Originalmente publicado em Viento Sur em 11 de fevereiro de 2022.
Em outubro, quando começa o Mês da História Negra [1], o colunista do The Guardian, Gary Younge, escreve um artigo interessante [2], em que formula uma pergunta simples: “Por que as pessoas brancas e negras não podem acessar uma história compartilhada que seja correta, honesta, antirracista e inclusiva?”. Neste ano, Younge publicou que “a noção de raça carece de toda base científica ou biológica. É uma construção para explicar a terrível realidade que dá base ao racismo”.
Enquanto esta observação é correta, parte da resposta à sua pergunta inicial está no pouco (re)conhecimento do fato de que antirracistas negros e asiáticos atuaram, [inclusive] ao lado de companheiros brancos, em movimentos de esquerda e sindicais para combater a sua terrível realidade ao longo da história Britânica.
Quando lemos E. Thompson e Eric Hobsbawn, ou mesmo quando assistimos O Espírito de ‘45 de Ken Loach [3], apenas se menciona a entrada de negros e asiáticos no movimento operário e na luta por justiça social e econômica na Grã-Bretanha.
Agora, um livro novo de Satnam Virdee [4] aborda a questão mediante uma análise do período que vai desde os primeiros movimentos cartistas até a década de 1980. É uma análise densa, que não só explora a história do racismo na Inglaterra, como também a história de solidariedade e antirracismo implicada nos forasteiros racializados na nação britânica. O grupo de monitoria [do viento sur] reuniu-se recentemente com Satnam Virdee para falar de seu livro Racism, Class and the Racialized Outsider.
Jagdish Patel: Por que você escreveu este livro?
Satnam Virdee: Eu escrevi porque sentia que boa parte da história e da sociologia da classe trabalhadora britânica havia se mostrado incapaz de integrar as experiências dos setores racializados no interior da classe operária: católicos irlandeses, judeus, a imigração asiática e caribenha. Era quase como se a hipótese de trabalho deste setor acadêmico e da historiografia socialista partisse da noção de que a classe trabalhadora era branca em sua totalidade. Eu tinha clareza de que, como neto de um carpinteiro indiano, isto não refletia as complexidades de raça e classe da minha própria família na Grã-Bretanha, nem as dos caribenhos inseridos no trabalho britânico. Assim nasceu meu desejo de recuperar essa história e foi ela que me motivou a escrever o livro.
O livro esboça os contornos da luta por justiça social, incluída aí a igualdade racial, ao longo de dois séculos. Ou seja, não tratamos apenas do período em que a história negra e asiática costuma ser circunscrita, ou seja, a partir de 1948 e da chegada do Empire Windrush em Tilbury [5]. Creio que isso ajuda a demonstrar como as minorias racializadas estiveram presentes ao longo da história da Grã-Bretanha moderna.
Os conservadores geralmente não reconhecem, mas talvez seja mais decepcionante o fato de que o movimento operário e a esquerda socialista não tenham contribuído muito mais para visibilizar a diversidade multiétnica. Este tipo de cegueira racial impediu que o movimento operário organizado reconhecesse a função formativa que desempenharam as minorias racializadas no útero do próprio movimento operário, não só combatendo o racismo, mas também ampliando os horizontes políticos de todo o povo trabalhador que lutava por justiça social e contra a desigualdade.
Nesse sentido, a luta antirracista não era uma luta particularista e sim uma luta que contribuiu para reforçar o combate que buscava libertar toda a classe operária na luta por democratização. Eu queria mostrar que sim, se contempla a história britânica através dos olhos dos trabalhadores e das trabalhadoras negras, asiáticas, judias e católicas irlandesas e, desta forma, se pode ter uma visão muito diferente do funcionamento da sociedade britânica. Não tem sentido falarmos da história negra como uma questão marginal, que ensinamos nas escolas de história dos direitos humanos e civis, mas situamos a raça como uma variável que aparece somente no final desta história.
É importante sublinhar que tratei de escrever um livro que apresenta essa longa história em um formato acessível. Recordo que E. P. Thompson – o grande historiador da classe operária inglesa – me animou, em relação ao projeto alternativo, a “escrever democraticamente, não apenas para a pequena comunidade de sociólogos acadêmicos, e sim para o conjunto mais amplo do público informado que se interesse pela minha obra”. É o que já fizeram escritores como Ambalavaner Sivanandan [6] e junto com Stuart Hall [7], foram para mim importantes inspirações intelectuais e políticas.
