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Lenin contra Putin

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

“Lenin, eles enlouqueceram.”

Pichação nos muros de Praga em 1968, quando da invasão soviética

  1. A invasão da Ucrânia pela Rússia não é uma guerra anti-imperialista.

Os interesses defensivos da Rússia não legitimam a ruína da Ucrânia. Não é uma guerra justa. A decisão de Putin é defendida por uma parcela dos setores mais combativos da esquerda brasileira recordando, com razão, que a Otan veio fechando um cerco à Rússia com a integração de treze países limítrofes: a República Checa, Polónia, Hungria (1999), Estónia, Letónia, Lituânia, Eslováquia, Roménia, Bulgária, Eslovénia (2004), Albânia, Croácia (2009) e Montenegro (2017). A autodefesa é legítima. A Rússia tem todo o direito em deixar claro e inegociável que a instalação de mísseis da Otan na Ucrânia é inaceitável. O papel da Otan não é de defesa da independência da Ucrânia, muito menos da democracia, porque a Otan é um canhão dos EUA. Tampouco é relevante, a priori, quem toma a primeira iniciativa em uma guerra. Mas o arsenal nuclear da Rússia ainda é mais do que suficiente para protegê-la de qualquer país do mundo.

  1. Nem russofilia, nem russofobia.

A Rússia não está somente se defendendo da Otan, mas estendendo a sua área de influência. Não precisamos ser “campistas” e escolher um dos dois campos em luta. A URSS não existe há mais de trinta anos. A sua defesa contra o imperialismo foi durante setenta anos uma questão de princípio para marxistas. Mas a Rússia de Putin não é somente um país em que capitalismo foi restaurado com aberrações selvagens e monstruosas e um regime bonapartista ultra-autoritário. Muito pior e mais importante, é uma potência imperialista, ainda que em lugar subalterno. Tanto a russofilia como a russofobia são nocivos para esquerda.

  1. Equilíbrio multipolar é uma utopia

Não é verdade que, quando uma guerra se precipita, é necessário escolher qual é o “lado do mal menor”. Estar contra a invasão não é o mesmo que apoiar a estratégia da Otan. A guerra contra a Ucrânia não vai abrir caminho para um mundo menos injusto ou perigoso. A luta do movimento socialista não deve ser de apoio a um Império contra outro, mas contra o capitalismo. Defender um imperialismo subalterno não é “realismo” político. Nossa estratégia não pode ser o “equilíbrio multipolar” entre estados imperialistas. Trata-se de uma utopia reacionária. Enquanto existir uma ordem imperialista haverá perigo, ainda que latente, de uma Terceira guerra mundial. O projeto de todo imperialismo é se tornar dominante, econômica, política, militar e ideologicamente. O programa marxista é o internacionalismo. Hoje esta bandeira se concretiza na defesa do imediato cessar fogo, pelo fim da guerra, contra a presença das tropas da Otan no Leste Europeu e das tropas russas na Ucrânia. Ao mesmo tempo, não deve ser indiferente para quem luta pelo socialismo no Brasil que, no contexto da ordem mundial, nosso país está na área de influência do imperialismo norte-americano. A burguesia brasileira mantém uma aliança histórica estreita com Washington. A denúncia implacável da Otan se impõe. A tradição que devemos defender é a bandeira sem manchas do marxismo que foi defendida pelos que se reuniram em Zimmerwald, quando da primeira Guerra Mundial: Rosa Luxemburgo, Lênin e Trotsky.

  1. Uma guerra de conquista

Nos últimos trinta anos a dinâmica de enfraquecimento relativo da hegemonia norte-americana no sistema internacional de Estados, ainda que lenta, não impediu os EUA de avançarem o dispositivo militar da Otan sobre o leste europeu, e a Ucrânia se transformou em uma semicolônia dos EUA. A permanência de uma ordem mundial liderada por Washington é uma ameaça estrutural à paz mundial. Os EUA são o principal Estado comprometido com a defesa do capitalismo mundial. Já invadiram e voltarão a invadir quando seus interesses estiverem em perigo. Mas a agressão contra a Ucrânia não é uma ação preventiva contra o perigo de uma invasão iminente. A manipulação do sentimento patriótico do povo russo, recordando a invasão nazista de 1941, é uma manobra política, ou “propaganda”. A Rússia é, também, uma potência imperialista. Seja qual for a interpretação de imperialismo, na tradição marxista, a Rússia não somente uma país independente. Ainda que, economicamente, muito mais débil, um Estado com milhares de armas atômicas não é um país dependente. Trata-se de uma disputa da Rússia contra a potência imperialista dominante e seus aliados da Otan pelo controle de recursos, mercados, força de trabalho e domínio de zonas de influência. Trata-se de uma guerra de conquista e pilhagem.

