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TEORIA

Monark, “Anarco”Capitalismo e o Fascismo: algumas considerações sobre capilarização de projetos de poder

Raphael Almeida Dal Pai*
Monark
YOUTUBE/REPRODUÇÃO

O poderio militar do fascismo foi aniquilado na guerra. No entanto, o desenvolvimento posterior ao fim da guerra mostra que a destruição política, organizativa e, sobretudo, ideológica do fascismo é bem mais lenta e difícil do que muitos pensavam. Do ponto de vista político porque alguns homens de Estado, que se proclamam enfaticamente democratas, consideram os fascistas uma espécie de reserva sua e, por isso, abrigam-nos e até os apoiam. E do ponto de vista ideológico porque o fascismo se revela, na sequência da fragorosa derrota de Hitler, bem mais resistente do que muitos imaginavam.

(Gyorgy Lukács)

Introdução

Recentemente, as redes sociais entraram em efervescência por conta de um episódio do Flow Podcast onde, um de seus (ex)apresentadores, Bruno Monteiro Aiub mais conhecido como “Monark” defende a liberdade de uma pessoa poder expressar livremente ser “anti-judeu”, bem como a possibilidade de grupos favoráveis aos ideais nazistas de se organizarem em forma de partido político.

No programa, estavam juntos à mesa, o deputado federal Kim Kataguiri (PODEMOS), Tabata Amaral (PSB) e Igor Coelho (Igor 3K), (ex)sócio de “Monark” no podcast. Tamanha foi a repercussão, que a fala de “Monark” levou a uma debandada de patrocinadores, seu desligamento do Flow, abertura de investigação pelo possível crime de apologia a símbolos e discursos de ódio, entre outras. 

Dada a grande repercussão, muito já foi dito sobre, inclusive sobre como a fala de “Monark” tem uma possível relação com a forma como o “anarco”capitalismo compreende a liberdade de expressão. Porém, ainda não vi nenhuma análise que investigue e de fato consiga aproximar “Monark” de aparelhos e intelectuais que disseminam o pensamento “ancap”. 

Este é o objetivo deste texto: explorar a possibilidade de relacionar a fala de “Monark” com publicações o Instituto Ludwig Von Mises Brasil (IMB). Neste sentido, o texto se divide três partes. Primeiramente, analisaremos os escritos de Von Mises sobre o fascismo e sua trajetória na Áustria na década de 1930. Em seguida, publicações do IMB sobre fascismo e discriminação. Por fim, por meio das entrevistas e publicações de Raphaël Lima (Ideias Radicais) e Hélio Beltrão (IMB) cedidas ao Flow, bem como publicações nas redes sociais de intelectuais ligados ao IMB, para perceber como a polêmica foi tratada por estes aparelhos e os sujeitos de o compõe.

Será possível perceber que a defesa de “Monark” por estes aparelhos, perpassa a relativização do fascismo e sua equiparação com comunismo. Além de tirar o foco sobre as semelhanças entre a fala de “Monark”, a equiparação entre fascismo e comunismo, opera também como oportunidade para criminalizar o comunismo; ação que é sistemática nas publicações do IMB e na fala de seus intelectuais nas redes e outros veículos midiáticos. Sobre a relação entre a fala de “Monark” e o pensamento “anarco”capitalista, ao coloca-la em paralelo com as considerações de Mises sobre o fascismo, bem como a “liberdade para discriminar” defendida pelo IMB, percebe-se muitas semelhanças, podendo apontar a fala de “Monark” como resultante concreto da disseminação do pensamento “ancap” por aparelhos como o IMB.

Mises e o fascismo

Em sua primeira obra que procurava estabelecer os principais aspectos do liberalismo (1927), Mises tece alguns comentários sobre o fascismo. Muito embora sua conclusão seja contrária, o economista austríaco o considerava uma saída emergencial em face ao avanço do comunismo. Aliás, considerava este como o principal causador do surgimento do fascismo:

As ações dos fascistas e de outros partidos que lhe correspondiam era reações emocionais, evocadas pela indignação com as ações perpetradas pelos bolcheviques e comunistas. Ao passar o primeiro acesso de ódio, a política por eles adotada toma um curso mais moderado e, provavelmente, será ainda mais moderado com o passar do tempo. (2)

Nota-se que, Mises procura defender o fascismo como uma mera reação contra o comunismo. Ou melhor, não é qualquer reação, mas sim conduzido pelas emoções momentâneas que, uma vez cessadas as ameaças, tende a se tornar mais moderado. Sendo que tamanha moderação estaria atrelada ao fato “de que os pontos de vista tradicionais do liberalismo continuam a exercer influência inconsciente sobre os fascistas (3).

Mais adiante Mises afirma que a diferença entre fascismo e liberalismo não residiria sobre a legitimidade ou não do uso da violência:

Ora, não se pode negar que o único modo pelo qual alguém possa oferecer resistência efetiva contra assaltos violentos seja por meio da violência. Contra as armas dos bolcheviques, devem-se utilizar, em represália, as mesmas armas, e seria um erro demonstrar fraqueza ante os assassinos. Jamais um liberal colocou isso em questão. (4)

A diferença residiria, basicamente que para se manter o fascismo sempre dependia da violência, enquanto uma vitória mais estável e de longo prazo dependeria das “armas do intelecto” (5). Mises então encerra suas considerações sobre o fascismo de forma elogiosa:

Não se pode negar que o fascismo e movimentos semelhantes, visando o estabelecimento de ditaduras, estejam cheios das melhores intenções e que sua intervenção, até o momento, salvou a civilização europeia. O mérito que, por isso, o fascismo obteve para si estará inscrito na história. Porém, embora sua política tenha propiciado salvação momentânea, não é o tipo que possa prometer sucesso continuado. O fascismo constitui um expediente de emergência. Encará-lo como algo mais seria um erro fatal. (6)

Muito embora Mises encerre suas considerações apontando que considerar o fascismo uma solução mais durável seria um “erro fatal”, admite sua importância, inclusive considera que o fascismo teria salvado a civilização europeia. Não se pode negar a existência de uma tônica elogiosa ao fascismo, procurando inclusive justificar a violência cometida.