Jagdish Patel: Qual a importância do período entre 1850 e 1950 para o movimento antirracista?
Satnam Virdee: O racismo na classe operária não começou em 1948; essa história começa muito antes. Desde o momento em que as elites inglesas aprenderam a governar de uma maneira mais consensuada e mediada na era vitoriana até a consolidação bipartidária do acordo sobre o Estado de Bem Estar nas décadas de 1040 e 1950, com uma série de reformas sociais e políticas, como a progressiva concessão do direito ao voto (aos homens da classe operária) e dos direitos sindicais, acompanhada da garantia de longos períodos de proteção econômica com a ajuda de uma política colonial, o que facilitou a incorporação de componentes cada vez mais amplos da classe operária como membros ativos do Estado Imperial.
Não deixa de ser significativo que o racismo, em todas as suas diversas formas, acompanhou este processo de integração da classe operária. Tão cedo como nas décadas de 1850 e 1860, a inclusão da classe operária respeitável de trabalhadores qualificados trouxe consigo também a consolidação do racismo frente à imigração irlandesa católica. A associação anterior da cidadania inglesa com o protestantismo esteve sobredeterminada neste período por uma noção cada vez mais influente de si mesma como uma nação da raça anglosaxã. O povo irlandês católico, durante muito tempo excluído da nação devido a sua religiosidade, se viu duplamente desfavorecida como católicos e como etnia céltica.
Mas não foi sempre assim. Quando as trabalhadoras e os trabalhadores ingleses e escoceses foram desterritorializados do meio rural para ir trabalhar na indústria, nas chamadas fábricas escuras e satânicas, entraram em conflito com as elites governantes. Naquele momento, a classe operária inglesa multiétnica era uma força rebelde comprometida com uma mudança social transformadora. Não é menos significativo que aquele também foi um período de solidariedade de classe multiétnica em que partes da classe operária inglesa suprimiram coletivamente expressões racistas e rechaçavam de imediato quando o racismo se manifestava. Isso foi muito influenciado por homens e mulheres que pertenciam a grupos minoritários, que descrevo como forasteiros racializados.
Citarei o exemplo de Robert Wedderburn – nascido na Jamaica em 1762, filho de uma mulher africana escravizada e de um médico escocês, proprietário de uma plantação de cana de açúcar. Wedderburn contribuiu para dar visibilidade à relação entre o sofrimento e as lutas dos povos africanos escravizados no exterior e nas lutas operárias no próprio país. Em 1813, Wedderburn se uniu, aparentemente, aos Spencean Philanthropists, um grupo de esquerda inspirado pelos escritos de Thomas Spence. Pouco depois, publicou seis edições de uma revista intitulada The Axe Laid To The Root [o machado fincado na raiz]. Por meio desta notável revista e de inúmeros comícios, relacionou as pressões do africano escravizado com as dificuldades a que se enfrentavam os trabalhadores ingleses pobres, dado que “a maneira de obter justiça é tão cara que é impossível obtê-la”.
Este intento de relacionar as lutas contra a escravidão com a justiça social para o povo pobre trabalhador encontrou sua expressão política em seus chamados a uma comunidade livre e igualitária. Na opinião de Wedderburn, Spence sabia que a terra havia sido dado aos filhos e filhas dos seres humanos sem distinção de cor ou caráter; e que toda pessoa que declara a propriedade privada de uma parcela de terreno é um criminoso; e ainda que possa vendê-la ou deixar como herança a seus descendentes, não faz mais que transferir o que havia antes obtido pela força ou pela fraude.
No entanto, com a derrota do cartismo e a consolidação do imperialismo, alguns setores operários começaram a dar as costas à noção de classe e solidariedade. Se dedicaram mais a repensar a si próprios como parte integrante da nação, em oposição a quem, a partir de então, passaram a qualificar de negros ou católicos irlandeses e que, portanto, não consideravam parte da mesma nação britânica. Isto nos ensina que devemos deixar de conceber a classe operária inglesa como uma entidade única; estava formada por povos de muitas etnias, homens e mulheres, mas os postos de trabalho e as qualificações a estratificaram. Tanto o racismo, quanto o antirracismo, estiveram presentes na formação da classe operária inglesa.
