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MUNDO

Layan Kayed: “Nós que estamos presas escapamos todos os dias”

Estudantes e mulheres se organizando contra a ocupação israelense

Por Brian Bean* e Shireen Akram-Boshar**, do New Politics (EUA).Tradução: Rafael Rabelo

Ao longo dos últimos anos, intensificou-se a repressão dirigida aos líderes estudantis palestinos. Muitos estudantes da Universidade de Birzeit, nos arredores de Ramallah, na Cisjordânia, foram presos por ativismo no campus, acusados de infrações absurdas como vender falafel em feiras estudantis ou organizar vendas de livros. Layan Kayed, ativista estudantil da esquerda em Birzeit, foi detida no ano passado e presa por 15 meses. Nesta entrevista ela fala com Brian Bean e Shireen Akram-Boshar sobre o longo histórico da militância estudantil palestina, por que isso se tornou um alvo para Israel, a dimensão de gênero do encarceramento e violência israelenses, os detalhes angustiantes de sua prisão e o ativismo atrás das grades.


New Politics (Brian Bean e Shireen Akram-Boshar): Em junho do ano passado você foi sequestrada em um posto de controle militar israelense pelas forças de segurança de Israel, presa e julgada sob a farsa dos tribunais militares da ocupação. Ao longo de sua prisão de 15 meses, você vivenciou as condições deploráveis enfrentadas pelos presos políticos palestinos e principalmente pelas mulheres presas. Você pode falar sobre essa experiência e o que ela diz sobre a barbárie da ocupação e as dimensões de gênero do encarceramento israelense de palestinos?

Layan Kayed: Os bloqueios israelenses espalhados em toda Cisjordânia são usados como instrumento fácil e barato para realizar prisões. Em vez de mobilizar grandes forças do exército israelense para invadir uma cidade palestina, se submetendo a formas populares de resistência, com o apedrejamento, estes bloqueios permitem que eles simplesmente ativem um de seus muitos pontos de controle existentes, ou instale um novo (um posto “volante” de controle) em sua rota diária, após um rápido acompanhamento de celulares e ligações privadas. Isto tem transformado a Cisjordânia em uma grande armadilha. Fui presa em um dos postos de controle que separa minha casa da Universidade de Birzeit enquanto eu estava no carro da minha família, com minha mãe, no meu caminho da universidade para receber meu diploma de sociologia.

Após minha prisão, fui deixada ao ar livre no posto de controle militar israelense de Zaatara por onze horas, algemada e acorrentada.

Fui então transferida para a prisão de Hasharon (“a travessia” em hebraico) e colocada em uma seção voltada a isolar presos criminais israelenses. Durante esse tempo, fui transferida entre duas celas de confinamento do tipo “solitária”. Em uma delas não recebi sol algum e era totalmente monitorada por câmeras de segurança 24 horas por dia. Nessa “travessia” fui submetida a insultos sexuais, palavrões constantes e abuso dos detentos criminais israelenses homens, sob a vigilância dos guardas israelenses, que não interviam. Em vez disso, alguns dos guardas que falavam árabe vinham me dizer que eu deveria prestar mais atenção à minha “honra” (um código para minha virgindade), e, de forma manipuladora, tentar me fazer sentir que esta situação era uma ameaça à minha “reputação”. Estes eram os mesmos guardas que rotineiramente invadiam nossa privacidade, enquanto presas políticas mulheres, e vasculhando as celas a cada meia hora enquanto dormíamos a noite, e entrando nelas sem aviso ou permissão para realizar buscas e outras práticas invasivas.

Esta não foi a única vez que os carcereiros tentaram usar o conceito de “honra”. Em um das sessões de interrogatório, enquanto me acusavam de “organizar acampamentos” para o membros da Al Qutub, o braço estudantil da FPLP (Frente Popular de Libertação da Palestina), o investigador me perguntou: “O que as pessoas dirão sobre ti quando souberem que estava organizando acampamentos mistos para ambos os gêneros?”

