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MUNDO

Notas no quinto dia da guerra na Ucrânia

Waldo Mermelstein
Reprodução/DW

Explosão de um míssil antiaéreo das forças ucranianas atinge prédio.

  1. Estamos no quinto dia da invasão russa à Ucrânia. Ao contrário do que indicava Putin, não se trata de uma rápida operação bélica. A guerra envolve o conjunto do país, tendo chegado às grandes cidades, onde encontra mais resistência. Como todas as guerras – definidas como a continuação da política por outros meios – esta tem suas imprevisibilidades, tanto no campo de batalha como no rápido envolvimento das potências mundiais. Todo o tecido social e dos estados de alguma forma implicados é desafiado, muito mais na Ucrânia invadida onde já há centenas de milhares de deslocados e refugiados, centenas de mortos civis e e muita destruição de infraestrutura civil, mas também no invasor (em especial com a evolução concreta do conflito, distinta das previsões) e nos demais envolvidos, como os países de União Europeia e os EUA. Por essa razão, é prudente não nos apressarmos a ter respostas precisas sobre uma realidade altamente complexa, extremamente volátil e sobre a que o conhecimento dos fatos é dificultado como em todas as guerras, fazendo valer o lugar-comum de que a primeira vítima das guerras é a verdade.
  2. Estamos perante mais uma guerra injusta, um atentado à autodeterminação da nação ucraniana por uma potência regional, há muito conhecida por oprimir nacionalidades dentro do país e no seu entorno na Europa Oriental e Ásia Central. A Ucrânia, ao contrário do que disse Putin, não foi uma invenção de Lenin, foi o reconhecimento de uma realidade nacional, buscando eliminar as desconfianças de que o novo regime revolucionário manteria a opressão tradicional exercida pelo chovinismo grão-russo. Não por acaso, duas outras importantes nações subjugadas pelos czares, a Finlândia e a Polônia, receberam o direito de independência. Os EUA e as potências europeias se aproveitam disso para tentarem aparecer como os abandeirados dos direitos democráticos ucranianos, o que é evidentemente falso. 
  3. A guerra foi iniciada pela Rússia, com a desculpa de proteger as repúblicas separatistas de Lugansk e Donetsk, na região da Bacia do Don. No entanto, rapidamente percebeu-se que era uma operação de ampla escala e visava pelo menos depor o governo em Kiev e estabelecer algum tipo de regime títere a Moscou. Nisso, Putin honrou as piores tradições da Rússia czarista tão denunciadas por Lenin antes da revolução de 1917 e cuja sobrevivência sob a direção de Stálin foi o motivo da chamada “última batalha” política de Lenin, em particular contra as brutalidades cometidas pelo aparelho estatal contra minorias nacionais como os georgianos [1].
  4. No entanto, nossa defesa do direito da autodeterminação da nação ucraniana, e contra a invasão russa não se confunde com qualquer apoio ao regime liderado por Zelensky nem com o desconhecimento do papel beligerante da OTAN na região há décadas. Por outro lado, no intrincado tecido social e nacional da Ucrânia não ignoramos que há problemas nacionais internos, como a minoria étnica russa ou falante de russo. Não quer dizer isso que todos eles desejem separar-se da Ucrânia e/ou aderir ao estado russo, o que parece muito menos provável depois da agressão militar em larga escala. A minoria russa deve ter o direito de decidir democraticamente seu destino, em particular no caso da região da Bacia do Don. O que nos opomos é a transformação desse direito em pretexto para a invasão, como a Rússia vem longamente preparando. Consideramos razoável que essa deliberação democrática seja feita pela população local, com a condição da retirada das tropas russas e sem a presença dos separatistas financiados por Moscou.
  5. Ao contrário das previsões russas (e inclusive ocidentais e ucranianas), há uma resistência importante dos ucranianos, apesar da diferença imensa de forças. Povos não costumam gostar de ser invadidos e a Ucrânia tem um histórico de resistência. Isso explica que tenham se alistado para o combate 37 mil civis ucranianos e que as notícias vindas da capital, Kiev, indiquem a disposição de resistência da população perante a iminente chegada das tropas russas. Também não parece estar tranquila a situação dentro da Rússia: estão ocorrendo manifestações diárias de centenas de pessoas em dezenas de cidades russas, o que tem mantido o aparelho repressivo de Moscou bastante ativo, com milhares de presos. Parece que, ao contrário do caso da anexação da Crimeia quando houve uma verdadeira euforia patriótica, desta vez o cansaço pelo regime autocrático de Putin, que já dura vinte e dois anos e o temor às esperadas consequências econômicas cobrem seu preço no front interno, decisivo em qualquer guerra. Além dos efeitos no terreno familiar, pelos jovens que estão sendo enviados ao front, em um país com memórias históricas terríveis por ter suportado as maiores e decisivas batalhas durante a Segunda Guerra, e, mais recentemente, pela retirada humilhante do atoleiro em que se meteram na ocupação do Afeganistão de 1979 a 1989.