  1. Putin e sua vitória de Pirro.

A tática de guerra relâmpago confirmou a superioridade militar russa, e Kiev está na iminência de cair. Mas a derrubada do governo ucraniano não será senão o epílogo do primeiro capítulo da guerra, portanto uma “vitória de Pirro”, porque não é descartável que haja resistência de guerrilhas e boicote civil em massa. Há vitórias táticas que são a antessala de derrotas estratégicas. Putin desconsidera que o projeto de uma ocupação da Ucrânia é, no mínimo, perigosa. Vitória militar em blitzkrieg não equivale a vitória política. A abstenção chinesa, seguida pela Índia, na votação da resolução contra a invasão no conselho de segurança da ONU é um sinal de que não haverá alinhamento incondicional com Moscou, se a operação se revelar insustentável. Não é sequer impensável que a ameaça de sua própria derrubada venha a estar colocada em Moscou, se a oligarquia de bilionários concluir que Putin foi longe demais.

  1. Não é uma guerra defensiva.

Não é uma guerra “justa”, mas uma guerra de conquista. A Ucrânia é vítima de uma disputa inter-imperialista pela divisão de “áreas de influência”. Putin fez o cálculo de que o enfraquecimento dos EUA permitia a recuperação de domínio sobre sua zona geoestratégica. É verdade que o governo ucraniano, liderado por Volodymir Zelensky sinalizou, antes de dezembro do ano passado, a aspiração de se integrar à OTAN. Seria uma provocação inaceitável porque tornaria possível a localização de mísseis nucleares na vizinhança de Moscou, mas não mais perigosos, qualitativamente, do que nos países bálticos, ou na Polônia onde a Otan já está presente. O dispositivo de armas nucleares da Rússia, equivalente ao dos EUA, não perderia, ou sequer diminuiria sua capacidade dissuasora.

  1. Uma guerra imperialista.

A invasão foi uma agressão de natureza imperialista. A esquerda socialista não pode apoiar a guerra contra uma nação oprimida, mesmo quando o seu governo aceita a humilhação de ser reduzida à condição de protetorado dos EUA. A Rússia não está libertando a Ucrânia da opressão norte-americana. A Rússia não é um país da periferia que fez uma manobra militar tática ofensiva ao serviço de uma estratégia defensiva. Não se antecipou a uma agressão imperialista da Otan. Não havia perigo “real e iminente” de instalação de mísseis da Otan, uma coalizão dirigidas pelos EUA. Não se trata de uma guerra pela derrubada de um governo “nazista”. A Rússia mantém excelentes relações com o governo da Hungria. Não é uma guerra em defesa da população de língua russa do Donbass. Não foi somente criminosa contra a Ucrânia, mas um erro de cálculo pela subestimação dos EUA, do ponto de vista dos interesses da Rússia. Criminosa, porque uma nação que aceita que seu Estado abuse da superioridade de seu poder para oprimir outro povo não pode ser livre. Um erro de cálculo porque existiam outras vias. O governo ucraniano vinha até recuando, ainda que de forma parcial e “exploratória”, diante do ultimato de Putin. França e Alemanha admitiram, também, a disposição de pressionar Biden para encontrar uma solução negociada.

  1. A Otan é um canhão dos EUA

Mas a verdade é que Washington tinha interesse em encostar a Rússia contra a parede, e instigou uma aventura precipitada de Putin. A invasão facilitou uma imediata coesão das potências europeias com os EUA. A Alemanha admitiu, finalmente, desistir do abastecimento de gás pelo novo gasoduto Nord Stream 2, milhares de tropas foram deslocadas para os países limítrofes à Ucrânia, a Força de Ação Rápida, até 40 mil hombres foi colocada em estado de prontidão, as sanções econômicas aumentaram (ainda que, alegremente, a Itália tenha conseguido poupar a proibição da venda de bens de luxo, e a Bélgica e Holanda tenham tentado proteger o comércio de diamantes lapidados, muito consumidos pela burguesia russa), e até a exclusão do sistema de pagamentos Swift, como uma arma financeira de asfixia. Agora até a Suécia e Finlândia ameaçam entrar na Otan. A possibilidade de um estatuto de neutralidade da Ucrânia semelhante à da Austria ficou muito mais distante.

  1. A Ucrânia tem o direito de existir

A invasão da Ucrânia é uma injustificável aventura militar de Putin. Foi precedida por um discurso imperialista, em que denunciou Lenin pela defesa do direito da Ucrânia à autodeterminação como nação e, irresponsavelmente, negou a legitimidade de sua existência como Estado independente. A romantização nacionalista de uma tradição comum “indivisível” e ininterrupta, desde imemoriais tempos medievais, é uma operação ideológica sinistra porque significa negar o direito de existência de uma Ucrânia independente. Os ucranianos não são russos. Há muitas nações eslavas que não são russas. Não há desenlace militar que não seja apocalíptico. Até a chantagem de armas nucleares está, perigosamente, colocada, em função da escalada militar da Otan financiando e transferindo armas para o governo de Kiev. A ofensiva norte-americana através da Otan é, também, uma provocação, e deve ser, implacável e ferozmente, denunciada como uma manobra de cerco estratégico dos EUA para manter a supremacia mundial. A Otan é um monstro contrarrevolucionário. A Ucrânia não deve ter como destino ser um protetorado dos EUA, nem uma semicolônia russa.