Eu desejo que você ganhe dinheiro
Pois é preciso viver também
E que você diga a ele, pelo menos uma vez
Quem é mesmo o dono de quem
Frejat – Amor pra recomeçar
No final de novembro estava procurando assunto para o terrível htpc (hora de trabalho pedagógico), uma reunião quinzenal e enfadonha de todos os professores da escola, de final de ano tentando evitar que essa reunião se transformasse em um verdadeiro “minuto de silêncio” ou em uma grande “marcha fúnebre” pelo silêncio e apatia das professoras.
Estava andando pelo centro da cidade de SP voltando para a minha casa pensando em algum assunto que pudesse despertar o interesse das professoras para uma reunião tão enfadonha como essa tal de htpc e meu esforço foi premiado; em um lance de sorte, passando por uma banca de jornal na esquina das avenidas Ipiranga e São João, encontrei um exemplar antigo da revista Veja com uma reportagem de capa muito interessante. [1]
A matéria de capa fala sobre o avanço da estupidez, que a inteligência humana está passando por um processo de regressão, ou seja, a geração atual é menos inteligente que a geração passada – um fato único na nossa história desde que passamos a utilizar testes de QI – remontado a um livro de um importante neurocientista francês. [2]
O curioso – que não deve ser encarado como mera coincidência – é que o livro citado acima coincide com outro livro escrito por outro neurocientista mais conhecido entre nós – Miguel Nicolelis – escrito com outras finalidades, mas que concorda com a tese central do livro de seu confrade francês – o papel nocivo do uso desenfreado e descontrolado da tecnologia na sociedade e no ensino. [3]
Os testes de QI, mesmo sendo questionáveis por exigirem alfabetização e informações que grande parte da população pobre não possui por não ter acesso a bens culturais, são um indicador importante do avanço educacional de uma geração para outra.
E, pela primeira vez desde o início da utilização desse mecanismo – teste de QI – que indiretamente aufere o nível educacional da população ou seu nível de escolarização, a inteligência média da população – comparando uma geração com sua antecedente – medida por esses testes diminuiu, mesmo com todo o avanço tecnológico e da escola obrigatória.
A utilização em larga escala da tecnologia no mundo educacional – incluindo a escola pública – e, apesar do avanço da escola obrigatória, está tornando os meninos e meninas que frequentam a escola menos inteligentes que seus pais – segundo os questionáveis testes de QI.
A utilização em larga escala da tecnologia no mundo educacional – incluindo a escola pública – e, apesar do avanço da escola obrigatória, está tornando os meninos e meninas que frequentam a escola menos inteligentes que seus pais – segundo os questionáveis testes de QI.
O cérebro humano com seus 86 bilhões de neurônios é único na natureza – corresponde a apenas 2% de nossa massa corporal e consome 20% da energia/calorias que ingerimos – e é uma estrutura marcada pela flexibilidade e permeabilidade, que se modifica de forma anatômica e funcional.
De acordo com as experiências vivenciadas pelo “chefe” de nosso sistema nervoso central ele se modifica em sua anatomia e funcionalidade no tempo e no espaço – desenvolvendo ou obliterando funções e, nas palavras de Jean Piaget, esquemas mentais.
Tudo isso através da mobilização de redes neurais, não de grupos de neurônios com funções especializadas em centros específicos – diferentemente do que se acreditava décadas atrás.
Nosso cérebro atinge seu tamanho e volume máximos somente depois de duas décadas de vida de nosso glorioso homo sapiens, conservando sua maleabilidade até trinta ou quarenta anos; ou seja, sua capacidade de desenvolver novos esquemas mentais e formas de raciocínio lógico.
É o período ou fase da nossa vida em que podemos nos tornar mais inteligentes, depois disso só nos resta o enriquecimento cultural, que muitos equivocadamente confundem com inteligência.
O pior, para velhos como eu, é que geralmente nível cultural e inteligência costumam ser grandezas inversamente proporcionais: quanto mais culta uma pessoa, menor sua inteligência!
O homem tornou-se um ser inteligente devido a três fatores: o tamanho do cérebro, a linguagem articulada (falada e escrita) e a interação com outros homens em sociedade/comunidades de conhecimento e graças a própria linguagem – escrita e falada – documentando conhecimentos e passando-os adiante através da “fofoca”.
Falar mal da vida alheia também é cultura! [3]
O conhecimento é, antes de tudo, uma construção coletiva e uma relação social – ninguém aprende sozinho.