Muitas das minhas companheiras também foram submetidas a tentativas semelhantes por parte dos investigadores para pressioná-las e extorqui-las, usando o conceito de vergonha social e tentando forçá-las a achar que a sociedade palestina pela qual lutam irá rejeitá-las por suas escolhas de roupas ou piercings no nariz. Eles também tentam nos fazer pensar que os outros presos palestinos também irão nos rejeitar, dizendo coisas como: “Esses presos políticos vão forçá-las a usar véu e orar.”

O colonizador-encarcerador sempre tenta nos fazer acreditar que o inimigo é a nossa sociedade, não a colonização sionista que está roubando nossa terra.

Após 17 dias de isolamento na prisão de Hasharon, eu ainda estava com as mesmas roupas. Minhas roupas começaram a afrouxar devido à comida intragável e suja da prisão. Eu fui mais tarde transferida em um “al Bosta” para a prisão de Al Damon. “Al Bosta” é o veículo usado para transferir presos para sessões de julgamento e hospitais; é uma pequena van que tem muitas celas apertadas, pintadas de cinza ou preto, com assentos de metal. Tem uma janela em miniatura, que é revestida em aço e perfurada por pequenas aberturas. Fomos algemadas e jogadas nessas celas apertadas durante a viagem. Viagens como essas às vezes levam mais de 20 horas. O motorista muitas vezes dirige deliberadamente de forma imprudente, fazendo constantes e repentinas curvas e brecadas, para nos ferir de propósito.

Das outras mulheres presas, um grande número foram encarceradas ainda menores de idade e condenadas a longas sentenças. Essas mulheres viveram infância e juventude na prisão. Elas conseguiram seu certificado da “escola geral” [aproximadamente equivalente a um certificado de Ensino Médio] e agora estão matriculadas em universidades a partir da prisão. A maioria delas foram baleadas e feridas durante a prisão, tiveram negados cuidados médicos adequados como parte da negligência médica deliberada da prisão. Isto é um forma de tortura diária; aquelas que estão gravemente doentes são transferidas para a prisão de Ramle, sem as necessidades básicas para a vida e muitas vezes acorrentadas em suas camas. O atendimento médico oferecido é extremamente deficitário e já levou à morte de várias prisioneiras, muitos de cujos as das quais os corpos ainda estão sendo retidos por Israel.

NP: O pretexto da prisão foi seu envolvimento no movimento estudantil na Universidade de Birzeit (na Cisjordânia) onde você estuda. Por que você foi visada? Qual é o contexto para a crescente repressão israelense do ativismo estudantil palestino e as violações basicas em relação à liberdade de expressão política, associação e organização de entidades estudantis que você representa? Por que o movimento estudantil faz Israel se sentir tão ameaçado?

LK: O movimento estudantil palestino sempre foi uma alavanca para a luta nacional palestina. Historicamente, a União Geral dos Estudantes Palestinos era o núcleo da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). As organizações estudantis dentro dos territórios ocupados foram, por sua vez, parte essencial e ativa da Primeira e da Segunda Intifadas.

No entanto, ocorreram duas mudanças perigosas que afetaram o movimento estudantil:

Primeiro, com a assinatura dos Acordos de Oslo, houve uma grande mudança no trabalho das organizações nos territórios ocupados. A recém-formada Autoridade Palestina – com seu projeto político e social – tentou transformar essas estruturas populares em instituições da sociedade, dentro de um projeto de construção do Estado, em oposição a um projeto de libertação, o que criou barreiras reais para a continuidade da mobilização popular.

Em segundo lugar, a divisão interna palestina entre Fatah e Hamas – a Autoridade Palestina e seu partido governante, o Fatah, controla a Cisjordânia, enquanto o Hamas assumiu o controle da Faixa de Gaza – impediu ainda mais a liberdade e a democracia, o que por consequência afetou as universidades.

A Universidade de Birzeit é a única universidade palestina que ainda mantém  eleições do conselho estudantil todos os anos, o que significa que seu movimento estudantil é politicamente ativo. Além disso, sua proximidade de Ramallah, o centro administrativo e capital da Autoridade Palestina, lhe dá influência política central, ao mesmo tempo preservando o campus como um espaço seguro de liberdade política para os movimentos, especialmente na medida em que os espaços de liberdade política tem diminuído na Cisjordânia.

