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TEORIA

Homenagem a um marxista revolucionário: David Riazanov

Luciano Mendonça de Lima*
David Riazanov
The Charnel-House

Além da militância política junto aos trabalhadores e suas organizações, Marx e Engels escreveram uma intensa e, extensa, obra, base da concepção materialista da história e do projeto socialista de transformação radical da ordem burguesa, produção intelectual essa constituída de livros, artigos, cartas, ensaios, manuscritos etc. O que talvez todos não saibam é que, por vicissitudes históricas, apenas uma pequena parte dos escritos dos fundadores do marxismo vieram à luz do dia no período de vida de ambos. 

Nesse meio tempo, foram necessárias a junção de recursos materiais e a iniciativa de entidades, instituições e militantes de vários países para que o conjunto do espólio intelectual de Marx e Engels não caísse no esquecimento, à crítica roedora dos ratos e a incúria dos homens. Desse trabalho hercúleo resultou a publicação, em 114, dos trabalhos da dupla de pensadores revolucionários, o chamado projeto Mega 2. Pela primeira vez na história pesquisadores, organizações do movimento operário e popular e o público em geral têm ao dispor as obras completas dos nossos autores, um acontecimento editorial e político dos mais importantes nesse limiar de século, que coincide com a crise do capitalismo e a renovação do ideário da filosofia da práxis. Se hoje podemos comemorar esse feito ímpar, é porque lá atrás existiram pioneiros, sem cujo trabalho, esforço, persistência, dedicação e sacrifício, essa história seria impensável. Dentre esses, destaca-se o nome de David Riazanov, nascido em 10 de março de 1870, há 152 anos, na cidade ucraniana de Odessa, que à época fazia parte do autocrático Império russo, atualmente alvo de bombardeios criminosos na guerra imperialista em curso na Europa. 

Riazanov fez parte daquela que foi, até o momento, a mais talentosa e cosmopolita geração da tradição marxista, que se forjou entre finais do século do século XIX e primeiras décadas do XX. Geração essa contemporânea de eventos históricos como o imperialismo, as traumáticas guerras mundiais e a explosão de processos revolucionários e contrarrevolucionários. Como muitos desses personagens, que inclui, homens e mulheres tais como – V. Lenin, L. Trotsky, Rosa Luxemburgo, N. Bukhárin, C.Zetkin, A. Kollantai, K. Liebknecht, A. Pannekoek, G. Zinoviev, L. Kamenev, E. Pachukanis, F. Mehring, A. Parvus, A. Gramsci, Vera Zasulitch, L. Kamenev, A. Lunacharsky e José Carlos Mariátegui, G. Lukács, W. Benjamin, E. Preobrajensky – viveu a dura experiência do cárcere, da perseguição política e do exílio, o que o fez compartilhar experiências comuns, em termos de aprendizado intelectual, embates ideológicos e lutas políticas. Como quase todo o grupo, de forma direta ou indireta, participou da Revolução russa de 1917, que varreu do mapa o carcomido Império tzarista e sobre seus escombros deu início ao processo de construção do socialismo no mundo. 

Paralelamente a sua participação no front política (mormente nos meios sindicais), se engajou de corpo e alma no projeto de toda uma vida: a criação do Instituto Marx/Engels em 1921, com sede na capital Moscou. Para isso se cercou de especialistas, independente de filiações partidárias, o que haveria de lhe acarretar posteriormente sérios problemas. Em que pese apresentar divergências com alguns dos mais eminentes líderes bolcheviques, a começar de Lenin, teve todo apoio do nascente Estado Soviético, que mesmo com todas dificuldades vividas naquela quadra histórica, não poupou esforços para fornecer o suporte material e político para empreitada de tal magnitude. Foi nesse contexto que, sob sua firme batuta, se deu a primeira e sistemático tentativa de localizar, reunir, traduzir e publicar, através de um minucioso e exaustivo trabalho critico-histórico, as obras de Marx e Engels, projeto esse que ficou conhecido como Mega 1. 

Foi graças ao trabalho desenvolvido no interior IME que clássicos da literatura marxista, como “A ideologia alemã”; “Os manuscritos econômicos-filosóficos”; “Crítica da filosofia do direito de Hegel”; Grundrisse”; Dialética da natureza”, puderam chegar às mãos de muitos leitores, por meio de diferentes traduções dos originais. Convém lembrar ainda, que o próprio Riazanov também foi um escritor de mão cheia, publicando importantes artigos e ensaios de sua lavra sobre a história do movimento operário e do socialismo. 

Com os retrocessos e os descaminhos que o processo revolucionário foi tomando, o projeto da Mega 1 foi abruptamente interrompido, o Instituto desmontado e a equipe interdisciplinar de estudiosos e pesquisadores demitida. Riazanov foi destituído de todos os cargos que ocupava, expulso do Partido Comunista, preso, julgado sumariamente e condenado a três anos de prisão, com trabalho forçado, na distante cidade de Saratov. Mesmo diante de torturas, humilhações e maus-tratos, enfrentou a situação limite com altivez e coragem, traços marcantes de sua personalidade independente, negando até o fim as infames acusações de atividades contrarrevolucionários, não delatando nenhum dos companheiros injustamente perseguidos por Stalin e sua camarilha, a mais perfeita tradução da burocratização e do esvaziamento das virtualidades revolucionárias que o outubro de 1917 liberou. Nesse sentido, Riazanov, com o projeto político e intelectual encarnado na MEGA 1, era o avesso da vulgata do marxismo-leninismo, a doutrina oficial do Estado soviético e seus satélites.  

Finda sua pena, tentou retomar sua rotina, distante do que mais apreciava e gostava na vida: os amigos, os livros e as atividades acadêmicas e políticas. Porém, com a intensificação da repressão stalinista, no contexto mais amplos dos grandes expurgos dos anos 1930 e da farsa dos Processos de Moscou, Riazanov mais uma vez foi preso, teve seus bens confiscados, condenado à morte, fuzilado e enterrado numa vala comum em 21 de janeiro de 1938. 

Apesar de seu fim trágico, Riazanov não foi esquecido e nas últimas décadas seu nome e legado (como intelectual e revolucionário), são cada vez mais reconhecidos. Enquanto isso, seus algozes tiveram o fim merecido: a latrina da história, malgrado os esforços de grupelhos neostalinistas mundo afora, inclusive no Brasil, de reabilitar essa que, certamente, é página mais catastrófica da esquerda, cuja herança maldita deve ser enterrada com todas as “honras”. 

Por fim, termino o texto dando a palavra ao nosso homenageado, que, mais do que nenhum outro crítico, foi quem melhor se autodefiniu: “Não sou um bolchevique, não sou um menchevique, não sou um leninista. Sou apenas um marxista e, enquanto marxista, sou um comunista”. David Riazanov:  presente, hoje e sempre! 

*Luciano Mendonça de Lima é professor da UAHIS/CH/UFCG