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CULTURA

Rachel de Queiroz e as lutas internas do Partido Comunista no começo do século XX

Bruno Rodrigues, de Fortaleza (CE)
Rachel de Queiroz. Ela usa óculos, tem cabelos brancos, está com um colar e sorri para a foto.
“Os “tamancos” entraram a hostilizar os “gravatas”, a desmascará-los, a exigir que se “proletarizassem”
(QUEIROZ, 1987. p. 29)

Há um curioso conflito presente em Caminho de Pedras, romance de 1937, da escritora cearense Rachel de Queiroz. A divergência entre “tamancos” e “gravatas” parece não só ter paralisado as ações políticas levadas a cabo pelo partido, de modo que a vida interna da organização àquele período se resumiu, em boa medida, ao permanente conflito entre os setores proletários contra os intelectuais, como também impediu o personagem Roberto de obter êxito na tarefa para a qual retornara do Rio de Janeiro para sua terra natal.

Ocorre que tal conflito de fato atravessou a vida política interna do PCB no final dos anos 20 e começo dos anos 30 de modo que, ao fim e ao cabo, o partido praticamente chegou na década de 30 com sua direção central já quase totalmente proletarizada e “o posto de secretário-geral do partido foi assumido pelo médico Fernando de Lacerda, “maltrapilho, enfrentando a pobreza resolutamente, e trovejando contra o intelectualismo” (DULLES, 1977, p. 366, apud BIANCHI, 2015), período ativamente vivenciado pela autora do romance em questão e por ela retratado.

Tamancos versus gravatas

Caminho de Pedras surgiu no âmbito do cenário cultural nacional em 1937, portanto, em um contexto de consolidação da república e de marcada repressão política sobre o, ainda embrionário, movimento operário e sindical brasileiro. 

No epicentro do romance está a interessante figura de Roberto, jornalista cearense que, tendo passado a última década a serviço da regional fluminense do PCB – Partido Comunista Brasileiro, retorna à capital cearense para reagrupar e realinhar o partido por essas terras. Luís, um dos operários que surgem na obra de Queiroz e um dos poucos afeitos ao personagem Roberto, é quem se encarrega de apresentá-lo aos demais

Companheiros, este aqui é o camarada Roberto, que vocês já devem conhecer o  nome. É um rapaz inteligente que saiu da classe dele para ajudar o proletariado. Conversou com os companheiros do Rio e traz ordens para organizar aqui as bases de uma Região. […] (QUEIROZ, 1987, p. 6)

No que responde Roberto:

Camaradas, eu venho de ordem dos companheiros do Rio, como disse o nosso companheiro Luís, fundar as bases de uma Região da organização aqui. Os camaradas do Rio me escolheram porque sabem que eu não meço sacrifícios por amor da nossa classe. (QUEIROZ, 1987, p. 7)

Todavia, Roberto não obtém sucesso na tarefa para o qual a direção do seu partido lhe designa. Ao chegar na capital cearense para se encontrar com os seus camaradas de partido, sendo ele um jornalista, logo tido aos olhos dos demais como um intelectual, ou um “de gravata”, portanto, alguém alheio ao meio social e cultural dos operários, sofre resistência por parte de seus pares comunistas de origem proletária, retratados em Caminho de Pedras como os “de Tamanco”, numa controvérsia aparentemente bizantina que, em boa medida, atravessa o romance e divide o conjunto de seus personagens. Tal conflito surge quando entra em cena o operário preto Vinte-e-um que, ao ver Roberto afirmar seu “amor” pela classe dos proletários, o indaga com certo tom inquisitório e de desconfiança: “Qual é a classe do camarada?” (QUEIROZ, 1987, p. 7).

Indo mais além, Vinte-e-Um não poupa no tom hostil que utiliza ao dirigir-se a Roberto, para demonstrar seu rechaço e indisposição para com intelectuais, numa postura de veemente desconfiança anti-intelectual.

É porque nós já estamos fartos, […], de ir atrás dos doutores, e os doutores depois nos dão o fora. O operário tem que andar com seus pés, é o que eu penso. […] Ele pode ser sincero, mas chegando aqui é pra dominar. Vem organizar, vem chefiar, vem controlar… O operário é que deve guiar o operário e não um elemento estranho à classe! (QUEIROZ, 1987, p. 8).

Do contrário a relação dos intelectuais para com os operários era de uma estranha devoção, algo messiânica, algo romântica, algo franciscana. Fato observável quando Roberto responde a indagação de Vinte-e-um como quem busca a todo custo se justificar: “Sou um jornalista pobre, sou um revoltado, há muito tempo que desertei da burguesia. Sou um explorado como vocês” (QUEIROZ, 1987, p. 7).

“Proletarização” como manobra burocrática

Tendo apenas 14 anos quando do lançamento de Caminho de Pedras, o PCB – Partido Comunista Brasileiro, agremiação política em cujas fileiras a própria autora da obra em questão agrupou-se, ainda engatinhava. No começo da década de 30 o PCB estava sob a direção de lideranças intelectuais como Aristides Lobo, Otávio Brandão, Astrogildo Pereira e outros.