Todos esses fatores permitiram ao movimento estudantil resistir aos resultados esperados na vida política sob a autoridade de Oslo e ir além do novo “projeto  palestino”, com sua ideia centrada na salvação individual. O movimento estudantil também resistiu ao desejo do colonizador pela estabilidade na Cisjordânia ao não se tornar uma frente política morta. Também conseguiu se elevar, em menor grau, sobre as divisões políticas internas palestinas.

O movimento estudantil conseguiu construir uma base comum de resistência política contra o colonialismo, derivada da crença compartilhada nos direitos dos palestinos enquanto povo indígena colonizado. Portanto, a Universidade de Birzeit testemunhou um movimento contínuo, representado por ocupações e protestos que se concentram em “Pontos de Contato” com a ocupação israelense. Isso liga a universidade às principais questões palestinas, incluindo a dos mártires, dos presos políticos e da luta contra os assentamentos. Por tudo isso, a arena política da universidade de Birzeit tem sido capaz de construir um modelo para grupos progressistas palestinos, formados e envolvidos em política e resistência.

A Universidade de Birzeit é famosa por seus comitês de trabalho voluntário. Por exemplo, milhares de estudantes se voluntariam anualmente para colher azeitonas em terras ameaçadas de confisco.

Estudantes universitários de Birzeit também pagaram o preço final por sua militância política, incluindo recentemente o Mártir Fadi Wahsha, martirizado nos eventos de Saif Al-Quds.

Todas essas manifestações ameaçam o projeto de uma “Cisjordânia estável” sob a ocupação, e é por isso que enfrentamos a ameaça constante no movimento estudantil. O colonizador quer garantir que este modelo de  resistência não se generalize  amplamente entre os palestinos, intervindo para quebrar os atuais estudantes ativistas para que não continuem a luta além de seus anos universitários.

Para o colonialismo israelense, as prisões em massa são insuficientes; Eles invadiram o campus da universidade diversas vezes, realizaram prisões dentro dos corredores dos edifícios e em frente ao edifício do conselho estudantil, além de prenderem o presidente do conselho estudantil, Omar Kiswani, em 7 de março de 2018, por meio de soldados à paisana. Israel também decreta “ordens de banimento”  para estudantes ativistas, impedindo-os de entrar no campus.

A intimidação também é realizada utilizando intimações oficiais e ligações ameaçadoras, não apenas para ativistas estudantis, mas para o corpo de estudantes em geral, a fim de desmotivá-los a se juntar ao movimento estudantil.

Mais importante ainda, o colonialismo israelense faz pressão crescente na universidade – citando a presença do movimento estudantil – a partir do lançamento de uma campanha direcionada aos países e instituições doadoras com o objetivo de minar o financiamento da Universidade de Birzeit.

NP: Mesmo Israel prendendo estudantes ativistas de várias matizes, a Al Qutub (polo estudantil democrático-progressivo) – grupo universitário de esquerda com o qual você está envolvida – é proibido enquanto “associação ilegal” pela ocupação israelense, apesar de não ter historico de envolvimento com atividades militares. Você pode falar sobre as atividades e políticas da esquerda no movimento estudantil?

LK: Nós do Al Qutub adotamos a visão política da FPLP e seu slogan principal, “libertação da terra e do povo”. Nossa visão enquanto movimento, no entanto, foi inspirada pelas palavras de ordem da União Geral dos Estudantes Tunisianos: “Uma Universidade popular, educação democrática e cultura nacional / patriótica”.

