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Colunas

A Comuna de Paris, a revolução prematura

O aniversário da Comuna de Paris nos convida a refletir sobre o seu significado histórico. Quais são as lições que a primeira revolução operária que conquistou o poder, ainda que de forma efêmera, nos legou?

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

 A história nos desmentiu, bem como a todos que pensavam de maneira análoga. Ela demonstrou claramente que o estado de desenvolvimento econômico no continente ainda estava muito longe do amadurecimento necessário para a supressão da produção capitalista; demonstrou-o pela revolução econômica que, a partir de 1848, apoderou-se de todo o continente (…)tornando a Alemanha um país industrial de primeira ordem, tudo isso em bases   capitalistas, o que significa que essas bases tinham ainda, em 1848, grande capacidade de expansão. [1]
Friedrich Engels

O aniversário da Comuna de Paris nos convida a refletir sobre o seu significado histórico. Quais são as lições que a primeira revolução operária que conquistou o poder, ainda que de forma efêmera, nos legou? O desafio é recuperar as conclusões que Marx e Engels nos deixaram, mas recolocando, também, na perspectiva da História o tema da vigência do programa da revolução social anticapitalista, na aurora do século XXI.

A derrota dramática da Comuna teve, a seu tempo, imensuráveis consequências para o movimento operário francês e para a vida da I Internacional, porque as derrotas históricas não passam impunemente: geram desânimo, desesperança e muita dispersão e confusão.

Mas das cinzas do massacre aos Comunnards, ao longo de um intervalo de menos de duas décadas, nasceu e se reorganizou um novo movimento e a corrente internacionalista animada pela influência das idéias de Marx viu a sua força política se multiplicar por dezenas de países e o programa da revolução socialista veio a ser assumido pela II Internacional e pelo mais influente partido no seu interior, o SPD alemão.

Em 1895, pouco antes de sua morte, Engels reúne sob o título de “As lutas de classe em França” os artigos que Marx tinha escrito sobre a revolução francesa de 1848 e escreve a famosa introdução que ficou conhecida como o seu Testamento político: um texto que associa um balanço da revolução de 1848 às lições da derrota da Comuna e se encerra com uma reflexão sobre as possibilidades e limites da experiência de cinco anos de trabalho e atividade legal do SPD alemão.

Teria faltado à Paris operária e vermelha o apoio social da França “profunda”, a maioria camponesa, e teria faltado à classe operária de Paris uma direção marxista

Nele Engels retoma as apreciações críticas que Marx tinha formulado no calor dos acontecimentos da Comuna sobre os problemas da estratégia de luta pelo poder e pelo socialismo. Engels afirma, também na Introdução, que a Comuna teria enfrentado a mesma encruzilhada de desencontro histórico, embora , curiosamente chegue a essa conclusão, por um outro caminho: teria faltado à Paris operária e vermelha o apoio social da França “profunda”, a maioria camponesa, e teria faltado à classe operária de Paris uma direção marxista

Reapresenta e aprofunda, também, uma teoria histórico-sociológica da alienação (esboçada nos Manuscritos, e radicalizada na Ideologia Alemã) sobre os limites possíveis da consciência social, que define a ideologia como a expressão de um ocultamento de uma realidade contraditória e invertida. Ou seja, como uma representação imaginária do real. Em outras palavras, reconhece que as classes em luta fazem a história, mas combatem em um terreno definido pelos limites que as ideologias do seu tempo estabelecem, ou seja, combatem em um terreno em que ilusão consciência estão emaranhados.

O famoso “testamento” de 1895 é uma inflexão nas indicações que Marx, e o próprio Engels, tinham antes elaborado sobre as relações entre os tempos históricos e os tempos políticos da transição pós-capitalista. Essas reflexões novas tinham como fundamentação essencial a nova realidade de um partido marxista que havia, pela primeira vez, conquistado influência de massas e passava a ser um elemento objetivo da grande política. Mas não se encontrarão nele antecipadas, avant la lettre, as discussões programáticas que dividirão vinte anos depois o marxismo de forma irreversível entre reformistas e revolucionários. Essa linha de interpretação já foi ensaiada e seus resultados não são convincentes.

