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MUNDO

Ucrânia: Não à Guerra

Andros Payiatsos*, da Grécia. Tradução: Marcio Musse
Refugiadas ucranianas, dentro de um veículo
  • Fora as tropas russas da Ucrânia
  • Não à expansão da OTAN para o Leste
  • Por um movimento internacional de massa contra a guerra
  • Autodeterminação para as províncias de língua russa da Ucrânia Oriental

Nas primeiras horas da manhã de quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022, a Rússia invadiu a Ucrânia por todos os lados: leste, norte e sul. Isso pode se transformar em um dos piores confrontos militares na Europa em décadas.

Ainda não está claro até onde o regime de Putin pretende ir. É possível que esta ofensiva maciça tenha como objetivo principal “desmantelar” a capacidade de resistência do exército ucraniano, de modo a facilitar a marcha de Putin e ocupar as regiões do sudeste, Donetsk e Luhansk. Em outras palavras, a invasão real poderia ser essencialmente limitada às regiões de Donetsk e Luhansk. Mas isso está longe de ser uma certeza. Se os planos de Putin forem além disso e visarem ocupar grandes partes do país, isso significa que ele perdeu todo o senso de equilíbrio – um país desse tamanho não pode ser mantido subjugado por nenhum exército invasor. Tal movimento criaria um foco de guerra e de enorme desestabilização por um longo período de tempo.

Esses desenvolvimentos esclarecem o quadro sobre se Putin realmente se importava com as populações russófonas do leste da Ucrânia, como ele tem afirmado: Putin está simplesmente servindo aos interesses do imperialismo russo e do chauvinismo da Grande Rússia.

Neste momento é importante fortalecer as vozes, especialmente da esquerda, contra a guerra e manter distâncias claras tanto do imperialismo russo quanto do ocidental; revelando não apenas a barbárie do capitalismo russo, mas também a hipocrisia do Ocidente (EUA, UE, OTAN) que só se lembra dos direitos humanos, da democracia e do direito internacional quando servem aos seus próprios interesses.

A nova “guerra fria”

O último movimento do regime russo representa uma séria escalada nas relações já extremamente tensas entre a Rússia e os parceiros EUA/UE/OTAN. É o episódio mais recente da nova “guerra fria” que está em andamento, que envolve não apenas a Rússia e o Ocidente, mas inclui a China, que está crescendo economicamente para ameaçar o domínio dos EUA na economia global. Rússia e China vêm construindo um bloco comum contra seu adversário comum, apesar de suas diferenças.

A expressão “guerra fria” foi originalmente usada após a Segunda Guerra Mundial e ilustrava a luta entre dois sistemas econômicos concorrentes: o capitalismo no Ocidente e as economias planificadas nacionalizadas da União Soviética e do Bloco Oriental. A “guerra fria” de hoje não tem aspectos ideológicos, é claramente um reflexo da competição entre potências capitalistas rivais.

Na raiz disso está o fato de que a dominação do globo pelos EUA (e seus aliados) está enfraquecida e ameaçada. A China representa uma ameaça para os EUA no plano econômico – ameaçando deslocá-la de sua posição de economia mais poderosa antes mesmo do final da década atual. O imperialismo russo tem expandido suas esferas de influência usando seu poder militar às custas do imperialismo norte-americano e seus aliados. Já demonstrou isso no Oriente Médio, particularmente na Síria na última parte da década passada, enquanto suas relações estreitas (embora contraditórias) com o regime turco de Tagip Erdogan se tornaram uma grande dor de cabeça para o Ocidente, pois a Turquia é um estado membro da OTAN.

O bloco capitalista ocidental trava uma grande batalha para conter a expansão de seus concorrentes – Rússia e China. Mas esta é uma batalha defensiva.

Apesar de sua relativa fraqueza econômica, a Rússia continua sendo uma superpotência no que diz respeito ao poderio militar. O Ocidente não foi capaz de minar seriamente seu potencial militar. A ascensão econômica da China não pode ser interrompida – só pode ser desacelerada até certo ponto (o que não é possível prever com precisão) através dos esforços dos EUA e seus aliados. O principal, e este é o ponto-chave, é que não há como a economia dos EUA avançar deixando a China cada vez mais para trás em sua competição mútua. A cooperação da Rússia com a China aumenta o poder combinado dos dois, representando uma séria ameaça à aliança ocidental em todos os níveis no longo prazo.