A grande questão é que o uso solitário da tecnologia – internet, gamers, algoritmos e outras coisas – como geralmente ocorre afeta a atenção, a linguagem, a memória e a concentração que são elementos fundamentais da cognição humana – constitutivos dos esquemas mentais responsáveis pelo funcionamento de nosso cérebro e de nossa inteligência, bem como da formação de nossos métodos de trabalho ou raciocínio – segundo dois neurocientistas que escreveram livros com finalidades distintas e que, salvo melhor juízo, não costumam interagir de forma regular.
Esse fato por si só nos obriga a nos interrogar sobre a qualidade da escola oferecida aos nossos jovens e crianças e também sobre o papel da tecnologia; cada vez mais disseminada no interior dos sistemas educacionais tanto públicos como privados.
Não por acaso, estamos em uma época onde se faz um verdadeiro fetiche da tecnologia, do seu uso indiscriminado e mais ainda de uma verdadeira apologia à tecnologia, com um discurso oficial dizendo que o homem tecnológico, a juventude conectada da geração internet, da geração smartphone; onde essa juventude tende a ser, supostamente, mais inteligente que os seus antepassados – nós jurássicos pré informática e pré internet que nos atrapalhamos com a tecnologia – principalmente os professores e professoras desses meninos.
Durante a pandemia governos aproveitaram a oportunidade para “passar a boiada” impondo a massificação de recursos tecnológicos na educação básica, o uso do EAD, obrigando os professores a se reinventarem utilizando recursos que não possuem
O uso indiscriminado da tecnologia está estupidificando os hominídeos ao assumir funções no mundo do ensino típicas do cérebro humano; algoritmos estão substituindo o raciocínio lógico diante da apologia da inteligência artificial, esquecendo que quem criou essa forma suposta de inteligência foi a única inteligência que realmente existe na natureza – a inteligência orgânica, a inteligência orgânica de um hominídeo.
Durante a pandemia governos aproveitaram a oportunidade para “passar a boiada” impondo a massificação de recursos tecnológicos na educação básica, o uso do EAD, obrigando os professores a se reinventarem utilizando recursos que não possuem, recursos que devido à má qualidade dos serviços de internet desse país simplesmente não funcionam a contento.
Agora, ainda com a pandemia presente, com as escolas voltando a funcionar em regime presencial, continuam fazendo apologia da tecnologia – a prefeitura da cidade onde trabalho lançou um pacote tecnológico, que deve ter custado uma pequena fortuna, onde na alfabetização das crianças se estimula a utilização de programas e algoritmos para “melhorar o desempenho escolar” dos meninos e meninas, supostamente aperfeiçoando sua capacidade de raciocínio lógico.
Mesmo admitindo as boas intenções de quem teve essa ideia, ou mesmo do desenvolvedor do programa – no caso do desenvolvedor do programa é pouco provável que haja boas intenções pois trata-se de uma empresa multinacional que obviamente trabalha com o único objetivo de obter lucro – a questão é que justamente no momento em que a criança começa a desenvolver as suas operações formais segundo Piaget, quando começa a estruturar os seus esquemas mentais, o trabalho do grande criador de tudo nas palavras do de Miguel Nicolelis; ou seja, o trabalho do cérebro humano; passa a ser desempenhado por uma máquina criada pelo próprio cérebro humano.
Uma máquina que trabalha com operações pré estabelecidas, engessando o raciocínio da criança – principalmente a criatividade e a capacidade de lidar com o inusitado, aquilo que os pesquisadores chamam pensar fora da caixinha.
Pior, o uso indiscriminado de tecnologia, o acesso a jogos e a informações obtidas na internet – vídeos, mais jogos, textos, etc – comprometem esquemas mentais fundamentais para o desenvolvimento da inteligência no ser humano – a atenção, a fala, a memória, a linguagem e a capacidade de interação com os outros – e por isso os internautas de carteirinha são, entre outras coisas, pessoas solitárias e muitas vezes antissociais.
Também o excesso de exposição a recursos tecnológicos, que isola um sujeito dos outros seres humanos, desenvolve características como a depressão, ansiedade, além muitas vezes surtos de irritabilidade para com as outras pessoas e a dificuldade de estabelecer relações sociais e afetivas com os demais hominídeos do mundo externo ao sujeito conectado.
O uso precoce da tecnologia, seu uso de maneira indiscriminada, sem regras, sem controle dos pais ou das escolas, coloca a criança em contato com um mundo completamente novo e tentador, faz com que essa criança não se relacione de forma saudável com o mundo real.