A relação de Mises com o fascismo não se encerra em sua obra. Importante destacar que Mises também trabalhou para o governo fascista de Engelbert Dollfuss. Emigrando da Áustria apenas em 1940. Segundo uma de suas principais e mais extensas biografias, Mises começa a trabalhar para o governo austríaco três anos após a publicação de “Liberalismo”, em 1930:

Em 1930, o governo austríaco pede para Mises juntar-se a Comissão Econômica em caráter ad hoc, para estudar as causas das dificuldades que assolavam o país: desemprego permanente alto (em 1929, uma soma de 200.000 ou 14 por cento dos trabalhadores da indústria e comércio estavam desempregado), numerosas falências, instalações produtivas paradas, e a falta de rentabilidade de muitas empresas austríacas. Mises era um dos três membros anônimos do Comitê Editorial que acabou publicando o relatório final de dezembro de 1930. Os outros dois membros eram Edmund Palla, um líder sindical e Secretário da Câmara do Trabalho, e Engelber Dollfuss, um líder em ascensão do Partido Cristão-Socialista que mais tarde se tornaria chanceler da Áustria. (7)

Este parece ser o primeiro encontro – pelo menos profissionalmente – de Mises com o futuro chanceler da Áustria. De acordo com sua biografia, Mises teria assumido como membro da Câmara de Comercio e Industria da Baixa Áustria [Lower Austrian Chamber of Commerce and Industry], ainda em 1909 (8), cargo que ocupará até 1940, quando se evade da Áustria. A posição de Mises na Câmara não é muito clara; porém em uma das fontes citadas por seu biógrafo, Mises ao descrever sua posição, afirma ser algo como o “economista do país”. (9)

Importante aqui fazer algumas breves considerações sobre o austro-fascismo. São parcas as pesquisas traduzidas, ou mesmo encampadas no Brasil sobre a história e características do fascismo austríaco. Segundo Michael Mann, a Áustria teria sido o único país a contar com dois partidos fascistas: a Frente Patriótica (partido de Engelbert Dollfuss e seu sucessor Kurt Schuschnigg, fundado em 1933 (10)) e o Partido Nazista Austríaco. Este teria surgido muito antes do alemão, ainda em 1903. (11)

Muito embora os dois partidos serem de orientação fascista, possuíam projetos e bases um pouco distintas. Enquanto o Partido Nazista fazia clara referência ao regime alemão, a Frente Patriótica possuía uma forte ligação com os social-cristãos, marcadamente conservadores e católicos com tendencias autoritárias. (12)

Em seu desejo de modernizar e mobilizar, ao mesmo tempo contando com o poder das hierarquias tradicionais, ele começou semiautoritário, evoluindo para um autoritarismo semi-reacionário e ainda além dele. Embora haurisse certas doutrinas do fascismo italiano, assemelhava-se mais aos regimes de Franco e Salazar: autoritário, corporativista, tradicionalista, uma vertente católica da ideologia fascista isento do paramilitarismo de massa violento e turbulento, característico do fascismo alemão e italiano. (13)

Uma das formas de compreender a ligação entre os social-cristãos e a Frente Patriótica é o fato de antes de sua fundação, Dollfuss e Schuschnigg haviam sido líderes do Partido Social-Cristão Austríaco.

Segundo o biógrafo de Mises, Jörg Guido Hülsmann, o economista teria ingressado na Frente Patriótica em março de 1934, apenas um ano após a fundação do partido. Muito embora procure justificar que o ingresso provavelmente tenha sido em caráter obrigatório aos funcionários do governo, Hülsmann não apresenta evidências que apontem para uma filiação obrigatória de Mises (14). Inclusive, o biografo de Mises afirma que o economista não interpretava a Frente Patriótica como um partido fascista. Mises de fato se evade da Áustria quando o país passa pela anexação alemã:

Mises mais tarde disse que foi o crescente poder do partido Nazi na Áustria que o levou a deixar o país. Com esta observação, ele não se referia ao governo de Engelbert Dollfuss, que havia reintroduzido corporativismo autoritário na política austríaca para resistir ao socialismo de ambas as variedades marxista e Nazi. Mises referia-se ao ramo austríaco do Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães, que possuía um forte apoio de Berlim e lutava uma batalha diária para conquistar as ruas de Viena. As políticas autoritárias de Dollfuss eram, em sua visão, apenas uma solução provisória para garantir a independência da Áustria – não sendo apropriada a longo prazo, especialmente se não houvesse mudanças na mentalidade política geral. (15)

Nota-se aqui a relação entre seus escritos sobre o fascismo em 1927 e a forma como Mises encara o governo de Dollfuss. Ante a “ameaça” do comunismo e do nazismo alemão, o programa da Frente Patriótica oferecia uma saída que manteria a Áustria independente. Outro detalhe importante é que seu biógrafo não esconde que Mises não percebia a Frente Patriótica e o governo Dollfuss como fascista. Michael Mann comenta brevemente que há autores que lançam dúvidas sobre caracterizar a Frente Patriótica de fascista; porém, é importante também destacar que o austro-fascismo teve vida curta, aproximadamente de 1934, quando Dollfuss já no cargo de chanceler, teria fundado o partido, até a anexação da Áustria pela Alemanha em 1938. Outro ponto importante é a participação de seus membros no regime nazista alemão e a formação de milícias:

Ao contrário dos casos ibéricos, contudo, o austro-fascismo associava corporativismo, organizações paramilitares violentas e nacionalismo antissemita. Certamente pretendia tornar-se um movimento de massa violento e implacável, embora não dispusesse dos meios para tal. Depois do Anschluss [anexação], a maioria de seus militantes participou entusiasticamente do regime nacional-socialista do Grande Reich Alemão. Estavam perfeitamente preparados para o fascismo, ainda que não pudessem chegar a ele por seus próprios esforços. (16)

Em resumo, muito embora não seja possível precisar maiores informações sobre o envolvimento de Mises com o austro-fascismo e seus membros, é possível tirar algumas conclusões sobre o assunto. Primeiramente, fica claro que Mises não era completamente avesso ao fascismo, muito embora não reconhecesse a Frente Patriótica enquanto tal, foi filiado a ela e chegou a trabalhar junto com um de seus fundadores, pessoa esta que se tornaria chanceler da Áustria.

Ao relacionar seus escritos sobre o fascismo com alguns aspectos de sua trajetória na Áustria da década de 1930, percebe-se que, ao contrário do que procuram desautorizar aqueles que veem em Mises uma influência intelectual, seu envolvimento com o fascismo não foi meramente momentâneo, defendendo sua existência como recurso emergencial e interpretando o governo de Dollfuss como uma solução, muito embora momentânea.

A “liberdade para discriminar”

Estabelecer as relações entre Mises e o fascismo é importante para vislumbrarmos uma continuidade em comportamentos naqueles que tomam o seu legado filosófico como exemplo. Neste sentido, suas considerações sobre o tema são de extrema importância, uma vez que, aparelhos como Mises Brasil e seus intelectuais, tomam para si Ludwig von Mises como sua principal influência teórica, assumem também para si as suas contradições e afirmações, no mínimo polêmicas.

Ao digitar no site do IMB a palavra “socialismo”, é possível compreender que a criminalização dos movimentos e ideais que formam o pensamento socialista e comunista é sistemática:

IMAGEM 1 – Print da busca pela palavra “socialismo”

Print da busca pela palavra “socialismo”

Fonte: site oficial do Instituto Ludwig von Mises Brasil

Na imagem acima é possível perceber o grande volume de textos e demais materiais produzidos pelo Instituto sobre o assunto. Dado o seu volume e o objetivo que fazer um recorte mais circunscrito, se analisará três textos do site: Um sobre “liberdade de discriminar”, publicado em 2020 e dois outros de 2022 publicados logo após as denúncias da fala de “Monark” sobre nazismo no Flow Podcast. 