A hegemonia americana foi apresentada triunfalmente como a “Pax Americana” do “fim da história” nos anos 1990, após o colapso da União Soviética. Trinta anos depois, está em pleno refluxo e enfrentando uma crise de “identidade”. A humilhante retirada dos EUA da Síria e do Oriente Médio em geral, seguida do último fiasco no Afeganistão, são exemplos ilustrativos disso. Ao mesmo tempo, o desafio colocado pela ascensão da China na economia global é muito mais importante do que essas derrotas geopolíticas.

Contexto histórico

As potências ocidentais aproveitaram ao máximo a posição extremamente fraca em que a Rússia se encontrava após o colapso da União Soviética. A influência ocidental expandiu-se de todas as formas possíveis, absorvendo os antigos países do Bloco Oriental nos Balcãs e na Europa Central. O Ocidente se expandiu econômica e militarmente, integrando muitos desses países à UE e à OTAN – 14 países se juntaram à OTAN no Leste, após o colapso da União Soviética.

Na década de 2010 foi feita uma tentativa de integrar a Ucrânia no bloco ocidental. Em 2013, uma revolta que começou como reação à pobreza, corrupção e crise social, foi apoiada e eventualmente controlada pelo Ocidente com a intervenção ativa de organizações neofascistas. Isso levou à queda do então governo pró-Rússia, abrindo caminho para a Ucrânia estreitando seus laços com as potências ocidentais. Esta revolta ficou conhecida como o movimento Euro-Maidan.

O capitalismo russo sentiu-se sob ameaça imediata: não apenas porque a Ucrânia estaria conectada economicamente ao Ocidente, mas também porque permitiria que o Ocidente colocasse bases de mísseis no “quintal” da Rússia. Desta forma, o Ocidente alcançaria uma enorme vantagem militar em seu confronto com o capitalismo russo.

Esperar que a Rússia fique sentada e apenas observe esses desenvolvimentos seria ingênuo, especialmente porque uma porcentagem muito grande da população da Ucrânia é de língua russa (pelo menos 30%, até mais de acordo com outras fontes), enquanto algumas áreas no leste e sudeste da Ucrânia usam majoritariamente o idioma  russo e com uma forte identidade nacional russa.

A anexação da Crimeia em 2014 foi a primeira resposta da Rússia à tentativa do Ocidente de colocar a Ucrânia em sua esfera de influência. Além disso, uma revolta na parte leste do país, onde estão localizadas as regiões de Donetsk e Luhansk, levou à declaração de sua independência no mesmo ano.

Este ato de independência foi reconhecido pela Rússia na segunda-feira, 21 de fevereiro, cancelando dois acordos internacionais (Minsk I e Minsk II que previam autonomia e cessar-fogo) que nunca foram respeitados por ninguém. Isto foi seguido pelo ataque em grande escala que testemunhamos na quinta-feira, 24.

O Ocidente respondeu à anexação da Crimeia com sanções que ainda estavam em vigor até 21 de fevereiro – várias sanções foram impostas desde então. Desde 2014, o Ocidente vem investindo na Ucrânia, enquanto o presidente do país, V. Zelensky continuou se referindo à entrada da Ucrânia na OTAN – um projeto que foi calorosamente apoiado pela OTAN. Ao mesmo tempo, os EUA mantinham constantemente uma atitude de confronto e aumentavam as tensões com o regime russo, que descrevem como “uma ameaça à paz e à democracia”.

Esta descrição do regime da Rússia é bastante correta, mas na verdade os EUA e a OTAN não estão realmente em condições de dar lições sobre democracia e paz a ninguém.

A questão nacional na Ucrânia

O fato de que uma porcentagem muito grande da população da Ucrânia (cerca de 44 milhões no total) é falante de russo e uma parte significativa deles (os relatórios falam de até 50% dos falantes de russo) se sentem de origem nacional russa, oferece uma enorme vantagem para Putin.