UNIVERSIDADE POPULAR

A luta por uma universidade popular divide-se em duas. A primeira parte tem um aspecto político, relacionado ao orçamento anual da Autoridade Palestina (AP). Nós nos mobilizamos para aumentar a verba do ensino superior, que geralmente não excede 2% do orçamento geral, enquanto mais de 40% dos recursos da AP são alocados ao setor de segurança. Ironicamente, todas essas agências de segurança alinham-se à agressão israelense durante quaisquer ataques às cidades palestinas e na prisão de quem quer que eles queiram. Estes gastos generosos só ocorrem na repressão às manifestações palestinas pacíficas exigindo liberdade e democracia, como aquelas recentemente realizadas na Cisjordânia na sequência da terrível morte do ativista Nizar Banat. Eu estava na prisão naquela época, mas muitos dos meus camaradas me contaram sobre uma lista difundida para todas as Agências de Segurança da AP, contendo os nomes de nossos companheiros, com a ordem para espancá-los, mesmo que no campus da universidade.

A segunda parte da luta é a que nós fazemos dentro da própria universidade.

Nós lutamos contra a privatização das instalações universitárias. Todos os anos, o campus universitário testemunha greves e ocupações organizadas pelo movimento estudantil e o sindicato dos trabalhadores para combater a privatização. A Al Qutub organiza modelos alternativos, como uma lanchonete alternativa e uma gráfica alternativa, que vende xerox dos livros – o que a universidade não faz, apesar dos preços altos e inacessíveis.

A Al Qutub também trabalha para acabar com as políticas de discriminação de classe na universidade e por uma educação pública e gratuita. Nós tentamos pressionar a universidade a recusar qualquer tipo de contrapartida política condicionada por financiadores locais e internacionais, contra os ditames externos nos programas educacionais e contra a nomeação de edifícios com nomes de capitalistas palestinos, defendendo nomeá-los homenageando colegas martirizados.

EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA

 Na Al Qutub, buscamos uma educação democrática, lutando pela democracia da instituição educacional. Nossa luta por democracia envolve também publicizar nossos debates, submeter-se a votações em assembleias e participar das eleições de representantes no Conselho Estudantil, abrindo um diálogo entre a administração universitária e os estudantes sobre política e gestão universitária, participando das esferas de decisões da universidade.

A democracia de que falamos não pode existir sem garantir a independência do processo democrático de todos os tipos de intervenções, das agências de segurança da AP, bem como das estruturas tribais e regionais reacionárias. A democracia é impossível sem assegurar a liberdade de sindicalização e expressão política dos palestinos. Além da repressão israelense, a AP rotineiramente prende estudantes ativistas. Vários anos atrás, descobrimos que não podíamos imprimir um único panfleto em qualquer gráfica de Ramallah devido a pedidos das agências de segurança. Ao longo dos anos, muitos de nós, assim como de nossos pais, foram convocados para um “cafezinho”, o código usado pelos serviços de inteligência para um interrogatório, como parte de suas táticas de intimidação.

A democracia que reivindicamos não está separada da justiça social ou da igualdade de gênero. Ela deve primeiro trabalhar de acordo com esses valores e se esforçar para alcançá-los.

CULTURA NACIONAL / PATRIÓTICA

Vemos a educação como um processo libertador. Para nós, não é apenas sobre a qualidade da educação e a posição da universidade dentro de rankings internacionais, mas se, ao invés disso, podemos usar nosso conhecimento acadêmico para mudar nossa realidade e contribuir para nos libertar do colonialismo.

Atualmente, todas as nossas faculdades adotam currículos internacionais, sem responder às demandas da realidade palestina e nosso projeto de libertação.

Neste sentido, lutamos para instituir uma disciplina sobre “a causa palestina” como requisito universitário, após sua remoção em 1993 por consequência dos Acordos de Oslo. Ela foi reintegrada, por resultado de nossa luta, em 2013. Da mesma forma, nos mobilizamos para iniciar um curso, recentemente aprovado, centrado nos presos políticos.

Nossa luta não se limita aos currículos universitários. Também atuamos constantemente para manter a universidade e seu campus como um centro nacional independente. Lutamos contra relações com empresas que reconhecem ou operam para Israel. O mesmo vale para representantes de países imperialistas ou árabes reacionários. Nós nos inclinamos cada vez mais para a ação direta como foi, por exemplo, no “Dia do Emprego”, um evento realizado pela Universidade. Organizamo-nos para derrubar as cabines de algumas empresas, como a Rawabi, Asa e Axlet.