Sob o título “Liberdade significa ter o direito de discriminar”, publicado em setembro de 2020 no site do Instituto, procura estabelecer que a discriminação faz parte de um processo de escolha que é natural e se manifesta em vários aspectos da vida cotidiana. Sob o subtítulo “Você é um grande discriminador, o autor, Laurence Vance, argumenta:

Você próprio está, a todo momento, praticando discriminação e exclusão. E não há absolutamente nada de errado nisso. A todo o momento, você está fazendo juízos de valor em prol de uns e em detrimento de outros. Diariamente, você exerce seu direito de excluir, e sua liberdade de associar com quem você quer. Quando você seleciona suas amizades, você discrimina. Quando você escolhe parceiros sexuais, você exclui. Quando você escolhe com quem quer se relacionar afetivamente e profissionalmente, você exclui e discrimina. (17)

Segundo a interpretação do autor, escolher seria o mesmo que discriminar, uma vez que o indivíduo estaria apresentando suas preferências entre a mais variada gama de pessoas, assuntos e gostos. Importante aqui apontar que entre discriminação e escolha existe uma diferença abissal.

Para efeitos de referência conceitual, as reflexões sobre discriminação racial de Silvio Almeida (18), servem como suporte para compreender algumas questões:

A discriminação racial […], é a atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados. Portanto, a discriminação tem como requisito fundamental o poder, ou seja, a possibilidade efetiva do uso da força, sem o qual não é possível atribuir vantagens ou desvantagens por conta da raça. (19)

A partir das considerações acima, é possível afirmar que discriminação, de forma mais geral, é atribuir tratamento diferenciado aos sujeitos, incutindo vantagens ou desvantagens com base em critérios arbitrários que não alteram a capacidade destes sujeitos em realizar a atividade que se espera. Neste sentido, discriminação envolve relações de poder pois, para garantir vantagem ou desvantagem, é preciso possuir algum tipo de poder (seja ele econômico, social ou político) que permita o favorecimento ou não do indivíduo e/ou instituição em questão.

Ou seja, é óbvia a diferença entre escolher e discriminar. Um processo de escolha acontece entre partes iguais. Preferir uma pessoa ao invés de outra para ser amigo, não impede que a pessoa desfavorecida sofra algum tipo de desvantagem em sua vida. O mesmo é válido em situação contrária. Aquele que recebe a amizade precisa possuir algum tipo de vantagem que o favoreça a conseguir algo. Uma escolha acontece entre iguais e não afeta essa igualdade. Discriminação favorece em detrimento de outros. O mesmo raciocínio é válido ao escolher entre serviços privados. Escolher um restaurante ao invés do outro não incorre em prejuízos ao restaurante desfavorecido. Excluir, apenas seria possível se, ao escolher se alimentar em um determinado restaurante em detrimento de outro, alterasse a relação entre um estabelecimento e os demais restaurantes. 

Após uma série de exemplos e situações supostamente excludentes e discriminatórias, Vance parte a argumentar sobre o direito dos empregadores e empresas em discriminar:

[…] empregadores devem ter o direito de discriminar candidatos a uma vaga de emprego de acordo com qualquer critério que eles próprios voluntariamente estabelecerem. […] E não só. Eles devem ter o direito de discriminar quaisquer candidatos com base em altura, peso, idade, deficiências, incapacidades, cicatrizes, pelos faciais, raça, cor, tez, tatuagens, cor do cabelo, estilo do cabelo, piercings, vestimentas, odores, beleza, higiene e tudo o mais relacionado à aparência. (20)

Segundo o autor, seriam os indivíduos ao atuarem por meio do mercado que julgariam as atitudes das empresas e seus empregadores:

Em uma sociedade verdadeiramente livre, estas coisas não são assunto para o governo legislar. Quem irá chancelar as escolhas das empresas, e legislar por meio de suas decisões de comprar ou de se abster de comprar, são os consumidores. Se os consumidores apoiarem as medidas adotadas por uma empresa, irão fazer negócios com ela. Senão aprovarem, irão puni-la. E os concorrentes irão aproveitar. Se um empregador decidir, sem qualquer razão aparente, que seus empregados devem ter uma determinada característica física (ou não devem tê-la), esse é o seu julgamento. Não é de mais ninguém. Se essa decisão for ruim, a concorrência vai se aproveitar desse erro, vai contratar as pessoas que foram rejeitadas e vai adquirir uma vantagem no mercado. (21)

“O soberano final é o consumidor, e não o governo” (22), encerra Vance. Na forma de argumentação do autor, podemos perceber um “fio” que liga suas considerações sobre a liberdade de discriminar, com o discurso de “Monark” ao defender a legitimidade de um partido nazista com base na “liberdade dos nazistas” expressarem seu “direito de ser anti-judeu”:

[Monark]: A esquerda radical tem muito mais espaço que a direita radical, na minha opinião. As duas tinham que ter espaço, na minha opinião. Eu sou mais louco que todos vocês. Eu acho que o nazista tinha que ter o partido nazista reconhecido pela lei [Tabata Amaral interrompe e contrargumenta]. As pessoas não têm o direito de serem idiotas? […] A questão é: se o cara quiser ser um antijudeu, eu acho que ele tinha o direito de ser […]. Não, ele não está sendo antivida, ele não gosta dos ideais[…]. Questionar é sempre válido. Desde que você não fira ninguém… Quem que liga? Se o Igor é um merda, que não é o caso; o Igor é um cara poderoso hoje em dia. Mas se ele é um merda, tá na sarjeta, um cara fora do padrão social… Quem liga para o que ele fala? [..] A questão é que não importa a liberdade de expressão de quem não é poderoso. Não importa o que você expresse se você não tem poder. (23)

(In)Felizmente, após toda a polêmica gerada pela fala de “Monark” e Kim Kataguiri, o vídeo completo do programa foi retirado das redes sociais. Aqui nos utilizamos dos cortes realizados. Para procurar manter um mínimo de fidelidade a fala de “Monark” e Kataguiri, optou-se por utilizar o maior corte do programa que foi possível encontrar. Apesar de em vários momentos, “Monark” ter sua fala interrompida por Tabata, buscou-se não transcrever a sua fala no intuito de se ater a forma como ele e Kataguiri defendem o suposto direito de ser nazista como sendo liberdade de expressão.

Em sua fala, é possível perceber o mesmo princípio contido no texto publicado no site do Mises Brasil. “Monark” não percebe como agressão ser nazista ou antijudeu. Tal como Vance, “não havendo violência física, coerção ou ameaça de violência e coerção, não há crime. O ato pode até ser considerado imoral, mas não é crime.”

