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O PSOL deve lutar por uma frente com o PT

Lula falando
Ricardo Stuckert/ PT/ Jota

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

O segredo para se andar sobre as águas é saber onde estão as pedras.
Sabedoria popular chinesa

1. Os termos do legítimo debate da tática eleitoral em 2022 são claros e difíceis: a esquerda marxista deve apoiar Lula desde o primeiro turno ou não? A polêmica ficou mais complicada e áspera, depois de novembro, com o anúncio de que Geraldo Alckmin poderia ser o candidato a vice-presidente ao lado de Lula. Não parece sequer razoável a posição de quem seria contra votar Lula, mesmo em um segundo turno contra Bolsonaro. Uma decisão tática deve nascer de uma avaliação lúcida da conjuntura. Não estamos em situação pré-revolucionária no Brasil. Muito ao contrário, atravessamos cinco anos de situação reacionária. Recém aconteceu, no segundo semestre de 2021 uma inflexão favorável na relação social de forças entre as classes, e se abriu uma situação transitória. A disputa eleitoral com Bolsonaro será diferente, qualitativamente, de todas as eleições desde 1989. Será a mais perigosa.

2. O PSOL decidiu no seu Congresso Nacional, em setembro de 2021, lutar por uma Frente de Esquerda para as eleições presidenciais. Foi uma mudança. Afinal o PSOL sempre apresentou candidatura própria, e era previsível que houvesse muita contrariedade. Essa decisão se apoiava em muitas considerações sobre as oscilações na relação social de forças e a conjuntura. As três mais importantes são: (a) o perigo de uma vitória de Bolsonaro é improvável, mas não é impensável uma provocação neofascista; (b) Lula será o instrumento eleitoral das massas populares para derrotar a extrema-direita, ainda que vertiginoso “giro para o centro”; (c) as eleições do primeiro turno terão caráter plebiscitário, e as candidaturas do núcleo capitalista mais poderoso que rompeu com Bolsonaro, mesmo que se unifiquem em uma “terceira via” não terão espaço político.

3. O PSOL tem força suficiente e legitimidade para defender uma Frente de Esquerda e, portanto, pode e deve fazê-lo. A luta pela Frente de Esquerda contra a presença de Alckmin na vice, e por um programa de ruptura com o neoliberalismo, é uma exigência e responde a um momento da disputa eleitoral. O tempo tem importância. Há aqueles, inclusive dentro do PSOL, que consideram que a luta pela independência de classe só é efetiva se for construída com denúncias. Não valorizam a apresentação de exigências. É verdade que grupos, politicamente, pouco influentes não têm autoridade para fazer exigências. A chapa Lula/Alckmin ainda não foi oficializada. Essa luta é legítima porque, na parcela mais politizada do ativismo e da área de influência da esquerda, ainda que petista ou lulista, há aqueles que concordam conosco. Claro que na “imensidão” do Brasil profundo esse debate não tem qualquer repercussão. Apoiarão Lula, seja quem for o vice. Nas amplas massas populares o desgaste provocado por três anos de um governo de extrema direita liderado por um neofascista como Bolsonaro é grande demais, e não há espaço para a crítica. Mas nos setores de vanguarda mais ampla, embora o PT tenha se recuperado e Lula tenha sido preservado, há diálogo e até uma simpatia pelas propostas e exigências apresentadas pelo PSOL. Lutar por uma Frente de Esquerda, e alertar que Alckmin será um cavalo de troia, um novo Michel Temer não é maquiar a Frente Ampla. Não é “embelezar”. É colocar um debate político.

4. Uma vitória de Bolsonaro, quando fazemos os cálculos nas condições atuais, com sete meses de antecedência é improvável, mas não impensável. Quem considera na esquerda marxista que a batalha já está decidida e Bolsonaro é um “cadáver insepulto”, mesmo que escreva nas análises mediações com “mas, todavia, contudo, entretanto”, conclui que não há problema algum em apresentar uma candidatura própria no primeiro turno, simultaneamente, contra Bolsonaro e Lula. Há outras duas premissas ocultas neste tipo de análises. A primeira é que é indispensável alertar, por antecipação, os setores mais avançados da classe trabalhadora e da juventude de que um futuro governo Lula será um governo burguês. A segunda é que vai existir de certeza um segundo turno, e haverá tempo para “fazer a curva” e apoiar Lula contra Bolsonaro mais adiante. 

5. Mas a controvérsia sobre a possibilidade de uma candidatura de esquerda radical através do PSOL, com um programa anticapitalista, desperta paixões. Não expressa somente uma “teimosia dogmática” e merece respeito. Uma maioria da militância em todos os partidos de esquerda tem aversão pelo que Alckmin representa, porque a história conta. Uma parcela do ativismo mais jovem nos movimentos sociais tem, com razão, reservas, ou até desconfiança na manobra articulada para forjar a Frente Ampla. Mas não é, tampouco, uma discussão de princípios. Denominamos princípios aquelas referências que são os pilares de uma visão socialista do mundo, e que passaram à prova da história. Os princípios são poucos. O princípio da independência de classe obedece a uma estratégia política: os trabalhadores e oprimidos devem se organizar em instrumentos de luta próprios para abrir o caminho para o poder e superar o capitalismo. A indicação de voto é uma decisão tática eleitoral, estritamente, conjuntural, portanto, uma mediação. Decisões táticas obedecem a cálculos em que se avaliam vantagens e desvantagens, considerando os riscos. Disputa eleitoral não é uma discussão de “ideias”. O momento da campanha eleitoral é um momento excepcional em que as grandes massas populares concentram sua atenção para a luta política. Trata-se de um combate de máxima gravidade pelo poder, ainda que de forma distorcida.

