo D2, tenha anunciado que entraria com recurso no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a tentativa de mordaça perpetrada pelo TSE, comentada neste texto. O rapper carioca tem combatido o governo Bolsonaro nas redes sociais.
Outras manifestações provenientes de artistas na internet vêm reforçando a pressão contra aquele órgão da Justiça Eleitoral, como a de Anitta, embora curiosamente mediada pelo individualismo e a lógica do mercado, ao lamentar em tom irônico que compraria uma bolsa a menos com o valor da multa, e perguntar se a proibição valia para festivais internacionais, pois costumava se apresentar nesse tipo de evento. Os próprios participantes do Lollapaloza tomaram para si a tarefa de lutar pela liberdade de expressão, sendo que essa atitude talvez possa indicar o reaparecimento de práticas consagradas por agentes do campo musical entre os anos 1960 e 1980: a resistência cultural e a luta contra a censura. A atitude de Pabllo Vittar foi acompanhada por nomes de diferentes gerações como Detonautas, Djonga, Emicida, Fresno, Gloria Groove, Jão, Kehlani, Ludmilla, Lulu Santos, o já citado Marcelo D2, Marina Diamandis, Marina Sena, PK e Silva. Gritos de “abaixo a censura”, “Fora Bolsonaro” e “Olé, Olé, Olé, Olá, Lula, Lula” foram entoados nos palcos do festival e reforçados pelo coro da plateia.
Quem sabe o comportamento verificado no festival pode significar o início da retomada de uma importante tradição no Brasil, que é a do engajamento político de músicos conhecidos pelo grande público, com o objetivo de conscientizar a população contra governos ou regimes políticos promotores do arbítrio. Tendo em vista as eleições de 2022 e o combate ao bolsonarismo (que continuará vivo mesmo em caso de derrota do seu líder), tal mudança de comportamento ocorreria em bom momento.
Vale lembrar rapidamente a experiência da MPB, cujos agentes promoveram atos de insubordinação contra a censura em tempos mais duros do que os atuais, e assim não cessaram o combate à presença dos gorilas no comando do país, apesar das dificuldades. Havia o artifício da “linguagem da fresta”, que tentava passar o recado político por meio de metáforas e jogos de palavras, dentro do limitado espaço existente para esse exercício; o do “samba duplex”, que promovia um duplo sentido nas letras que poderiam ser entendidas como sendo de amor, mas também de protesto; o das imagens banais da natureza misturadas à mensagem subversiva, para distrair o censor; o da canção vestida com ritmos latinos e palavras em espanhol para simbolizar a luta dos povos em uma América Latina unificada pelo jugo de militares lacaios dos EUA; o da presença do compositor na polícia federal para “explicar” que a sua obra não tinha a abordagem política que parecia ter, ou mesmo negociar a retirada de palavras, versos ou estrofes proibidas. Depois que a censura prévia caiu no fim de 1978, a linguagem do protesto musical pôde ser mais aberta e afirmativa, assim como os seus promotores passaram a subir em palanques de candidatos a cargos eletivos e de movimentos de oposição massivos, marcadamente, as Diretas Já. Artistas também criticaram a ditadura em entrevistas na grande imprensa (tanto a nacional, quanto a internacional) nos contextos em que havia relativa liberdade de expressão, ou em festivais com características bem diferentes das do Lollapalooza – os quais poderiam ser programas de televisão com caráter competitivo, eventos para divulgar o elenco de grandes gravadoras, festas para promover o 1º de Maio, ou ainda comemorações de marcos como a Declaração dos Direitos Universais do Homem. Por fim, alguns faziam doações de cachês para sindicatos, enquanto outros mantinham contatos com grupos de luta armada. Trabalhos mais recentes revelaram que os cantores chamados cafonas questionaram aspectos da sociedade e do governo durante os “anos de chumbo”, tendo sido censurados. E uma pesquisa minimamente aprofundada mostraria que os roqueiros que atuaram profissionalmente entre as décadas de 1960 e 1980 compartilharam essa experiência.
A resistência cultural não foi exclusiva da MPB, apesar da ênfase assistida em sua produção. Da mesma forma, os músicos obviamente não sustentaram sozinhos a resistência cultural naquele período, tendo atuado ao lado de artistas plásticos, atores, cineastas, diretores de teatro, escritores, entre outros agentes, com variados matizes e intersecções (fossem eles liberais, comunistas, contraculturais ou, mais tarde, relacionados com a nova esquerda). Assim, esses companheiros de viagem se engajaram em uma realidade na qual o debate e a ação cultural eram entendidos “não apenas como uma tática de crítica ao regime, mas como um imperativo da ‘boa consciência’ que deveria manter vivos os valores democráticos e libertários”, em contraponto à ditadura brasileira e ao sistema socioeconômico por ela sustentado (NAPOLITANO, 2017, p. 19).
Que o episódio do Lollapalooza desperte novas gerações de artistas para o combate ao fascismo no Brasil atual.
Enquanto o cancioneiro político empregado nos protestos de rua ou realizado das janelas dos prédios contra o governo Bolsonaro continua sendo aquele majoritariamente composto durante a ditadura militar, os cantores que iniciaram a crítica ao atual processo político também ganharam projeção em tal época: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento, João Bosco e Aldir Blanc, por exemplo. Que o episódio do Lollapalooza desperte novas gerações de artistas para o combate ao fascismo no Brasil atual. Se ainda vivemos em regime político dominantemente democrático-burguês, ele já “contém elementos da face autoritária (militarizada) e fascista a que se referia Florestan [Fernandes] quando examinava a ditadura” (MATTOS, 2020, p. 236). Essa é uma boa oportunidade para superar experiências bizarras do engajamento artístico recente, como a criação do “Morobloco”, voltado para a atuação nas micaretas coxinhas que precederam o golpe de 2016. Podemos avaliar o possível despertar como tardio, considerando que até um secretário de Cultura com arroubos nazistas foi apresentado ao público – substituído por uma nada intelectualizada ex-atriz de telenovelas simpatizante da ditadura militar. Mas a boa notícia é que a tentativa de proibição da manifestação política no Lollapalooza paulista resultou no maior comício pró-Lula realizado até agora, sendo esse o único candidato com chances reais de vencer Bolsonaro nas urnas. E isso significa um passo além em termos de definição política nos pronunciamentos (também relevantes) feitos até então por artistas do mainstream, com recomendações mais genéricas para que os jovens tirassem o título de eleitor para votar contra o atual presidente. Até aqui, esse foi o principal desdobramento do atrevimento do TSE em censurar manifestações políticas em festivais de música de expressão midiática.
ATUALIZAÇÃO: quando este texto já havia sido finalizado, foi divulgada a informação de que o PL solicitou ao TSE a retirada da ação contra o Lollapalooza.
Bibliografia
MATTOS, Marcelo Badaró. Governo Bolsonaro: neofascismo e autocracia burguesa no Brasil. São Paulo: Usina Editorial, 2020.
NAPOLITANO, Marcos. Coração civil: a vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985) – ensaio histórico. São Paulo: Intermeios: USP – Programa de Pós-Graduação em História Social, 2017.
*Romulo Mattos é professor e historiador.
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