Retornando a análise da fala de “Monark” e Kataguiri; como forma de complementar a fala do ex-apresentador do Flow Podcast o deputado federal argumenta:

[Monark]: Qual é a melhor maneira de reprimir um discurso de ódio, discriminatório e preconceituoso? Eu acho que esse é o cerne da questão. Qual é a melhor maneira de impedir que um discurso mate pessoas, incentive o assassino de pessoas, incentive que determinado grupo religioso, étnico, racial morra? É criminalizar, ou é deixar que a sociedade tenha uma rejeição social pesada isso?
[Tabata pergunta]: Kim, você acha que foi errado que a Alemanha tenha criminalizado o nazismo?
[Kataguiri responde]: Acho.
[Tabata]: Qual é a resposta que você dá para todas as famílias judaicas que perderam pessoas no Holocausto?
[Kataguiri]: A rejeição sistemática e fundamental aos negócios, a religião e o discurso nazista por parte da sociedade. (24)

Dada a relevância dos questionamentos levantados por Tabata Amaral, é importante manter sua fala para perceber a construção discursiva de Kataguiri em defender o mesmo que “Monark”. Apesar do deputado não usar a palavra “mercado”, é possível perceber que sua justificativa parte do mesmo raciocínio de Vance Laurence ao defender a discriminação como um direto. 

Equiparação entre nazismo e comunismo como defesa de discurso de ódio

Após a grande repercussão do episódio do Flow Podcast, onde “Monark” e Kataguiri apresentam uma interpretação liberdade de expressão, “Monark” grava dois vídeos de desculpas sobre o ocorrido. No primeiro, o ex-apresentador do programa se utiliza de uma suposta equiparação entre comunismo e nazismo como forma de justificar o que havia dito. (25)

Kataguiri durante o programa, faz o mesmo ao dizer que o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) não deveria existir:

[Kataguiri]: Quando o Rui Costa [presidente do Partido da Causa Operária] do PCO fala em fuzilar burguês, aquilo é contemplado pela liberdade de expressão.
[Tabata]: É o que?
[Kataguiri]: Quando o Rui Costa fala em fuzilar burguês, aquilo está contemplado, pelo menos no entendimento de hoje, pela liberdade de expressão; e isso entra em contradição com violar direitos humanos.
[Tabata]: Voltamos a minha definição. Se está ameaçando a existência de alguém, para mim fere a liberdade de expressão sim.
[Kataguiri]: Então, por exemplo, o Partido Comunista, pela sua definição não deveria existir.
[Tabata]: O que que o Partido Comunista Brasileiro prega que te fere? Fere a tua existência?
[Monark]: Que os burgueses deveriam ser calados e mortos.
[Tabata]: Isso não está no estatuto do PCdoB?
[Monark]: Mas está no ‘cosmos’ da coisa.
[Tabata]: Tá, vamos lá. Você [se dirigindo a Kataguiri] conhece a bancada do PCdoB tão bem quanto eu. Você não acha que é desonesto dizer isso deles?
[Kataguiri]: Não acho. Se você perguntar para algum integrante do PCdoB…
[Tabata]: Ao que me consta são todos democratas. (26)

Após Tabata Amaral questionar sobre o onde está escrito o que o estatuto do PCdoB prega morte de pessoas, Kataguiri tenta associar violação dos Direitos Humanos com uma suposta defesa do PCdoB de países com regimes comunistas como a Coréia do Norte. Nesse momento, a deputada se mostra evidentemente cansada e frustrada com o debate.

É possível perceber um padrão lógico que se repete na relativização do discurso de ódio como crime. Mises justificava a violência fascista como uma reação pelas supostas atrocidades cometidas pelo comunismo. Aqui, o suposto direito de os nazistas terem suas organizações legalizadas é supostamente justificada pela existência de partidos políticos comunistas. 

O padrão de linha argumentativa é semelhante. Para suavizar a defesa de discursos de ódio fascistas, se utiliza do “espectro” do comunismo como uma ameaça real. Aliás, “Monark” acusa o comunismo de ter em sua visão de mundo, ou melhor, um “cosmos” de defesa do assassinato de outros grupos.

Procurando emitir um posicionamento sobre a polêmica da fala de “Monark”, o IMB publica dois artigos sobre o tema. O primeiro, postado no site no dia 7 de fevereiro, intitulado “Por que devemos tratar a foice e o martelo da mesma maneira que tratamos a suástica” (27), permite perceber a tônica de seu conteúdo bem como franca defesa do discurso de Kataguiri e “Monark” no episódio do Flow Podcast. No dia seguinte (08/02), o IMB lança em sua página outro texto em que procura relacionar comunismo com fascismo. (28)

Os argumentos básicos do texto publicado em 7 de fevereiro são basicamente dois: 1) o comunismo teria matado muito mais gente que o nazifascismo ao longo de sua história; 2) ao procurarem justificar os regimes ditatoriais de esquerda, como o stalinismo, seria supostamente comum ao discurso da esquerda, alegar que estes casos não representariam “o verdadeiro comunismo”.

Sobre o primeiro argumento, o autor, após uma tentativa de “medir” a quantidade de mortes supostamente atribuídas aos de regimes comunistas, conclui:

No total, os regimes marxistas assassinaram aproximadamente 110 milhões de pessoas de 1917 a 1987. Destes, quase 55 milhões de pessoas morreram em vários surtos de inanição e epidemias provocadas por marxistas — dentre estas, mais de 10 milhões foram intencionalmente esfaimadas até a morte, e o resto morreu como consequência não-premeditada da coletivização e das políticas agrícolas marxistas. (29)

Na tentativa de equiparar nazifascismo com comunismo, os intelectuais burgueses muitas vezes recorrem a prática de “empilhamento de corpos” como uma balança que serviria para supostamente comparar os dois regimes.

Para tornar as semelhanças mais evidentes, coloquemos em paralelo o trecho do texto acima com o começo do primeiro vídeo de desculpas de “Monark”, postado no Instagram (30), em 8 de fevereiro de 2022:

Galera, seguinte. Estou gravando este vídeo porque tá rolando um trecho, uma fala minha no Flow Podcast com a Tabata e o Kim, que o pessoal tirou de contexto, e tá circulando aí nas mídias sociais, como se eu estivesse defendendo o nazismo; quando na verdade era uma discussão sobre comunismo e nazismo que estava acontecendo. A gente estava argumentando que existe partidos comunistas; o comunismo matou muita gente; mais de 30 milhões de pessoas lá na Ásia. Então é uma ideologia que também teve muitos problemas, e mesmo assim nós temos o Partido Comunista plenamente aceito; e a gente estava falando da hipocrisia; como coisas de direita e coisas de esquerda, às vezes são vistas de uma maneira hipócrita; e a gente estava usando o exemplo do comunismo e do nazismo. Os dois foram regimes que mataram milhões de pessoas (31)

Talvez a única diferença entre a construção argumentativa do texto publicado no IMB e a fala de desculpas, seja a capacidade do autor do texto, em elaborar o “empilhamento” com mais dados sem provas algumas. 