6. Nunca existiu a possibilidade da candidatura Lula/Alckmin ser considerada uma Frente de Esquerda. Seria absurdo. As insinuações nesse sentido não são honestas. Mas isso não diminui a justiça da luta contra Alckmin e por um programa de reformas estruturais e medidas anticapitalistas. Que Lula a defenda não autoriza a conclusão de que não haja um intenso mal estar em uma parcela da esquerda, e até entre os petistas. A linha de lutar contra Alckmin e por uma Frente de Esquerda é justa, por muitas razões. Alianças se fazem apresentando exigências. Exigências são propostas, não ultimatos. Obedecem a uma avaliação da relação de forças, e são uma aposta de que é possível ser ouvido, conquistar aprovação e respeito.

7. A chapa Lula/Alckmin é uma “Frente Ampla”, ou uma Frente encabeçada pelo principal partido de esquerda com uma liderança política burguesa que estava tão em decadência que não conseguiria indicação de seu próprio partido sequer para governador, e se associou em “voo solo” ao PT, e não parece ser capaz de arrastar muitas lideranças empresariais ou políticas. A classe dominante é consciente que Lula estará aberto às negociações. Mas Lula não é, tampouco, a candidatura da fração mais poderosa da burguesia. A classe dominante está dividida diante das eleições. Uma parcela mais reacionária vinculada ao agronegócio e à mineração e setores do capital financeiro, mas com audiência majoritária na “massa” da burguesia, apoiará Bolsonaro. Uma parte do setor mais concentrado da classe dominante se alinhou na construção de uma candidatura liberal. Mas estão divididos e muitas lideranças competem entre si: Sergio Moro, João Dória, Simone Tebet, Eduardo Leite.

8. Uma decisão de tática eleitoral não responde somente à análise da conjuntura. O PSOL precisa avaliar também qual deve ser o seu lugar na reorganização da esquerda, e fazer cálculos sobre a sua construção. Muitas considerações foram feitas, mas as três mais importantes remetiam à relação política de forças dentro da esquerda: (a) a necessidade de fazer a disputa nas melhores condições para derrotar Bolsonaro, considerando que, embora improvável, pode não existir segundo turno, ao contrário de todas as eleições desde 2002; (b) o reconhecimento de que o PT permanece sendo a força mais poderosa na esquerda, e a liderança de Lula a mais popular, considerando o risco de não sermos sequer escutados e o perigo de um isolamento “galáctico”; (c) a necessidade de garantir a defesa da legalidade do PSOL que depende da superação da cláusula de barreira de 2% dos votos para a Câmara Federal.

9. Já foram apresentadas três pré-candidaturas com um perfil de esquerda radical pelo PSTU, PCB e Unidade Popular. As três se identificam, cada uma à sua maneira, como candidaturas revolucionárias, e merecem respeito. O PSOL não disputa com essas três organizações o campeonato de “quem é mais revolucionário”. O PSOL já é muito mais do que um núcleo de propaganda marxista. Embora seja minoritário, quando em comparação com o PT, não é, eleitoralmente, “invisível”. Marcelo Freixo e Guilherme Boulos já chegaram ao segundo turno das duas maiores cidades do Brasil. O PSOL tem responsabilidades: organiza algo em torno de dez mil militantes orgânicos em suas correntes internas, inspira o ativismo de dezenas de milhares nos movimentos sociais, e recebe a simpatia eleitoral de alguns milhões. O PSOL é um partido socialista de esquerda com um programa anticapitalista, dentro do qual convivem e colaboram diferentes tendências, com distintas tradições. O PSOL elegeu dez deputados federais em 2018, e garantiu sua presença na legalidade, o que significa acesso às verbas do fundo eleitoral e presença no horário eleitoral gratuito. Essa conquista não foi fácil e não é irrelevante, seja qual for o destino que o futuro nos reserva.

10. Algumas correntes revolucionárias, no Brasil e no exterior, consideram que apoiar Lula, desde o primeiro turno, não seria somente errado, mas uma capitulação que envolve a violação de uma questão de princípios: a defesa da independência de classe. Não é justo. Se fosse uma questão de princípios não se deveria, tampouco, votar em um segundo turno. Um governo Lula não pode ser, seriamente, igualado a um governo Bolsonaro. Este critério é de “inspiração” anarquista: “hay gobierno soy contra” ou “todos são governos burgueses”. Evidentemente, os governos liderados pelo PT foram governos de colaboração de classes que respeitaram, até os limites máximos, na véspera do golpe de 2016, as instituições do regime democrático-liberal. Mas seria uma irresponsabilidade política ignorar que Bolsonaro é uma ameaça bonapartista. Teria sido muito melhor se tivesse sido possível derrubar Bolsonaro através de mobilizações nas ruas de milhões, mas não foi. A tradição marxista revolucionária recolhe incontáveis exemplos em que a melhor tática foi votar, criticamente, nas lideranças reformistas com influência entre os trabalhadores. Nenhum princípio nos proíbe de votar em Lula desde o primeiro turno. O marxismo não tem decálogo eleitoral. O que é de princípios é a não participação em um governo dirigido por um partido de esquerda em coalizão com setores da burguesia e um programa de gestão da crise capitalista.

(Atualizado em 12/03/2022, às 20h10)