Todavia, entre os meses de abril e maio de 1930, ocorre uma reunião do chamado Secretariado Sul Americano, que funcionava como uma espécie de sub-birô internacional com sede em Montevidéu, mas subordinado ao Partido Comunista da União Soviética e à Internacional Comunista, cujo papel seria o de alinhar a atuação e o funcionamento dos Partidos Comunistas na América Latina. No que toca ao funcionamento dos partidos, essa reunião teve como objetivo “proletarizar” a direção central da seção comunista brasileira, o que em outras palavras significava expurgar de suas fileiras as lideranças intelectuais. Objetivo para o qual a utilização de expedientes políticos não obedecia a critérios muito escrupulosos: “Em todos os partidos da Internacional dirigentes experientes foram substituídos por operários, muitas vezes sem o preparo necessário para as novas funções e mais dóceis às determinações da direção moscovita” (BIANCHI, 2015).

Na verdade, estava em curso uma operação que buscava afastar dos centros de decisão partidária aqueles militantes mais críticos, mais questionadores e capazes de pensar com a cabeça própria, sob o pano de fundo da “proletarização partidária” e da luta contra os elementos pretensamente pequeno-burgueses no interior do partido, objetivo para o qual os setores interessados passaram a estimular um culto quase místico ao modo de vida operário. Segundo Del Roio (1990):

Praticamente essa proletarização deverá efetuar-se por uma autocrítica severa dos erros e debilidades do partido decorrentes de uma linha política falsa, libertando-o definitivamente da ideologia pequeno-burguesa que o tem dominado até aqui  (…) e por uma consequente modificação na composição social do CC a ser renovado em próxima Conferência do partido, segundo um critério que assegure absoluta preponderância de proletários ligados diretamente às grandes empresas e provados pelos últimos combates de classe (apud DEL ROIO, 1990, p. 145, apud BIANCHI, 20015).

Situação muito similar pela qual passa Roberto, nas páginas do referido romance. Frustrado, diante da rejeição dos camaradas operários, Roberto sofria: “Tinha pensando em ser herói e receber aclamações – e era tratado como um intrometido e o que recebia era pontapés…” (QUEIROZ, 1987, p.34). Mas sua luta contra aquela mentalidade estreita que ia impondo-se entre seus camaradas, não só não lhe trazia resultados positivos, como o isolava ainda mais dos “tamancos”: Pois eu acho isso tudo um histerismo. E improdutivo. O que eles combatem na gente, o que os choca, é o espírito que a gente adquiriu na literatura, no meio onde vivemos, a mentalidade que fomos formando desde meninos […] (QUEIROZ, 1987, p.31).

Segundo narra Bianchi (2015), a própria autora de Caminho de Pedras, já naquele momento uma intelectual prestigiada, chegou também a sofrer não poucos constrangimentos por conta de sua atividade literária, vista com desconfiança pelas instâncias dirigentes do partido, já “proletarizadas”: 

A escritora Rachel de Queiroz narrou a Foster Dulles um episódio que revela até que ponto havia se chegado. Ela já era militante do PCB quando seu primeiro romance fez sucesso. O segundo, intitulado João Miguel, já se encontrava com  o editor quando ela foi convocada pelo partido a prestar esclarecimentos. Reuniu-se, então com um emissário da direção, que ela identificou como “camarada Silva”, o qual a recebeu vestindo camiseta, algo muito incomum à época, e com os pés sobre a mesa exigiu que ela lhe desse uma cópia do manuscrito. Um mês depois Silva a recebeu com a mesma atitude para informar-lhe que o partido era contra a publicação do romance e exigia mudanças na narrativa e nos mais de trinta personagens. A escritora se recusou a fazer isso e pouco tempo depois foi expulsa do PCB acusada da “fascista, agente policial e fracionalista” (DULLES, 1977, p. 404-405, apud BIANCHI, 2015).

Ao fim e ao cabo, as contendas entre “tamancos” e “gravatas”, retratadas no romance queirosiano e vivenciadas nas instâncias internas do jovem PCB, não tinham como objetivo trazer o partido para as bases, aproximá-lo do povo ou afastá-lo da influência de uma suposta elite intelectual alheia aos trabalhadores. Na verdade, todo o culto romântico ao proletariado, pari passu ao brutal preconceito que se alimentava contra lideranças intelectuais, a rigor qualificadas tacanha e pejorativamente como “pequenos burgueses”, “trotskistas”, etc, só serviram para impor um controle político que, invariavelmente, paralisou a ação partidária em um período em que o partido estava ilegal e o país encontrava-se sob a repressão do governo varguista de turno. Assim, Bianchi (2015) assinala que, “A influência do partido entre os trabalhadores não aumentou depois do afastamento dos intelectuais do partido”. Nesse sentido, é bastante emblemática a inquietação manifestada pelo, assim chamado, “camarada Rufino”

Camaradas, nós estamos perdendo um tempo precioso! É por causa da nossa desunião que nada se faz até hoje! Vocês não se lembram que de todos os milhares de trabalhadores desta terra, só nós oito – só esta triste mão-cheia de homens – só nós é que temos alguma consciência? E nós mesmos, levamos o tempo discutindo besteira […]. Agora vamos começar alguma coisa. Depois vocês se esfolem, degolem o camarada Roberto. Mas agora é fazer, se mexer. Senão eu me levanto e vou-me embora, porque terei visto que vocês só querem é conversar. (QUEIROZ, 1987, p.8).

 

Referências
BIANCHI, Álvaro. A “proletarização” do PCB: pequena crônica de um golpe burocrático (1930 – 1934). Disponível em Blog Junho <http://bit.ly/37RKRsy>. Acesso em 25/11/2019.
QUEIROZ, Rachel de. Caminho de pedras. 10. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1987.