Fora da universidade, integramos o projeto de libertação nacional palestino e o movimento social progressista, lutando e nos mobilizando no centro das cidades, exigindo que a AP encerre as sanções a Gaza, pela indenização de Nizar Banat, e que a AP  rejeite o julgamento do Mártir Basil al-Araj.

Estamos sempre presentes em todos os confrontos contra o colonizador, em todos os “Pontos de Contato” em frente ao tribunal militar de Ofer e no assentamento de  Beit El, com os outros alunos da nossa universidade, nosso movimento e nossos sindicatos.

NP:  A organização dos presos políticos palestinos sempre teve uma posição especial na luta pela libertação nacional. Essa dinâmica foi expressa novamente pela inspiradora fuga da prisão de Gilboa durante o verão e o desencadeamento de uma nova greve de fome pelos presos em meados de setembro. Muitas vezes, a militância de mulheres presas sequer é mencionada. Você poderia falar sobre como as mulheres estão se organizando atrás das grades?

LK: O encarceramento é a intensificação da realidade de opressão e colonização, suas relações de poder, assim como a revelação do que é escondido. Na prisão, assim como na vida, você se acostuma com a opressão, apesar da amargura, e, ocasionalmente, esquece da possibilidade de outro mundo, em que a vontade de resistir prevalece. Naqueles dias, apenas a vontade dos poderosos parecia existir.

Então, dia 9 de junho, fomos acordados pelos carcereiros às cinco da manhã para a “contagem de cabeças” – mas esta não era a hora habitual da contagem. Depois de um tempo, percebemos que seis presos haviam escapado. As presas mulheres começaram a espalhar a notícia pelas celas. Eu estava de pé, perto da porta, na época, então transmiti a notícia para minhas companheiras na cela, que estavam sonolentas e disseram que provavelmente eram presos penais israelenses. Eu não sei de onde surgiu essa reação, a estranha convicção de que não eram presos políticos como nós que tinham conseguido escapar.

Porém, os que conseguiram fugir eram de fato presos políticos como nós, de nossas aldeias e vilas. A mídia israelense começou a culpar a administração da prisão, que “dá ao prisioneiro liberdade suficiente, permitindo que eles escapem” e começou a falar sobre as migalhas que tínhamos, como “privilégios da administração penitenciária”.

Quanto a nós, esses eventos nos ajudaram a perceber que a vida na prisão não merece nada além da fuga e que essa realidade deve ser superada e resistida, mas, principalmente, que ainda somos capazes de resistir.

Nós que estamos presas, fugimos todos os dias, talvez não escavando um túnel, mas reformulando a prisão, a prisão que o inimigo projetou como um confinamento para nós, transformamos ela em um lugar de vida e mudança.

Os presos políticos não se consideram isolados da luta do povo palestino, e não dependem do apoio externo, mas praticam um intercâmbio de apoio e respaldo com a sociedade palestina como um todo.

Os presos políticos sempre desempenharam um papel importante na causa palestina. Eles realizaram muitas iniciativas para acabar com a divisão política e trabalharam para educar gerações de jovens, mulheres e homens encarcerados, também produziram diversos escritos importantes, acadêmicos e de outros tipos. Eles carregam a esperança, com cada ato de fuga e rebeldia.

As presas palestinas têm sido um componente do movimento político, desde o início da resistência contemporânea. As mulheres prisioneiras políticas participaram das greves de fome gerais. A mais recente destas foi a greve dos prisioneiros da Jihad Islâmica, resistindo às medidas tomadas contra eles após a fuga dos seis prisioneiros. Três prisioneiras estavam nesta greve de fome. As mulheres prisioneiras também estavam em greves individuais na luta contra a política administrativa carcerária, a última delas, Heba al-Labadi, foi recentemente libertada.