  6. A guerra em curso tem causas e repercussões internacionais. Em primeiro lugar, porque não se pode esquecer que existe uma política deliberada da OTAN, em representação das potências ocidentais que, a partir da queda da União Soviética, buscou impedir que a Rússia se reconstituísse como país. Os mapas do deslocamento das bases da OTAN nestas décadas a quase todos os países da Europa Oriental foram amplamente publicados nestes dias. O que, reiteramos, não justifica a brutal invasão da Ucrânia por uma potência militar como a Rússia.
  7. Mais além da injustiça, a decisão de Putin é muito questionável como forma de fazer com que a população ucraniana não se coloque a favor das potências ocidentais. O efeito é justamente o contrário. Dá prestígio a um regime de extrema-direita, como o de Zelensky, ainda mais quando apresenta uma resistência inesperada. Nesse sentido, não há uma distância tão grande entre ambos os regimes do ponto de vista de suas inclinações políticas. Como se notou no encontro amigável Putin-Bolsonaro às vésperas da invasão, em Moscou, que não foi uma casualidade, mas uma das mais recentes demonstrações dos vínculos entre o líder do Kremlin e a extrema-direita mundial, mesmo que alguns outros espécimes desta tendência tenham cedido à pressão dos EUA, como Orban, o dirigente húngaro.
  8. No entanto, o cerco cada vez mais apertado da OTAN nas últimas décadas não deveria ser motivo para que alguns camaradas de esquerda relevem a monstruosidade que está sendo perpetrada por Putin. O direito de autodeterminação é como uma regra de ouro estabelecida na relação com nações oprimidas. Por razões de justiça e para romper com as barreiras da justificada desconfiança dos povos segregados pelas grandes nações e/ou impérios capitalistas. O chovinismo criminoso de Putin e do estado russo só fortalece o sentimento equivocado, em particular entre os povos daquela região, de que a opção proposta pelas potências ocidentais é preferível.
  9. A guerra coloca em novo patamar a grave disputa pela hegemonia mundial, entre EUA e China, a potência em ascensão. A Rússia, um país incomparavelmente mais fraco economicamente que ambos, cada vez mais constrói um bloco com o colosso asiático. Há menos de um mês, ambos publicaram um comunicado conjunto, durante a realização das Olimpíadas de Inverno em Beijing, boicotadas pelo Ocidente. A aliança está sendo posta à prova pela guerra, já que a China nunca apoiou a anexação da Crimeia nem o fará em relação às províncias separatistas da Bacia do Don. Isso por várias razões: por um lado, as pragmáticas, na medida em que possui várias nacionalidades inconformadas com a hegemonia da etnia dominante, como os Uigurs e o Tibete, sem falar na “cidade rebelde” de Hong Kong, brutalmente reprimidos pelo regime de Beijing. Por outro, a China segunda potência mundial-, quer preservar e aumentar seus gigantescos investimentos pelo mundo que buscam matérias-primas baratas e mercados para seus produtos e serviços, utilizando práticas similares aos das empresas multinacionais ocidentais. Um exemplo dramático é o da mineração do lítio na América Latina com seus tremendos impactos ambientais [2]. Além disso, a China vem conquistando mercado nos países da União Europeia, tendo se tornado o maior exportador o bloco, em sua maioria produtos industrializados. Por isso, preza a estabilidade para preservar seus imensos investimentos.
  10. Ao contrário do que imaginam alguns de esquerda, o pacto China-Rússia não busca lutar contra as mazelas do sistema capitalista de tipo imperialista que se mantém no mundo, mas buscar um lugar mais confortável nele, nem tornará mais leve a vida dos bilhões que sofrem com as consequências da pandemia, da crise econômica e da crise civilizatória climática. 
  11. O principal efeito geopolítico da guerra é o de recolocar o confronto bélico entre potências no território europeu pela primeira vez depois da Segunda Guerra, se considerarmos que na Iugoslávia e Kosovo a intervenção ocidental não enfrentava diretamente nenhum país entre os mais poderosos do continente. Dizemos isso, porque, mesmo que não haja intervenção direta das tropas da OTAN no conflito, está claro que o exército ucraniano foi treinado e está sendo ativamente abastecido pelos EUA e pelos países europeus. Ao falarmos sobre a gravidade dessa guerra nos orientamos pela sua localização no coração da Europa e pelo poderio dos atores direta ou potencialmente envolvidos, como é o caso dos EUA e da União Europeia, além da Rússia, tendo um impacto mundial no agravamento do confronto entre potências. 
  12. Não ignoramos, muito pelo contrário, que esta já é a rotina há décadas em várias partes do chamado Sul Global, como as guerras imperialistas e entre nações na África, a Palestina ocupada e brutalizada em sua reação ao colonizador israelense, os golpes de estado que instauram ditaduras brutais como em Myanmar, além da impunidade de regimes ditatoriais como o da Arábia Saudita e outras monarquias absolutas no Golfo Pérsico. Isso nos faz reforçar a denúncia da agressão russa, que se aceita, somente vai legitimar os demais casos de brutalidade e opressão pelo mundo.