É claro que pessoas que falam línguas diferentes não representam um problema em si – muito pelo contrário. O problema é que as forças que se chocam na Ucrânia e as dinâmicas que estão sendo criadas estão instrumentalizando a questão nacional para servir aos seus propósitos.

As tensões nacionais surgiram em toda a União Soviética e no bloco oriental após o colapso do stalinismo – esta foi uma característica central da dissolução da União Soviética e esteve no centro da terrível guerra civil na ex-Iugoslávia etc, e em outras na Ásia Central. A razão é basicamente a seguinte: as novas classes capitalistas que surgiram nos antigos estados stalinistas, em seu caminho para a criação de novos estados-nação (sob seu controle), tiveram que vestir isso com uma ideologia. A única ideologia que serve a esse propósito no capitalismo é o nacionalismo (juntamente com alguma cobertura da religião, sempre que as circunstâncias permitirem). O nacionalismo andou de mãos dadas com a fratura do bloco oriental e as guerras que se seguiram.

A questão étnica que explodiu na Ucrânia com a declaração de independência de Donetsk e Lugansk contabiliza até agora 14 mil mortos e quase 1,5 milhão de refugiados. O lado de Putin está chamando isso de genocídio, Zelensky, o presidente da Ucrânia, e seus aliados ocidentais o refutam – como se tantos mortos e deslocados fossem um dano colateral insignificante.

Um “detalhe” importante aqui, no entanto, é que a anexação da Crimeia foi acompanhada de um referendo no qual uma grande maioria votou a favor de sair da Ucrânia. Referendos também foram realizados em Donetsk e Lugansk, novamente com maiorias maciças a favor da independência. Mesmo que o direito das nações à autodeterminação no mundo de hoje não passe de frases vazias, as pessoas dentro da esquerda revolucionária, que mantêm seus valores independentemente de diferentes circunstâncias, não têm o direito de negligenciá-lo.

A anexação da Crimeia em 2014 foi assim caracterizada por dois elementos principais: por um lado era uma expressão das tendências imperialistas-expansionistas do capitalismo/imperialismo russo, mas por outro lado refletia a vontade expressa do povo da Crimeia para autodeterminação e uma secessão da Ucrânia. Ambos os elementos precisam ser levados em conta.

Algo semelhante se aplica às províncias de Donetsk e Luhansk hoje. O envio de tropas de Putin para as duas províncias e o início da guerra com a Ucrânia é um plano reacionário integrado para servir aos interesses do imperialismo russo. No entanto, os direitos dos habitantes do leste da Ucrânia também precisam ser levados em consideração e mantidos em perspectiva.

O presidente da Ucrânia, Zelensky, proibiu (desde 2019) o uso de qualquer idioma que não o ucraniano em escolas secundárias, escolas técnicas e universidades. Ele também está impondo severas restrições ao seu uso diário. A língua visada nessa proibição é principalmente o russo, embora as proibições também se apliquem a outras línguas, como húngaro, romeno, etc. Por anos, se recusaram a negociar com os separatistas em Donetsk e Luhansk, Zelensky está apenas interessado em suprimir sua rebelião pela força das armas.

Diante dessa realidade no leste da Ucrânia, não apoiar o direito das regiões insurgentes à autodeterminação significa, na prática, apoiar, ou pelo menos tolerar, sua repressão pelo governo do nacionalismo ucraniano.

Dito isso, porém, também é necessário notar que a autodeterminação real é impossível de ser alcançada sob o capitalismo. Em outras palavras, Donetsk e Luhansk estarão essencialmente subordinados a Kiev ou Moscou. O reconhecimento de sua independência por Moscou não os transformará em uma terra de paz, democracia e prosperidade, e o fato de a população local aparentemente estar de acordo com isso é irrelevante para nessa questão. Essas áreas permanecerão em estado de tensão de guerra por muito tempo. A desconfiança e o ódio étnicos serão herdados de uma geração para outra.