E a respeito disso, eu identifiquei também que os forasteiros racializados – ou seja, pessoas de ascendência irlandesa católica, judia, asiática e caribenha – desempenharam em distintos momentos da história um papel formativo no realinhamento de diferentes estratos da classe trabalhadora. Ou seja, sua presença foi crucial em distintos períodos, como nas décadas de 1830-1840, 1880-1890 e 1970-1980, quando – para utilizar uma expressão de Thompson – “aconteceu a classe” e negros e brancos estiveram juntos na ação coletiva contra o racismo e por justiça social e econômica.
Jagdish Patel: Pode falar sobre o racismo no pós guerra que sofreram trabalhadoras e trabalhadores negros e asiáticos?
Satnam Virdee: A partir de um ponto de vista classista que não diferencia a cor da pele, as décadas de 1940 e 1950 foram um período de avanço sem precedentes da classe operária. Não obstante, quando se investiga o mesmo período a partir dos olhos dos imigrantes da Índia ou do Caribe, não vemos o mesmo espírito de solidariedade, coletivismo e compromisso com a justiça social, e sim um racismo sistêmico em amplos setores da sociedade britânica; um racismo que contribuiu para posicionar a maioria desses e dessas migrantes e seus descendentes que nasceram em terras britânicas na parte mais baixa da estrutura de classes durante duas gerações.
Além do racismo por parte do Estado e dos partidos políticos, o povo migrante também sofreu práticas discriminatórias por parte dos sindicatos, pelo fato de não serem da raça branca e, portanto, não poderem se considerar britânicos. As barreiras racistas eram comuns e quando se deixava de aplicar essas práticas, trabalhadores brancos – entre eles, em particular, os condutores de ônibus do setor de transporte das terras médias ocidentais – empreenderam ações coletivas para estabelecer as barreiras novamente.
Ainda que a racialização do nacionalismo britânico não fosse um fenômeno novo, o que marcou este período do pós-guerra foi sobretudo a amplitude com a qual o Estado, o mundo empresarial e a classe trabalhadora chegaram a compartilhar de ideias nacionalistas britânicos comuns, baseados na lealdade da raça branca. Racismo e nacionalismo marcaram profundamente a sociedade inglesa, e está incluída aí a classe operária. Seus efeitos podem ser observados nas esferas políticas e culturais, assim como na economia. Desde a criação e consolidação de uma divisão do trabalho estratificada até a regulação informal de relações íntimas na comunidade – o racismo abarcou tudo.
E com o tempo, esse racismo se institucionalizou. Isso significou que nem sempre era necessário uma regulação expressa porque as estruturas e instituições da sociedade já refletiam essa noção distorcida do mundo. Passou a ser, como diria Bourdieu, um componente integral do habitus inglês, o conjunto de regras resilientes e inconsistentes adquiridas com o tempo por grupos sociais. A classe operária ressignificou sua imaginação de si própria como uma classe racializada, de maneira que a raça, na expressão de Hall, passou a ser “a modalidade em que vivia a classe, o meio através do qual se experimentavam as relações de classe, a forma em que esta se apropriou e pela qual se lutava”.
Jagdish Patel: O que você diria do seu livro aplicado ao presente?
Satnam Virdee: Os dois agentes primários da mobilização antirracista das décadas de 1970 e 1980 – a autoorganização dos negros e a resistência operária encabeçada pelos socialistas – se debilitaram muito nas décadas posteriores, reduzindo as possibilidades de uma oposição coletiva efetivamente. O movimento negro se fragmentou em fins da década de 1980, em parte como resultado do seu próprio êxito quando alcançou abrir vários espaços da sociedade britância a minorias racializadas. Esses grupos minoritários racializados, gente do sul da Ásia, da África e do Caribe, que tinha se fundido à ideologia da negritude política para combater o racismo generalizado e baseado na cor da pele, se desintegrou em seus distintos componentes à medida em que cada grupo conseguiu distintos níveis de progresso social.
Deste modo, foram desaparecendo as bases estruturais que cimentaram a aliança em uma coalizão de pessoas de cor pobres, juntamente com o impulso político pela descolonização e pelos direitos civis, de modo que hoje a chance de um retorno à política antirracista da negritude é reduzida.
Ao mesmo tempo, enquanto a classe continua a ser uma fonte fundamental de desigualdade, o sujeito da classe operária que emergiu no final da década de 1970 e começo da de 1980 também foi amplamente derrotado. E mais, a ideia do socialismo como projeto político emancipatório perdeu boa parte de seu poder de atração após o colapso do socialismo real na Europa Oriental no final da década de 1980, de modo que atualmente não seduz amplos setores operários. E o partido tradicional da classe, o Trabalhista, conhece essas mudanças, abandonou há um tempo seu propósito de construir uma sociedade socialista e democrática.
