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Internacionalismo na guerra da Ucrânia

Ucraniano escala tanque destruído em Kiev

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Procure acender uma vela em vez de amaldiçoar a escuridão.
Sabedoria popular chinesa

A linha dos internacionalistas na Primeira Guerra Mundial foi o derrotismo revolucionário, em oposição irreconciliável com o apoio aos seus próprios governos imperialistas em cada país. Derrotismo revolucionário era considerar que a derrota do seu governo imperialista era o melhor caminho para conquistar a paz. Isso significava que os trabalhadores na Alemanha deviam lutar contra o governo do Kaiser. E na Rússia, pela derrota do governo do Czar.

Hoje o internacionalismo passa pela denúncia da invasão da Ucrânia pela Rússia. Passa pela luta da esquerda na Rússia contra Putin. Mas nos EUA e na Europa, a esquerda deve lutar contra os governos de Biden, Boris Johnson, Macron, Olaf Scholz e todos os demais aliados da Otan. O imperialismo norte-americano dirige a Otan e seu projeto é a transformação da Ucrânia em protetorado.

Hoje o internacionalismo passa pela denúncia da invasão da Ucrânia pela Rússia.

É necessário exigir a retirada das tropas russas. E defender os direitos democráticos dos que estão sendo presos na Rússia por se oporem à guerra é central. Mas é necessário dizer, também, que a Otan deve recuar imediatamente, suspender o envio de armas para o governo da Ucrânia, levantar aquelas sanções econômicas que estão se abatendo sobre o povo da Rússia, e não sobre Putin e a oligarquia capitalista que o sustenta.

O problema teórico político é que a guerra não é mais somente uma guerra da Rússia contra a Ucrânia. Em dez dias, a guerra adquiriu uma dupla dimensão. O tempo acelerou. Dez dias de guerra equivalem a meses ou anos em tempo de paz. A Otan entrou, ainda que, indiretamente, através do governo Zelensky na guerra. Financiamento econômico, envio de armamentos, sanções financeiras contra Moscou, iniciativa nas Nações Unidas são uma forma de alinhamento político e militar.

Não é a primeira vez que a história nos coloca diante de uma guerra que tem várias dimensões. A Segunda Guerra Mundial foi, também, uma guerra “múltipla”. Começou como uma guerra interimperialista entre Alemanha e Grã-Bretanha, e evoluiu com a formação do Eixo Berlim, Roma e Tóquio contra os Aliados. Mas foi, simultaneamente, outras três guerras:

(a) foi uma guerra contrarrevolucionária contra URSS com o projeto de colonização da Europa Oriental e escravização dos povos eslavos;

(b) foi uma guerra de extermínio contra judeus e ciganos, o holocausto;

(c) foi uma guerra de disputa entre duas formas de Estado ou de regimes políticos, a democracia liberal e o fascismo.

Outra discussão teórico-histórica é sobre a natureza imperialista do Estado russo.

Outra discussão teórico-histórica é sobre a natureza imperialista do Estado russo. Ela é chave porque uma parcela da esquerda brasileira abraçou a ideia de que a guerra na Ucrânia seria uma guerra preventiva de um Estado independente (alguns o consideram até periférico) contra o imperialismo dos EUA.

A discussão teórica sobre a natureza do imperialismo no século XXI deve ser feita com rigor e responsabilidade. Um pequeno erro teórico se transforma em tragédia política irreparável. A definição de critérios parece ser uma boa discussão preliminar. O lugar de cada país no sistema internacional de Estados dependeu de, pelo menos, quatro variáveis estratégicas:

(a) sua inserção histórica na etapa anterior, ou seja, a posição que ocupou em um sistema extremamente hierarquizado e rígido: afinal nos últimos cento e cinquenta anos somente um país, o Japão, foi incorporado ao centro do sistema, e todos os países coloniais e semicoloniais que ascenderam em sua inserção, como Cuba, só o fizeram depois de revoluções que permitiram conquistar maior independência;

(b) a dimensão de sua economia, ou seja, os estoques de capital acumulado, a capacidade de ter soberania monetária, o papel na crescente financeirização do mundo, ou seja, se é, exportador ou importador de capitais; os recursos naturais – como o território, as reservas de terras, os recursos minerais, a autossuficiência energética, alimentar, etc. – e humanos – entre estes, sua força demográfica e o estágio cultural da nação – assim como a dinâmica de desenvolvimento da indústria, ou seja, sua posição na divisão internacional do trabalho e no mercado mundial;

(c) a capacidade de cada Estado em manter a sua independência e o controle de suas áreas de influência. Ou seja, sua força militar de dissuasão, que depende não só do domínio da técnica militar ou da qualidade das suas Forças Armadas, mas do maior ou menor grau de coesão social da sociedade, portanto, da capacidade política do Estado de convencer a maioria do povo, se for incontornável, da necessidade da guerra;

(d) as alianças de longa duração dos Estados uns com os outros, que se concretizam em Tratados e Acordos de colaboração, e a relação de forças que resultam dos blocos formais e informais de que fazem parte, ou seja, sua rede de coalizão.

Estes quatro critérios podem ser resumidos como avaliação da história, economia, política e relações internacionais. Devem ser considerados quando analisamos o lugar da Rússia. A Rússia foi um dos maiores impérios europeus, e a revolução de outubro a maior vitória da revolução socialista mundial. Mas a restauração capitalista aconteceu há trinta anos.

O Estado russo não perdeu toda sua influência no Cáucaso e na Ásia central, como já foi confirmada pela intervenção na Geórgia, na recente guerra entre Armênia e Azerbaijão, pela intervenção militar no Cazaquistão, na preservação de Lukashenko na Bielorússia e na anexação da Crimeia. A Rússia é uma potência regional. A invasão da Ucrânia é mais uma demonstração de força.

O peso da economia da Rússia não pode ser aferido considerando somente a metodologia de aferição do PIB, aliás, muito polêmica. Embora seja decisiva na longa duração, a economia não é a única variável que deve ser considerada. A coesão política do regime bonapartista e a força de sua capacidade de mobilização militar estão sendo colocadas à prova, assim como a aliança com a China.

A caracterização de imperialismo subalterno ou subimperialismo não parece um exagero, porque está colocada à prova no laboratório da história. Além disso, no que remete às relações internacionais, é bom lembrar que não há monolitismo no campo imperialista norte-americano sobre a relação com a Rússia: Trump e a maior parte da extrema-direita europeia defendiam algum grau de aliança com Putin para evitar um alinhamento de Moscou com a China.