Apenas como exercício de aplicar a mesma lógica ao capitalismo, usemos os dados sobre a quantidade de mortos vítimas da fome e por COVID-19 no mundo. No momento em que se está escrevendo o texto que aqui se apresenta, o número de mortes por Sars-Cov-2 atinge a marca de 8,82 milhões de pessoas, em apenas dois anos de pandemia. A morte pela fome se torna um pouco mais complexa de precisar; porém é possível fazer algumas aproximações.

Acordo com relatório de 2020 da Oxfam (Oxford Committe for Famine Relief [Comitê de Oxford para Alívio da Fome]), apontava que a fome conseguiria ultrapassar a quantidade de mortes por COVID-19 naquele ano. Se estimava uma média de 12 mil mortes por dia pela fome (32). Se extrapolarmos esses números para a quantidade de mortes em um ano, estaremos nos defrontando com 4,38 milhões de pessoas mortas apenas em 2020.

Se compararmos com a quantidade de mortos no Holocausto, perceberemos a gravidade da quantidade de mortos. Não é possível precisar com exatidão quantas pessoas foram ceifadas injustamente pelo nazismo, porém, estima-se que 6 milhões de pessoas tenham sido sistematicamente assassinadas (33). Ao contrário dos dados da fome que seriam relativos ao período de apenas um ano, o Holocausto teve duração desde a instalação dos campos de concentração e dos guetos. Isto é, pelo menos uns 3 anos. Dois anos de pandemia, somados a quantidade de mortos pela fome apenas em 2021, já seriam mais que o dobro da quantidade de pessoas exterminadas durante o Holocausto.

Em resumo, utilizando a mesma lógica torpe de ambos (texto e pedido de desculpas), chegaremos à conclusão de que em apenas três anos de capitalismo, temos um número de mortes muito superiores ao Holocausto. Se usássemos o mesmo intervalo de tempo do texto – ou mais ainda, tomarmos dois séculos de existência do capitalismo – atingiríamos números ainda maiores que as supostas “mortes por comunismo”. 

Este breve raciocínio não deve ser compreendido como válido dentro de um debate honesto sobre capitalismo e comunismo. É apenas uma forma de evidenciar a retumbante desonestidade de partir da “tática de empilhamento”.

Voltemos a análise dos argumentos do texto publicado no site do IMB. Segundo o autor, mesmo quando um “esquerdista” for confrontado com a quantia das supostas “mortes por comunismo”, ele poderia argumentar que não se trataria de experiências válidas. Que não teriam sido o “verdadeiro comunismo: “[…] quaisquer tragédias, descalabros ou crises criadas por regimes comunistas sempre podem ser atribuídas a um ‘erro’ nas aplicações das ideias de Marx, as quais continuam sendo vistas como um mapa infalível para a utopia”.

Novamente aqui, de poderia inverter a argumentação; uma vez que os defensores do livre mercado irrestrito, ao se defrontarem com aumento da pobreza, esquemas de corrupção que envolvem a alta burguesia, são considerados “falhas” causadas pelo intervencionismo. Porém, essa seria uma forma pouco útil de problematizar os problemas da afirmação do texto (muito embora verdadeira). O cerne da falha da argumentação está em tomar “esquerda”, ou mais especificamente “comunismo” e “socialismo” como teorias monolíticas onde temas como as ditaduras de regimes comunistas não sejam pontos de tensão e debate no interior dos movimentos comunista e socialista. As formas de interpretar a experiência soviética e chinesa, por exemplo, talvez sejam alguns dos pontos de cisão mais evidentes dentro daquilo que pode ser compreendido como “esquerda”.

Por fim, o último artigo publicado pelo IMB, envolvendo a polêmica ocorrida no Flow Podcast e a defesa de organização e expressão por parte de movimentos fascistas, data do mesmo dia dos vídeos de desculpas de “Monark”, a saber, 8 de fevereiro de 2022. Dando continuidade na equiparação entre nazismo e comunismo, o texto em questão se propõe a revisar qual seria a origem do nazismo: capitalismo, socialismo ou o que o autor chama de “terceira via”. (34)

Apesar de constar no título, em nenhum momento do texto o autor procura analisar os aspectos capitalistas ou de “terceira via” – nem mesmo trazendo uma definição do que compreender por “terceira via”. Seu argumento foca unicamente em considerar o grau de intervenção do Estado nazista nas relações econômicas para determinar que sua configuração estaria mais próxima do socialismo do que capitalismo.

Partindo de uma citação de Mises sobre o controle da economia pelo governo nazista alemão, o autor então conclui:

Em suma: os nazistas praticaram controle de preços, controle de salários e arregimentaram toda a produção. A propriedade dos meios de produção continuou em mãos privadas, mas era o governo quem decidia o que deveria ser produzido, em qual quantidade, por quais métodos, e a quem tais produtos seriam distribuídos, bem como quais preços seriam cobrados, quais salários seriam pagos, e quais dividendos ou outras rendas seria permitido ao proprietário privado nominal receber.
Desnecessário ressaltar que determinar preços e salários, e estipular o que deve ser produzido, como e para quem, representam um claro ataque à propriedade privada, pois retiram dos produtores as opções que eles teriam no livre mercado para aplicar seus recursos. Trata-se de uma intervenção estatal que, na prática, proíbe os proprietários de investirem seus recursos onde e como bem quiserem.

Ao o autor, não importa se essas intervenções eram em prol e desejadas pela burguesia alemã, uma vez que também compõem o bloco nazista, isto é, que a orientação e objetivo de tais intervenções estavam relacionadas aos íntimos interesses da burguesia alemã, sem mencionar o uso dos judeus aprisionados em guetos e campos de concentração, que serviram de mão de obra escrava para alavancar a indústria alemã. Algumas delas em operação no mundo todo, justamente por isso. (35)

Se então, nos parâmetros do autor, o nazismo é socialista, como se operou o tratamento do nazismo, ao longo da história, como um movimento de extrema-direita. A resposta para isso, já é lugar-comum nos textos do Mises Brasil: tal “inversão” seria resultado da propaganda soviética, ou seja, do socialismo:

Mas os próprios soviéticos também tiveram um papel crucial em criar o mito de que os nazistas eram capitalistas. Os nazistas nunca tentaram esconder suas propensões socialistas (afinal, não obstante os twitteiros sarcásticos, o socialismo estava no nome deles); eles simplesmente estavam implantando o socialismo seguindo uma estratégia diferente daquela dos socialistas marxistas. 
Os soviéticos rotularam os nazistas de capitalistas simplesmente porque eles já haviam começado a redefinir os termos “socialismo” e “comunismo”. Os membros de seu partido, os bolcheviques, agora eram diferentes dos outros grupos socialistas rivais. (36)

