Esse mundo construído sobre ideias machistas diz em qual lugar nós, mulheres, podemos estar e não são poucos os lugares em que não somos bem-vindas, ou pelo menos, não nos querem neles, simplesmente por sermos mulheres. Os espaços da política estão entre aqueles que não devemos pisar. Se ousarmos seremos agredidas, assediadas, ameaças e algumas vezes, até mortas. Exemplos não faltam.
Sobre nós, mulheres, recai uma sobrecarga de tarefas dentro e fora de casa com trabalhos infinitos colocando a política como algo inalcançável, e quando insistentemente chegamos nesse espaço fica muito difícil competir com homens que em sua maioria têm muito dinheiro, é desigual demais, até porque foi construído que mulheres públicas são aquelas moralmente questionáveis por ter deixado de lado o papel de mulher que foi construído para todas nós, como o cuidado com a casa e de todos os membros da família, o lugar do silêncio em espaços públicos. Tribuna, nem pensar. Ir contra essa construção cultural é visto como uma afronta que deve ser combatida e é aí que a violência prevalece.
Aproveito esse tema para relembrar o forte exemplo de Marielle Franco, mulher negra, LGBTQIA+ e da periferia, morta com vários tiros, inclusive na cabeça, atingida com o carro em movimento por um matador profissional, provavelmente muito caro pela eficiência certeira no serviço feito. O homem que apertou o gatilho está preso e nesse 14 de março de 2022 farão quatro anos do assassinato sem solução de Marielle. Ninguém sabe apontar seu mandante, ou pelo menos as instituições que estão atreladas a homens poderosos não permitem chegar a seu mandante. Como pode? Uma mulher negra, lésbica e vinda da periferia incomodar homens capazes de pagar pela sua morte, o que justifica, se não o incomodo em ter que dividir o poder político de uma cidade com uma mulher com esses perfis? O destino de Marielle antes do seu assassinato era o de ocupar ainda mais espaços importantes na política não só no Rio de Janeiro onde era vereadora, mas no cenário nacional do país. Marielle lutava contra algo que cresce enormemente e coloca em xeque a vida de muitas outras pessoas: a luta contra a milícia e, consequentemente, a própria indústria de armamentos. Marielle era a personificação da mulher afrontosa a um sistema construído no poder da violência das armas, da masculinidade tóxica de homens que mandam e pra nós, mulheres, só nos cabe obedecer. Não podemos esquecer a construção do Brasil utilizando-se do racismo, machismo e muita violência, oprimir para melhor explorar o trabalho dessas pessoas, por séculos.
O que se queria com o assassinato de Marielle não era só acabar com sua existência física na política, mas mandar um recado a todas as outras que como Marielle, ousem estar nesse espaço tão masculino.
O que se queria com o assassinato de Marielle não era só acabar com sua existência física na política, mas mandar um recado a todas as outras que como Marielle, ousem estar nesse espaço tão masculino. O recado não funcionou. Segundo o TSE, no pleito de 2020 chegamos a 33,6% de candidaturas femininas, enquanto nos pleitos anteriores o máximo que se chegou foi a 32%. Um crescimento, muito tímido, é verdade, principalmente se lembrarmos que 52% da população é de mulheres. Mas é um crescimento, apesar das inúmeras barreiras culturais e institucionais.
Estímulos para as mulheres adentrarem na política até existem, como a lei de cotas, que obriga partidos a terem 30% de candidaturas femininas. Mas no fim parecem com aquelas típicas leis “pra inglês ver” com partidos fundamentalmente dirigidos por homens lançando muitas candidaturas laranjas e os números revelam o quanto é real o artifício das falsas candidaturas de mulheres. Segundo a G1, em 2016, quase 15 mil mulheres candidatas a vereadoras não tiveram nem mesmo o seu próprio voto, chegando a 10% das candidaturas. Quando reais, muito é feito para que elas não alcancem a vitória, são micro violências que vão desde o desdém, à falta de recursos financeiros, tempos de TV reduzidos e em horários que as tornem invisíveis e assim em diante. Mas se mesmo assim a candidatura de mulher chegar a ser vitoriosa, na mesma proporção do espaço conquistado, as violências aumentam.
Será que temos tempo e força pra essa difícil batalha muitas vezes contra nossos próprios companheiros de partidos? Ou será que só aquela mulher com condição financeira de pagar outra mulher para exercer o trabalho doméstico do cuidado com a casa e com as pessoas, possam ser candidatas? Onde ficam as candidaturas das mulheres que representam a maioria das mulheres na sociedade? Será que os homens da esquerda vêm as mulheres candidatas como suas rivais em potencial ou é somente nos partidos de direita ou extrema direita onde a invisibilidade acontece? E o que fazer para superar enormes desafios? Cobrar mais leis e mudanças dentro das próprias organizações partidárias, onde mulheres ocupem mais as direções desses partidos, onde a paridade faça parte de uma pressão permanente até que seja alcançada também nas candidaturas de mulheres, maior financiamento e por óbvio que os partidos que praticam o jeitinho de invisibilizar as mulheres paguem por isso. E por fim, construindo uma forte frente de mulheres que se apresente, diante desse cenário de tantas violências, como uma verdadeira resistência feminista.
*Anna Karina é feminista, mãe, professora da escola pública, candidata não eleita por duas vezes, mestranda em educação pela Universidade Regional do Cariri e militante da Resistëncia Feminista
**Texto originalmente publicado no portal Fábrica de Imagens
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