Devemos ler os textos dos clássicos com a óptica de quem precisa tomar posição. Enunciemos a questão: as derrotas de 1848 e da Comuna colocaram ou não em cheque, para Marx e Engels, a definição que reconhecia, pelo menos desde o Manifesto, que a abertura de uma época de revolução social, ou seja, um período em que as condições objetivas, no sentido de condições materiais, econômico-sociais, estavam reunidas e maduras nos países mais avançados para que o proletariado se constituísse em classe politicamente independente na luta pela sua revolução anticapitalista?

A teoria da revolução de Marx contém uma reflexão histórica sobre o modelo da grande revolução francesa que teria revelado que existem tendências internas à dinâmica do processo revolucionário, que se desenvolve em permanência, e que se traduzirá no Adresse de 1850 à Liga dos comunistas, na defesa da necessária radicalização ininterrupta da revolução democrática em revolução proletária, isto é, a perspectiva da revolução permanente.

Durante os anos da onda revolucionária aberta em 1848, Marx e Engels alimentavam duas perspectivas que estavam articuladas entre si: (a) a compreensão de que a luta contra o absolutismo e pela democracia só poderia triunfar com métodos revolucionários, isto é, a necessidade de uma revolução  pela democracia, que é analisada no Adresse, em especial para a Alemanha, mas o critério era o mesmo para a França, como a ante-sala da revolução proletária, do que se deve concluir um programa de luta por duas revoluções, ainda que com um intervalo abreviado entre ambas; (b) a compreensão de que existe um desafio histórico a ser vencido: a construção da independência política de classe, condição sine qua non, para que a engrenagem de radicalização que, grosso modo, poderia ser qualificada como a “fórmula jacobina”, não resulte em um estrangulamento da revolução proletária, ou seja, em um novo thermidor, e ao contrário, garanta a mobilização contínua dos trabalhadores pelas suas reivindicações e antecipe e abrevie o intervalo entre as duas revoluções.

O primeiro prognóstico histórico não se confirmou. A Segunda metade do XIX demonstrou que, se estava esgotada a época histórica das revoluções burguesas, (com a possível exceção da guerra civil nos EUA, que poderia com razão, não só pelo programa, mas, sobretudo pelas forças sociais liberadas, e pelos métodos, ser interpretada como a segunda revolução americana), a revolução não era o primeiro, nem o único caminho para burguesia, e as transições tardias encontraram uma via histórica, pelo alto, para abrir o caminho.

Mas só a espantosa capacidade de antecipação histórica, o rigor de método que permite prognósticos visionários, unidos a uma audácia teórica, que está sempre alerta aos novos desenvolvimentos da realidade, podem explicar que Marx e Engels, em meados do XIX, tenham prefigurado alguns dos elementos que serão chaves para compreender a dinâmica interna das revoluções do séc. XX.

Marx em 1848/51 ainda tinha expectativas no possível desenlace de uma revolução democrática na Alemanha, e se a burguesia não ocupasse o lugar de força motriz, trabalhava com a hipótese de que a pequena-burguesia a substituísse e, portanto, a hipótese estratégica preferencial ainda era um projeto de revolução por etapas: intuía, no calor do processo, que os tempos históricos a época das revoluções burguesas se esgotava, e apesar de uma superestimação das possibilidades do proletariado alemão (e também francês), mantinha prudentes reservas sobre as possibilidades de uma revolução proletária, que não fosse preparada e precedida por uma revolução democrática.

Na segunda metade do XIX, o marxismo nasce em um intervalo histórico em que a burguesia europeia teme o recurso aos métodos revolucionários, porque está consciente de que quem semeia ventos colhe tempestades. Mas, por outro lado, a sua ascensão econômico-social lhe permite encontrar outras vias para consolidar o seu domínio sobre o Estado e a sociedade e, nesse sentido, não precisa mergulhar no turbilhão de uma mobilização de massas, que não é difícil despertar, mas pode ser extremamente perigoso perder o controle.

A mesma questão, a angústia do revolucionário que vive na contracorrente da época ou situação histórica ressurge, por um outro ângulo, na famosa e injustiçada introdução de 1895, em que Engels retoma o balanço de época e a discussão sobre a permanência da radicalização social no processo revolucionário.

NOTA
[1] ENGELS, Friedrich. “Introdução à A Guerra civil na França” In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume2. p.48.

*publicado originalmente em Revista Fórum