Ao final do texto, o autor conclui que essa inversão, nada mais foi que uma mentira orquestrada pela União Soviética, numa época em que toda a Europa se encantava com seus ideais:

Em uma época em que vários membros da intelligentsia europeia estavam encantados com a União Soviética, essa narrativa de que os nazistas eram capitalistas passou a ser uma falácia extremamente conveniente. Mas trata-se de uma ideia sem o mais mínimo fundamento em princípios econômicos. É apenas uma deturpação soviética com base no arcabouço marxista. Os nazistas, que apregoavam orgulhosamente seu socialismo e que implantaram políticas socialistas com grande consistência, passaram a ser chamados de capitalistas pelo simples motivo de que eles não se encaixavam pristinamente na visão de mundo soviético-marxista. (37)

O tal “encantamento” dos intelectuais europeus com os ideais da União Soviética é tão estapafúrdio, que é possível se utilizar das próprias palavras de Mises sobre isso. Iniciamos este texto justamente evidenciando que o economista austríaco era eternamente grato – ou melhor sua contribuição ficaria “escrita na história”, para ser mais fiel às suas palavras – aos movimentos fascistas que tinham salvado a Europa do avanço do comunismo e seus atos atrozes de violência. Obviamente que Mises não era o único “iluminado” dentre a intelectualidade europeia a pensar assim.

Flow Podcast e a disseminação do pensamento “anarco”capitalista

Os tópicos anteriores procuraram evidenciar as relações de Mises com o fascismo, bem como estabelecer uma linha argumentativa comum, utilizada entre ele e aqueles que tomam para si – neste caso o IMB – seus escritos como influência. Após isso, buscou-se demonstrar como a equiparação entre nazismo e comunismo opera no pensamento do IMB e suas semelhanças com a fala de “Monark” e Kim Kataguiri no episódio do Flow Podcast, bem como no primeiro vídeo de desculpas do ex-apresentador do programa. 

Porém, ainda não está claro se existem relações possíveis entre o pensamento “anarco”capitalista e o pensamento de “Monark”, não apenas sobre comunismo e nazismo, mas também sobre liberdade de expressão. Para isso, é preciso “pinçar” nos conteúdos produzidos pelo Flow Podcast para trazer a superfície como a fala de “Monark” pode ser compreendida como um possível resultado da capilarização do pensamento “ancap” no Brasil.

Antes de adentrar nisso, é importante fazer uma ressalva, não encontramos nenhuma evidência que seja possível comprovar que “Monark” se autodenomina como “anarco”capitalista, muito embora defenda algumas de suas premissas. Esperamos que Kataguiri e “Monark” sejam plenamente responsabilizados pelo crime que cometeram, inclusive de serem “ostracizados socialmente”, como eles mesmos voiciferam. Porém, eles são apenas uma parte de um todo que envolve a atuação de aparelhos como o Mises Brasil e seus intelectuais, que produzem e disseminam pressupostos teóricos que surtem um efeito concreto. Combater a relativização do fascismo não pode ser realizado apenas culpando indivíduos, pois estes se baseiam em pressupostos teóricos que estão sendo constantemente disseminados, sistematicamente – importante enfatizar isso –, por aparelhos como o IMB.

Basta uma rápida pesquisa pelo conteúdo do Flow Podcast que é possível perceber que seu conteúdo de entrevistas é bem eclético. Encontramos convidados como Rodrigo Constantino, “Kid Bengala”, João Gordo da banda punk Ratos de Porão, e até mesmo entrevista com presidenciáveis como Guilherme Boulos do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) (38). A lista é grande e diversa.

Porém, nesta grande variedade de entrevistas, algumas para a nossa análise, se destacam; mais especificamente três: Paulo Kogos, em 2019 (39), conhecido defensor e disseminador do “anarco”capitalismo; Raphaël Lima, que foi ao ar em abril de 2020 (40), dono do canal do YouTube chamado “Ideias Radicais” e também “ancap”; e o presidente do Instituto Ludwig von Mises Brasil, Hélio Beltrão, em maio de 2020 (41). Neste sentido, há também um vídeo publicado no YouTube, de uma conversa entre os apresentadores “Monark” e “Igor 3K”, intitulada “como funciona o anarcocapitalismo” (42), onde os dois procuram pensar os problemas do pensamento “ancap”:

[Igor 3K]: Qual que é o grande problema do anarcocapitalismo? Eu fico imaginando que nós somos humanos e é a lei da selva. Pois é, e o meu objetivo. Não o meu objetivo, mas veja, é comum uma pessoa querer ser tão rico. Ser mais rico que o cara que mora do lado. Então, e eu fico imaginando se isso impediria relações saudáveis sem ninguém para mediar, sem ninguém para definir o que seria correto ou não. Sem ninguém para ditar, por exemplo, o que seria moral, do ponto de vista do senso comum. […]
[Monark]: Moralidade é pouco subjetiva também né, às vezes…
[Igor 3K]: Por isso que seria muito foda ter o Raphaël [Ideias Radicais] aqui cara. Ele ia vir com um argumento agora, do caralho, e a gente iria concordar com ele.
[Monark]: Talvez, talvez. Ou a gente ia ter alguma coisa para conversar; que ia ser melhor ainda. O negócio do anarcocapitalismo e todas essas bandeiras liberais que eu gosto pra caralho, é que eu acredito muito no poder do mercado como ferramenta de desenvolvimento. O mercado quando ele é livre; quando há uma competição entre os pares, quando há uma competição entre os preços, quando há uma competição entre os serviços, eu acredito que o melhor tende a subir né. Porém, uma questão é que você precisa ter as regras para esse mercado funcionar bunitinho. Por que senão, existem pessoas que irão começar ‘exploitar’ certas alavancas do mercado dependendo da quantidade de poder que eles acumularam […] (43)

Dada a simpatia de “Monark” com as “bandeiras liberais”, não é possível perceber as entrevistas de figuras disseminadoras do “anarco”capitalismo como mero acaso. Existe uma relação entre as ideias que apregoam e a visão de mundo dos apresentadores do Flow Podcast. Muito embora não sejam adeptos completos de seus ideais, percebe-se uma inclinação de “Monark” e “Igor 3K” para suas ideias. Inclusive aceitando uma de suas máximas: que o livre mercado traz desenvolvimento para e riqueza para todo o conjunto da sociedade.