  13. Em alguns dias, a escalada nas tensões geopolíticas foi geométrica: os EUA e a Europa, sem chegar ao ponto de enviar tropas para a Ucrânia, o que levaria a um choque entre potências nucleares, aumentaram o apoio financeiro e militar ao regime ucraniano. As diferenças dentro da União Europeia foram secundarizadas (mas não deixaram de existir), sendo o exemplo mais claro o adiamento sine die da certificação por parte da Alemanha do gasoduto Nord Stream2, importante fonte de divisas para a Rússia e de energia mais barata para a população alemã. A Alemanha também acelerou o envio de armas à Ucrânia e anunciou que irá triplicar seus gastos militares neste ano. Aliás, uma consequência que deverá ser generalizada é a expansão ainda maior dos gastos com armas, que duplicou nas últimas décadas, tendo atingido perto de 2 trilhões de dólares em 2020, ao redor de um terço feitos pelos EUA. A China tem se mostrado cautelosa, não assumindo protagonismo direto no conflito, tentando preservar alguma distância do centro do conflito, assim como seu papel de garantidor em última instância da Rússia. Por outro lado, esse agravamento de tensões incide diretamente na cambaleante recuperação pós-pandêmica da economia mundial e acarretou uma nova alta nos preços do petróleo e dos alimentos que continuam se abatendo sobre o custo de vida das massas populares.
  14. A previsível imposição de pesadas sanções econômicas à Rússia ameaçando inclusive impedir o acesso ao rendimento das exportações e a seu fundo soberano marcou o grande aumento das tensões no final de semana, embora não esteja muito claro que extensão real terão essas sanções. A reação altamente significativa de Putin foi a de colocar em prontidão o sistema de armas nucleares russo. Seu efeito mais importante é psicológico: desde a crise dos mísseis em que os EUA cercaram Cuba em 1962, não havia uma recordação tão clara ao mundo de que existe um potencial destrutivo imenso em posse das potências nucleares. Não é de se crer que seja uma atitude real, porque nenhum arsenal nuclear fica sem preparação de rápida resposta. Sem isso, ele é inútil, porque impede a famosa resposta a um primeiro ataque. Os arsenais americanos – e certamente os russos – funcionam em esquema permanente de prontidão para uma emergência. 
  15. Mas é preciso deixar claro que as perspectivas de uma guerra nuclear são muito remotas, por mais que a mera menção a ela seja aterradora para a população mundial, o que já é um crime. Há décadas que a existência de grandes arsenais nucleares capazes de destruir o planeta várias vezes se constitui em um “equilíbrio do terror” da aniquilação mútua, que não é peça de ficção científica, mas uma probabilidade segura caso começasse uma guerra nuclear entre grandes potências militares. Por outro lado, desde o século passado e mais ainda durante o período de globalização do capital, os investimentos pelo mundo estão disseminados e os danos seriam indiscriminados. Por exemplo, a produção de veículos está distribuída por uma extensa cadeia de valor, que faz com que dezenas de países produzam diferentes partes. O mesmo em escala muito maior em relação aos mercados financeiros. Não é por nenhum altruísmo então que as principais potências mundiais não se arrisquem a um conflito nuclear, mas para não arriscar suas propriedades e seus lucros. 
  16. Hoje, 28/02, começaram negociações entre Rússia e Ucrânia que, como se esperava não resultaram em acordo, cuja única base aceitável para a nação agredida seria o cessar-fogo e a retirada imediata das tropas russas. Tampouco está claro se haverá algum tipo de cessar-fogo. Na Assembleia Geral da ONU que se iniciou nesta segunda-feira, a tendência é a de um grande isolamento da Rússia, mesmo que esta continue tendo o poder de veto no Conselho de Segurança da entidade internacional. De qualquer forma, todos os que acreditam no direito de autodeterminação das nações, que estão contra a guerra de ocupação, devem se posicionar claramente contra a ação russa e pela retirada incondicional de suas tropas da Ucrânia. Por razões de justiça elementar, mas também com uma consideração de mais longo alcance: as forças de esquerda não podem se confundir com nenhum dos setores em disputa pelo controle do mundo, o que começa por repudiar que um povo veja seu país ocupado, com suas consequências previsíveis. Ao mesmo tempo, está levando a que o povo russo seja atingido pelas sanções ocidentais brutais, que fez despencar o rublo e causou uma corrida aos terminais eletrônicos nos bancos russos. O que mostra mais uma vez do que são capazes os EUA e seus aliados imperialistas. Esta posição categórica de rechaço à invasão e guerra iniciada pela Rússia não se confunde com qualquer equívoco sobre o papel da OTAN e das potências ocidentais, em particular os EUA, na crise de mais longo prazo na região. 


NOTAS

[1] https://www.esquerdadiario.com.br/A-historia-do-testamento-de-Lenin

[2] http://geopolcomunes.org/la-expansion-de-china-un-taller-de-contrahegemonia-por-ariel-slipak/