Pular para o conteúdo
BRASIL

Não há como enfrentar a desigualdade sem uma reforma tributária que taxe o andar de cima

É urgente uma reforma que incida majoritariamente sobre renda e propriedade, e de maneira que os mais ricos paguem mais.

Flávio Miranda*, do Rio de Janeiro, RJ

Alguns dos maiores bilionários brasileiros, segundo a Revista Forbes. Da esquerda para a direita vemos Jorge Paulo Lemann, Joseph Safra, Joesley Batista e Luciano Hang

A plataforma política para a esquerda em 2022 deve estar à altura dos enormes desafios dos nossos dias. Nesse sentido, a proposta encaminhada nesta quarta-feira, 16, pelo PSOL, na forma de 12 eixos programáticos, representa um esforço absolutamente necessário. A necessidade de se derrotar Bolsonaro e o bolsonarismo está na ordem do dia. Quanto a isso não há discussão. Para tanto, é importante que o programa seja vitorioso não apenas nas urnas, como impulsione, a partir das ruas, os novos ventos de mudanças tão profundas, quanto inadiáveis. 

Do ponto de vista econômico, mas não apenas, passamos por um dos períodos mais difíceis da história deste país. A fome, a miséria, a exclusão, o esgotamento com o trabalho extenuante e, ainda assim, mal remunerado, o desemprego, os serviços públicos sucateados, são marcas de um projeto político da classe dominante em marcha já há alguns anos (ao invés de resultados de um evento aparentemente fortuito, como uma pandemia). Sabemos que a “questão social” no Brasil sempre foi caso de polícia, mas é importante reconhecer as condições dos ataques mais recentes para avaliarmos a estratégia política mais adequada para a esquerda e para a classe trabalhadora. 

A economia mundial passa por uma crise longa e cujo fim ainda parece bastante distante. Desde 2008 não se vislumbra qualquer retomada sustentada. Pelo contrário, os impasses se acumulam. O Brasil não poderia ficar imune a tal crise. Para além disso, a forma como a crise do capitalismo se abateu sobre o Brasil está relacionada com a forma que o capitalismo se desenvolveu por aqui: um paraíso para os que recebem lucros e dividendos, extraídos de uma classe trabalhadora superexplorada; playground de especuladores financeiros, cujas contas engordam na proporção direta em que definham os recursos para a provisão de serviços públicos. 

Uma crise tão longa quanto essa tinha de se desenvolver em diferentes fases, assim como dar, em certos momentos, sobretudo para os mais afoitos e afeitos a ilusões, a esperança de que o pior já teria passado. Isso aconteceu, por exemplo, em 2010, quando o crescimento chinês impulsionou a produção interna no Brasil. No entanto, daí em diante o crescimento da China se deu a taxas sistematicamente decrescentes e as condições para acumulação de capital como um todo se deterioraram com a crise das dívidas dos países mais frágeis da União Europeia e a mudança na estratégia de resgate do sistema financeiro promovida pelo banco central estadunidense. Assim, desde 2013 a economia brasileira se encontra em maus lençóis.

É seguro afirmar que as condições econômicas impulsionaram o projeto golpista contra a presidência de Dilma Rousseff, assim como a crise política aberta por esse processo deve ter contribuído para que a economia piorasse ainda mais. Para ilustrar, em 2015 o PIB brasileiro encolheu à taxa de 3,55%, uma queda muito mais pronunciada do que a observada para o conjunto dos países da América Latina e do Caribe no mesmo ano (0,36%). O que é significativo para a nossa discussão é que desde então se intensificaram os ataques da classe dominante a direitos da classe trabalhadora e serviços públicos.

Tal estratégia da classe dominante não representou uma guinada, mas o necessário aprofundamento do projeto neoliberal em tempos de crise. O capital precisava (ainda precisa) se salvar, o que só se poderia dar às custas das trabalhadoras e trabalhadores. Impulsionar lucros com rebaixamento dos salários e piora nas condições de trabalho (como a Reforma Trabalhista e a lei das terceirizações pretendiam), encontrar novos terrenos para acumulação (como os proporcionados pela privatização da previdência e de serviços e empresas públicas), garantir o compromisso do Estado brasileiro com o pagamento da dívida pública, acima de qualquer outro objetivo, ou seja, acima da vida das pessoas (como a PEC do teto dos gastos buscou garantir). Tudo isso com base em uma estrutura tributária que taxa muito pouco o capital e os super-ricos, penalizando as camadas mais pobres da população, sobretaxadas no consumo.

Em 2021 os 10% mais ricos do Brasil detinham 59% da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres ficam com algo em torno de 10%.  

Em suma, o capital passa a conta da crise para a classe trabalhadora, sobretudo para suas parcelas mais empobrecidas. Como resultado, de acordo com dados do Relatório Mundial da Desigualdade, em 2021 os 10% mais ricos do Brasil detinham 59% da renda nacional, enquanto os 50% mais pobres ficam com algo em torno de 10%.  Em suma, as medidas antipopulares listadas no parágrafo anterior, somadas a outras que não foram mencionadas, fazem parte de um projeto com linhas claras e encontram-se intimamente relacionadas (por exemplo, o compromisso com a dívida pública e o sucateamento dos serviços públicos estão intimamente relacionados ao projeto privatista; assim como a reforma nas aposentadorias implica intensificação na exploração da classe trabalhadora). Mais do que isso, tais medidas permitem a sobrevivência do capital sem indicar uma saída para a crise. O que significa que o capital segue se expandindo, as condições gerais seguem piorando e, portanto, sua voracidade exploratória e destrutiva só faz crescer. Para usar uma imagem conhecida, o capital é como um vampiro que quanto mais sangue suga, mais precisa sugar.

É preciso enfrentar decididamente este estado de coisas! Não existe possibilidade da construção de condições que melhorem, de maneira duradoura, a vida das pessoas sem que o ímpeto destrutivo do capital (agudizado pela crise) seja freado. Nesse sentido, devem ser revertidas de todas as medidas antipopulares, todas as reformas econômicas contrárias aos interesses da classe trabalhadora, implementadas desde o golpe consumado em 2016. A longa crise por que passa o capitalismo foi causada pelo capital, não por um vírus, muito menos por aqueles que têm sofrido suas piores consequências. Que os capitalistas paguem pela crise! É urgente uma reforma tributária que incida majoritariamente sobre renda e propriedade, e de maneira a que os mais ricos paguem mais. A canalização dessas receitas não para a dívida pública (isto é, para os especuladores), mas para programas sociais e serviços públicos universais, é medida necessária para que nos movamos no sentido de uma distribuição da renda menos perversa. 

*Flávio Miranda é professor do Instituto de Economia da UFRJ.