Outra evidência disto é o segundo vídeo de desculpas que “Monark” lançou em suas redes, logo no começo ele explicita que estava procurando defender um tipo de ideia, ao considerar que nazistas deveriam ter o direito de se organizarem legalmente:

Oi galera, eu queria fazer esse vídeo para só pedir desculpas mesmo… Porque eu errei. A verdade é essa. Eu estava muito bêbado; e eu fui defender uma ideia, que é uma ideia que acontece em outros lugares do mundo; nos EUA, por exemplo. Mas eu fui defender essa ideia de um jeito muito burro. Eu estava bêbado. EU falei de uma forma muito insensível com a comunidade judaica […]. (44)

A partir desta análise, é possível agora inferir sobre qual seria essa “ideia” que “Monark” faz referência em seu vídeo de desculpas. O ex-apresentador está se referindo às teorizações “anarco”capitalistas. Sua fala, aliada aos comentários tecidos sobre as “bandeiras liberais” permitem relacionar a concepção de “Monark” sobre liberdade de expressão, como resultante da disseminação e aderência por parcela da sociedade, do pensamento “anarco”capitalista no Brasil. Aí reside a importância de um maior escrutínio sobre as origens, isto é, a base ideológica que dá sustentação ao que “Monark” fala com naturalidade no programa do Flow Podcast. Para o ex-apresentador, não teria problemas falar o que falou, pois há um pensamento que lhe dá respaldo.

Conclusão

O objetivo aqui das considerações apontar é perceber que “Monark” e “Kataguiri” não falam a partir de um “vazio”. Existe uma base ideológica disseminada sistematicamente por aparelhos burgueses, dentre os quais destaca-se aqui o Instituto Ludwig von Mises Brasil. Muito embora o ex-apresentador do Flow Podcast não se considere adepto das concepções teóricas do “anarco”capitalismo, suas falas permitem perceber aderência de certos aspectos de seu pensamento.

Aliás, a partir da forma como o IMB constrói a equiparação entre nazismo e comunismo, é possível de perceber semelhanças que remontam aos escritos da maior inspiração do aparelho e os intelectuais que o constituem: Ludwig von Mises. 

É possível indagar também se sua fala teria as consequências que teve, se tivesse se limitado a reprodução das tentativas de criminalização sistemática da “esquerda”. Muito embora, é possível perceber que existe uma relação entre criminalizar o comunismo e defender o fascismo. Uma vez que a tática é utilizada desta forma desde os primeiros escritos de Mises.

Notas


Monark, “Anarco”Capitalismo e o Fascismo: algumas considerações sobre capilarização de projetos de poder: Usa-se o prefixo entre aspas em respeito a tradição do pensamento anarquista da qual o “anarco”capitalismo não é uma de suas vertentes. Sobre isso, Cf. DAL PAI, Raphael Almeida. Instituto Ludwig von Mises Brasil: os arautos do anarcocapitalismo. Marechal Cândido Rondon, 2017. 228 p. Dissertação de Mestrado – História, Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Disponível em: http://tede.unioeste.br/handle/tede/3160. Acesso em 15/02/2022; bem como o “FAQ Anarquista”: livro composto por dois volumes que procura compilar questões que envolvem o pensamento e tradição anarquista. MCKAY, Iain. An Anarchist FAQ. Vol. 1.  Oakland: Ak Press. 2008.

Usa-se o prefixo entre aspas em respeito a tradição do pensamento anarquista da qual o “anarco”capitalismo não é uma de suas vertentes. Sobre isso, Cf. DAL PAI, Raphael Almeida. Instituto Ludwig von Mises Brasil: os arautos do anarcocapitalismo. Marechal Cândido Rondon, 2017. 228 p. Dissertação de Mestrado – História, Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Disponível em: http://tede.unioeste.br/handle/tede/3160. Acesso em 15/02/2022; bem como o “FAQ Anarquista”: livro composto por dois volumes que procura compilar questões que envolvem o pensamento e tradição anarquista. MCKAY, Iain. An Anarchist FAQ. Vol. 1.  Oakland: Ak Press. 2008.

2 VON MISES, Ludwig. Liberalismo. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises Brasil, 2010. p. 75.

3 Idem.

4 Ibidem.

5 Idem. p. 76.

6 Ibidem. p. 77.

7 HÜLSMANN, Jörg Guido. Mises: the last knight of liberalism. Auburn: Ludwig von Mises Institute, 2007. p. 614. Traduzido de: In 1930, the Austrian government asked Mises to join an ad hoc Economic Commission to study the causes of the difficulties that plagued the country: permanent high unemployment (in 1929, some 200,000 or 14 percent of the workers in industry and commerce were without jobs), numerous bankruptcies, idle production facilities, and he lack of profitability for a large number of Austrian businesses. Mises was one of the three members of the anonymous Editorial Committee that eventually issued the final report of December 1930.6 The other two members were Edmund Palla, a labor-union leader and Secretary of the Chamber of Labor, and Engelbert Dollfuss, a rising leader of the Christian-Socialist Party who would later become Austrian chancellor.

8 Idem. p. 187.

9 Ibidem. p. 190.

10 MANN, Michael. Austro-fascistas, nazistas austríacos. In:_____. Fascistas. Rio de Janeiro: Record, 2008. p. 285

11 Idem. 286.

12 Ibidem. p. 283.

13 Iidem.

14 HÜLSMANN. Op. cit. p. 677.

15 HÜLSMANN. Op. cit. p 683 – 684. Traduzido de: Mises later said that it was the growing power of the Nazi party in Austria that prompted him to leave the country. With this remark, he did not refer to the government of Engelbert Dollfuss, which had reintroduced authoritarian corporatism into Austrian politics to resist the socialism of both the Marxist and the Nazi variety. Mises meant the Austrian branch of the National Socialist German Workers Party, which enjoyed strong backing from Berlin and fought a daily battle to conquer the streets of Vienna. Dollfuss’s authoritarian policies were in his view only a quick fix to safeguard Austria’s independence—unsuitable in the long run, especially if the general political mentality did not change.

16  MANN. Op. cit. p. 286.

17 VANCE, Laurence. Liberdade significa ter o direito de discriminar. 2020. Disponível em: https://mises.org.br/article/3295/liberdade-significa-ter-o-direito-de-discriminar. Acesso em 13/02/2022.

18 ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.

19 Idem. p. 32.

20 VANCE. Op. cit.

21 Idem.

22 Ibidem.

23 LA CORTES. Monark e Kim Kataguiri defendem Nazismo livre e Tabata Amaral se Revolta. Youtube, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x7WTUMNpn5I&t=34s Acesso em 13/02/2022.

24 Idem.

25 Uso aqui uma versão editada onde os dois vídeos estão compilados juntos. YOU CORTES PODCAST. Monark – pede desculpas e explica fala sobre nazismo. YouTube, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=pNEOHu_MTlU Acesso em 13/02/2022.

26 LA CORTES. Monark e Kim Kataguiri defendem Nazismo livre e Tabata Amaral se Revolta. Youtube, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x7WTUMNpn5I&t=34s Acesso em 13/02/2022.