Neste interregno, outras correntes intelectuais trataram de ocupar o vazio deixado pelo Partido Trabalhista, incluindo em particular o Blue Labour, que influenciou na formulação mais recente de One Nation Labour por Ed. Miliband. Os fundadores intelectuais do Blue Labour, entre eles Maurice Glasman, falam da “paradoxa tradição trabalhista”, sustentando ser necessário “abordar a crise da sua filosofia política e recuperar seu histórico sentido de propósito […] reconstruindo uma relação forte e duradoura com o povo” (Glasman et al. 2011: 9-11). Consideram que o trabalhismo poderá recuperar votantes operários graças à redescoberta de suas raízes sociais conservadoras, com um enfoque que subtraia o interesse pela família, fé e a bandeira” (Sandbrook 2011).
No entanto, é provável que essa mensagem conservadora tão somente tenha ressonância entre determinadas categorias assalariadas, especialmente as que estão preocupadas com questões de raça, imigração na Europa, entre outras. E sua noção mais estreita de classe operária não leva em conta, em particular, como será recebida essa mensagem por uma classe operária que hoje, na Inglaterra, se caracteriza cada vez mais por sua diversidade étnica. Mesmo assim, esses intelectuais trabalhistas não reconhecem o potencial estruturador do racismo no conjunto da sociedade britânica, inclusive no seio da classe operária, nem até que ponto as visões de povo estão profundamente racializadas. Todo projeto político progressista que pretenda invocar hoje em dia noções de povo deve reconhecer expressamente essa história contraditória e complexa do racismo e buscar meios para superá-lo e bloquear seus efeitos estruturais na atual conjuntura.
Vejamos quais lições teóricas e políticas podemos extrair de uma obra de sociologia histórica para que possamos fazer retroceder um presente hoje tão precário. Edward Palmer Thompson – o grande historiador da classe operária inglesa – observou uma vez o seguinte: “a história é uma forma na qual lutamos e na qual muitas pessoas lutaram antes de nós. Tampouco estamos sozinhos quando lutamos nela, porque o passado não está simplesmente morto, inerte, confinado; também porta sinais e provas de fontes criativas que podem apoiar o presente e antecipar possibilidades” (Thompson 1981: 407-408).
Espero que [o livro] Racism, Class and the Racialized Outsider possa contribuir com a reconexão da classe operária contemporânea da Inglaterra – povo asiático, negro e branco – com as lutas por democratização, justiça social e igualdade que libertaram seus ancestrais e, ao mesmpo tempo, lhes proporcionaram pistas sobre como podem fazer sua própria história.
*Este artigo não representa, necessariamente, a posição do Esquerda Online. Somos um portal aberto às polêmicas da esquerda socialista.
[1] O Mês da História Negra (em inglês: Black History Month), entre 01 de Fevereiro e 01 de Março, é uma comemoração anual originada nos Estados Unidos. Recebeu reconhecimento oficial dos governos dos Estados Unidos, Canadá e, mais recentemente, na Irlanda, Países Baixos e Reino Unido – neste último, o mês da história negra se dá em outubro. [Nota da tradutora]
[2] Artigo disponível em: <<https://www.theguardian.com/world/2002/sep/30/race.politics>>.
[3] O documentário de 2013 retrata o pós-guerra na Inglaterra e a formação do Partido Trabalhista Inglês. No Brasil, disponível no vimeo [Nota da tradutora]
[4] É hoje professor de sociologia da Universidade de Glasgow.
[5] Em junho de 1948, um antigo cruzeiro alemão, o Empire Windrush, aportou em Tilbury/Londres com cerca de 500 passageiros jamaicanos. A maioria eram ex-militares, que serviram na Inglaterra durante a guerra e foram parte de uma campanha no pós guerra para recrutar mão de obra para cobrir a escassez de empregos em serviços postais estatais [Nota da tradutora].
[6] Siva, como era mais conhecido, foi diretor do Instituto de Relações Raciais por 40 anos, de 1973 a 2013, e também editor da revista Raça e Classe. Faleceu aos 94 anos e foi uma voz importante das conexões entre raça, classe, imperialismo e colonialismo. [Nota da tradutora]
[7] Hall nasceu na Jamaica e foi um dos fundadores da Revista New Left Review e da escola hoje conhecida como estudos culturais britânicos. [Nota da Tradutora]
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