A máquina, ou os programas que substituem cada vez mais o mundo real, passa a substituir o cérebro humano, com programas, algoritmos que induzem o jovem – a criança – a operar com formas pré estabelecidas de raciocínio e esquemas mentais pré estabelecidos.
Afinal uma máquina só faz aquilo para o qual ela está previamente programada e a máquina não possui criatividade, a máquina não opera com o inusitado – somente o cérebro humano é capaz de exercer a criatividade, somente o cérebro humano é capaz de trabalhar com o inusitado, trabalhar com o diferente e dotar o sujeito da capacidade de pensar fora de padrões pré estabelecidos.
Por isso, a tecnologia usada de forma indiscriminada com programas e algoritmos que substituem muitas vezes capacidades que são únicas e características do cérebro humano – do nosso do chefe do sistema nervoso central – além de afetar nossa atenção também afeta a nossa criatividade.
Pior, reduz a capacidade de raciocínio lógico do ser humano, consequentemente tornando a geração recente menos inteligente que a geração passada – aqueles “jurássicos”, como os professores, que não sabem se mover nesse mundo digital.
Antes que alguém me interprete mal, não estou defendendo a abolição da tecnologia; o que se está discutindo nesse texto é saber usar a tecnologia de forma racional, de forma complementar ao cérebro humano, encarando a tecnologia como de fato ela é, um recurso muito importante que pode nos ajudar a viver melhor, mas como uma criação humana que jamais substituirá uma forma orgânica de inteligência – que é a única forma de inteligência que a natureza conhece, o cérebro humano.
Toda a tralha tecnológica que existe em nossa sociedade é criação da única forma de inteligência que a natureza conhece, a inteligência do sistema nervoso central do ser humano comandada pelo cérebro.
Fazer da tecnologia um fim em si mesmo, consiste em um duplo erro.
Primeiro, transformá-la em um fetiche – um objeto de desejo incontrolado – ao ponto de usá-la como uma forma de substituir a inteligência humana – isso é um atentado contra as gerações futuras, principalmente quando se tenta usar de forma indiscriminada tecnologias digitais no processo de alfabetização das crianças.
O segundo erro tem relação com a utilização de da tecnologia de forma antissocial, onde o capital usa equipamentos tecnológicos, recursos tecnológicos para substituir o trabalho humano aumentando sobremaneira o chamado desemprego estrutural – criando uma sociedade marcada por um avanço tecnológico inusitado e pelo desemprego crescente e crônico, acentuando a miséria e a desigualdade social.
O fetichismo da tecnologia, que leva a seu uso de maneira incontrolável, responde a interesses bem específicos do grande capital que usa dessa disseminação sem precedentes de recursos tecnológicos para aumentar os níveis de exploração e precarização do trabalho humano, aumentando seus próprios lucros privados.
Esse fetichismo, nas palavras de Miguel Nicolelis, é acompanhado por outros dois fetiches ou religiões; a igreja do mercado e o deus dinheiro.
Portanto, só podemos entender ou explicar esse fetichismo pela tecnologia como parte do fetiche do mercado, de sua “mão invisível” que tudo resolveria, que justificou, e ainda justifica, toda a política privatizante de serviços públicos reinante no planeta e, é óbvio, o fetiche do dinheiro que expressa o desejo de lucro desenfreado dos grandes grupos capitalistas.
Fabricando e vendendo tecnologia de forma desenfreada para obter cada vez mais os lucros na forma de dinheiro, condenando a grande massa da população a ignorância e ao emburrecimento mental por um lado e por outro desempregando, precarizando e condenando à miséria a maioria dos membros da classe que vive do seu próprio trabalho, o capital produz adoecimento e sofrimento mental generalizado.
Vivemos em um mundo onde as criações do homem – como a tecnologia – se voltam contra seu criador, transformando-se em um objeto de adoração e desejo, escravizando o próprio criador – afinal, quem é mesmo o dono de quem?
O homem deve recuperar o controle sobre suas próprias criações; utilizando a tecnologia a serviço do bem estar da maioria e na escola utilizar os recursos digitais a favor do aprendizado dos meninos e meninas que mais precisam do ensino público.
[1] NEVES, Ernesto e SAAD, Caio. Mentes não tão brilhantes, in Revista Veja, edição 2758;
[2] DESMURGET, Michel. A fábrica de cretinos digitais, SP, Vestígio, 2021;
[3] NICOLELIS, Miguel. O verdadeiro criador de tudo, SP, Crítica, 2020.
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