27

MASON, Richard. Por que devemos tratar a foice e o martelo da mesma maneira que tratamos a suástica. 2022. Disponível em: https://mises.org.br/article/2959/por-que-devemos-tratar-a-foice-e-o-martelo-da-mesma-maneira-que-tratamos-a-suastica Acesso em 13/02/2022.

28 CALTON, Chris. Afinal, os nazistas eram capitalistas, socialistas ou “terceira via”? 2022. Disponível em: https://mises.org.br/article/2797/afinal-os-nazistas-eram-capitalistas-socialistas-ou-terceira-via Acesso em 13/02/2022.

29 MASON, Richard. Por que devemos tratar a foice e o martelo da mesma maneira que tratamos a suástica. 2022. Disponível em: https://mises.org.br/article/2959/por-que-devemos-tratar-a-foice-e-o-martelo-da-mesma-maneira-que-tratamos-a-suastica Acesso em 13/02/2022.

30 Os dois vídeos de desculpas podem ser assistidos diretamente do perfil de “Monark”. Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CZuNU-ZFX1p/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em 14/02/2022.

31 Disponível em: https://www.instagram.com/tv/CZuNU-ZFX1p/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em 14/02/2022.

32 OXFAM. Mais pessoas morrerão de fome no mundo do que de covid-10 em 2020. 2020. Disponível em: https://www.oxfam.org.br/noticias/mais-pessoas-morrerao-de-fome-no-mundo-do-que-de-covid-19-em-2020/.

33 ALTARES, Guilhermo. Por que falamos de seis milhões de mortos no Holocausto? El País, 2017. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/13/internacional/1505304165_877872.html. Acesso em 14/02/2022.

34 CALTON, Chris. Afinal, os nazistas eram capitalistas, socialistas ou “terceira via”? 2022. Disponível em: https://mises.org.br/article/2797/afinal-os-nazistas-eram-capitalistas-socialistas-ou-terceira-via Acesso em 13/02/2022.

35 Não é necessária uma extensa pesquisa para encontrar matérias nos meios de comunicação que elencam quais empresas colaboraram com o nazismo. Deixo aqui algumas delas. Para maiores detalhes Cf. MAREK, Michael. A indústria alemã e a Segunda Guerra Mundial. Deutsche Welle (DW) Brasil, 2005. Disponível em: https://www.dw.com/pt-br/a-ind%C3%BAstria-alem%C3%A3-e-a-segunda-guerra-mundial/a-1471271. Acesso em 15/02/2022. A matéria ainda no seu subtítulo, trata da importância dos trabalhos forçados de milhões de pessoas aprisionadas pelo governo nazista, na impulsão da economia alemã da época: “A economia alemã floresceu na época do

nazismo especialmente graças aos trabalhadores forçados. A discussão política sobre sua indenização arrastou-se por décadas”; MARCHESAN, Ricardo. Volks, BMW, Hugo Boss: essas e outras gigantes ajudaram a Alemanha nazista. Portal de Notícias UOL, 2017. Disponível em: https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/09/12/empresas-nazismo.htm.Acesso 15/02/2022; LIMA, Cláudia de Castro. Os aliados ocultos de Hitler: as empresas que colaboraram com o Reich. Super Interessante, 2020. Disponível em: https://super.abril.com.br/historia/os-aliados-ocultos-de-hitler/. Acesso em 15/02/2022. Logo abaixo do título, a autora aponta que até a Coca-Cola, indústria estadunidense, teria colaborado com o regime: “Em nome do lucro, gigantes como IBM, Siemens e Coca-Cola usaram mão-de-obra escrava e venderam a tecnologia que possibilitou o Holocausto.”; RIBAS, Mariana. Empresas que lucraram com o nazismo. Aventuras na História, 2020. Disponível em: https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/almanaque/10-grandes-empresas-lucraram-nazismo-segunda-guerra.phtml. Acesso em 15/02/2022. Optou-se para por citar vários veículos de informação para notar como este assunto, por mais que aparelhos burgueses como Mises Brasil, procurem esconder e relativizar, o capitalismo em sua história, para se desenvolver, sempre utilizou-se de intervenção estatal; bem como é do interesse da burguesia. O discurso de não intervenção do Estado na economia é na realidade uma forma de defender a atuação do Estado em prol dos interesses do capital de forma exclusiva.

36 CALTON, Chris. Afinal, os nazistas eram capitalistas, socialistas ou “terceira via”? 2022. Disponível em: https://mises.org.br/article/2797/afinal-os-nazistas-eram-capitalistas-socialistas-ou-terceira-via Acesso em 13/02/2022.

37 Idem.

38 Utilizamos aqui a lista de episódios disponíveis na plataforma de áudio Spotfy como referência pois como este era o principal veículo do Flow Podcast poderia haver o risco de nem todas as entrevistas do programa, estarem disponíveis em formato audiovisual no YouTube. Disponível em: https://open.spotify.com/show/3V5LBozjo4vNg2oJoA4Wb2. Acesso em 15/02/2022. Importante frisar também que alguns dos entrevistados solicitaram remoção de suas participações no programa. Como é o caso de João Gordo, por exemplo, que publicou a solicitação em suas redes sociais.

39 FLOW PODCAST. Paulo Kogos – Flow Podcast #61. 2019. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/ 2JCz2ETds4MOV1QKNUUXcG. Acesso em 15/02/2022.

40 FLOW PODCAST. Raphaël Lima (Ideias Radicais) – Flow Quarentena Edition #01. 2020. Disponível em: https://open.spotify.com/episode/0J3nUKtkg05gXOoD4NlTBe. Acesso em 15/02/2022.

41 FLOW PODCAST. Hélio Beltrão (Mises Brasil) – Flow Podcast #130. Disponível em: https://open.spotify. com/episode/4MCTzQnnD084bw2XdNIR0Q. Acesso em 15/02/2022.

42 CLIPPINCAST – CORTES PODCASTS. Como funciona o anarcocapitalismo? (Monark e Igor 3K) – Flow Podcast. S/d. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=EF-h3oVT1WU. Acesso em 15/02/2022. O vídeo em questão é um corte da conversa. Não buscamos a vídeo em sua integralidade pois o corte já ser suficiente para a análise aqui conduzida.

43 Idem. Grifos nossos.

44 Transcrito do vídeo de desculpas postado no perfil do Instagram de Monark. Disponível em: https://www.instagram. com/tv/CZuRlwFlr9Z/?utm_source=ig_web_copy_link. Acesso em 15/02/2022. Grifos nossos.

* Raphael Almeida Dal Pai é professor da rede de ensino em tempo integral do Estado do Paraná (Paraná Integral – SEED/PR); Doutorando do Programa de pós-graduação em História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Agradeço a Prof.ª Drª. Carla Luciana Silva, Prof. Dr. Giilberto Calil, Me. João Elter Borges e Zamiliano (Rolushow) pelo apoio e leitura inicial do texto. E-mail para contato: [email protected] 

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fascismo / monark