Sobre “direito internacional”, “democracia” e outros mitos semelhantes

A violação dos direitos nacionais e a supressão das comunidades de língua russa no leste da Ucrânia é uma realidade, e Zelensky não pode fingir ser a pomba inocente da paz e da democracia em comparação com os falcões de Putin. Ao mesmo tempo, o Ocidente não pode fingir ser amante da paz e democrata que se opõe ao regime autoritário de Putin. Sua hipocrisia é bastante evidente para quem tem os olhos abertos. Basta olhar para as suas práticas no Médio Oriente: intervir com sangue nos países que se opõem a eles, como o Iraque e a Síria, abandonar as justas reivindicações e direitos do povo como os dos curdos, fechar os olhos ao carácter reacionário dos regimes que são amigável com eles, como o da Arábia Saudita.

O Ocidente está frequentemente citando a “lei internacional” contra seus oponentes, mas essa hipocrisia só pode provocar risadas amargas. Putin é, de fato, um representante reacionário do capitalismo russo, mas também o são os supostos “democratas” do Ocidente. Ambos os lados estão preparados para afogar os povos em sangue, apenas para defender seus próprios interesses. A Ucrânia não é um caso em que um lado é “ruim” enquanto o outro é “bom”, um lado está certo e o outro errado; ambos os lados são reacionários.

O que a esquerda deve defender?

Tentar defender um lado ou outro no conflito que se desenrola atualmente na Ucrânia é fútil e vão para qualquer parte da esquerda e da classe trabalhadora internacionalmente. Este é um conflito entre as potências imperialistas e seus interesses. As massas populares na Rússia e na Ucrânia não têm nada a ganhar com este conflito, elas apenas sofrerão, viverão com horror e pagarão com sangue. O problema continuar[a presente pelas próximas décadas.

Para que a esquerda seja consistente internacionalmente com seus valores e princípios, ela precisa defender os direitos do povo trabalhador nos países em guerra, contra o conflito entre seus governos e as superpotências imperialistas. Por mais difícil que seja, dada a atual correlação de forças, não há outro caminho a seguir.

São necessárias campanhas em massa, para exigir:

  • Fim da guerra, para um movimento internacional de paz contra a guerra na Ucrânia
  • Fora as tropas russas da Ucrânia
  • Nenhum apoio a Putin ou ao Ocidente;
  • Defender os interesses da classe trabalhadora, dos jovens que serão chamados a desperdiçar suas vidas como “bucha de canhão” e as massas populares tanto na Rússia quanto na Ucrânia, particularmente nas zonas de guerra.
  • Não à anexação de qualquer território pela Rússia, não à expansão da OTAN para o Leste
  • Dissolução de ambas as coalizões militares: a aliança ocidental da OTAN e a CSTO russa (Organização do Tratado de Segurança Coletiva)
  • Defesa dos direitos democráticos de todas as nacionalidades e minorias – sem proibir a sua língua, educação, cultura, história e segurança.
  • Defensa do direito à autodeterminação (até ao direito de secessão) das etnias que o perseguem, através de referendos democráticos e livres.

É impossível alcançar todas as demandas acima dentro da estrutura do sistema capitalista. Isso é verdade não apenas no caso da Ucrânia, mas em qualquer região com sérios problemas nacionais ou fortes antagonismos interimperialistas.

A paz, a democracia e o bem-estar das massas populares só podem ser alcançados através da luta comum das classes trabalhadoras contra os antagonismos nacionais de suas correspondentes classes dominantes.

Para atingir este objetivo é necessário construir novas organizações/partidos de esquerda em nível internacional, com base nos valores acima e com o objetivo final de transformação social, a derrubada do sistema capitalista e sua substituição por uma sociedade de igualdade, justiça e solidariedade, uma sociedade socialista baseada na democracia e na liberdade. Esta é a única forma de resolver os problemas nacionais, mas também de anular todas as desigualdades, pobrezas e guerras que condenam os povos do planeta à pobreza, à miséria e aos pesadelos das guerras.

*Publicado originalmente em https://www.internationaliststandpoint.org/ucrania-no-a-la-guerra/

 

As opiniões do autor não refletem, necessariamente, as do portal Esquerda Online. Somos uma publicação aberta às polêmicas e debates da esquerda socialista.