A vida dentro da prisão feminina é organizada e gerida pelas próprias presas políticas. Há um comitê de biblioteca, por exemplo, na medida em que uma das salas da prisão foi convertida em uma biblioteca. Há um comitê cultural, que publica uma revista com os escritos de presas mulheres e cursos de pré-preparação, como cursos de línguas, além de organizar eventos culturais e competições. Há um comitê especial para a gestão da cantina, que pensa nas necessidades da seção feminina e compra os itens necessários da conta geral compartilhada, a qual todas contribuem.

Temos uma representante e uma representante adjunta encarregada de transmitir nossas demandas e direitos perante a administração da prisão. Há também uma série de prisioneiras mulheres responsáveis por distribuir comida e limpar as instalações que usamos. Além disso, há um comitê de educação especial, onde as presas aprendem e ganham seu diploma secundário dentro da prisão. Recentemente, começamos a fornecer educação universitária na prisão. Essas estruturas são flexíveis.

A experiência das mulheres encarceradas é um pouco diferente da dos homens, devido ao número comparativamente menor de mulheres presas. A maioria das mulheres foi libertada em troca de prisioneiros com Israel, o que, de uma certa forma, interrompeu a experiência acumulada de organização dentro da prisão. A mais recente troca, de Gilad Shalit, não incluiu mulheres palestinas presas nas cidades ocupadas em 1948, então, Lina al-Jarbouni permaneceu sozinha na prisão. Por meio dela, e daquelas que foram presas novamente mais tarde, algumas dessas experiências e estruturas acumuladas foram transferidas para a nova geração de presas femininas. Essa perda de experiência de organização acumulada significou que perdemos muitos direitos anteriores, principalmente os meios de comunicação entre mulheres presas; Isso foi cada vez mais sentido durante a proibição completa de visitas sob o pretexto da COVID.

Há uma dimensão importante para a luta das mulheres encarceradas, na medida em que se apresenta como um desafio para o sistema social e demonstra modelos de resistência feminista, paralelamente à luta nacional.

NP: Em 22 de outubro, Israel decretou mais seis organizações palestinas de direitos humanos como organizações terroristas. Isso inclui algumas das organizações palestinas mais antigas de direitos humanos, como a ‘Al-Haq’, alem da conhecida organização de apoio as presos políticos ‘Addameer’, que dá apoio juridico a palestinas como você, sob ameaça de tribunais militares do apartheid. Qual é o significado do aumento da repressão e que desafios ele carrega?

LK: A essência do sionismo é seu projeto colonial e a política de substituição da população através de assentamentos. Este projeto é baseado no extermínio em massa e expulsão dos povos nativos. O projeto sionista vê os palestinos apenas como inimigos, cuja existência deve ser eliminada, sua capacidade de resistir – em todas as formas – paralisadas, até que elas desapareçam completamente. Para a consistência do mito fundador do seu projeto colonial de “uma terra sem um povo”, qualquer outra narrativa deve ser apagada, você enquanto colonizada deve ser morta silenciosamente, como se nunca tivesse existido. Portanto, documentar seus crimes se torna um crime, e defender um detento é algo que condena os defensores.

Em 2016, o Knesset (parlamento) sionista aprovou uma lei para “combater o terrorismo” que fixou o precedente para a atual repressão. O perigo desta lei não é apenas a criminalização dessas organizações por classificá-las de “terroristas“, nem é a facilidade com que as instituições públicas e estudantis foram criminalizadas. Na verdade, seu maior perigo se dá, por um lado, na tentativa de separar essas organizações de sua origem popular, enquanto, ao mesmo tempo, as isola do mundo e das organizações internacionais.

A lei não apenas criminaliza os membros dessas organizaçõesalvo, mas também quem se atreve a prestar serviços ou apoio, mesmo se apenas oferecendo apoio moral. Até elogiar uma dessas organizações ou participar de um evento que eles organizaram é suficiente para você ser preso. A classificação destas organizações como terroristas faz até mesmo passar algum tempo nos corredores do campus universitário algo perigoso. Uma vez, um administrador distrital israelense ligou e ameaçou um jovem calouro na universidade de Birzeit porque ele havia participado de um sorteio organizado por um dos grupos estudantis e ganhou um laptop.

Essas leis são uma tentativa do colonizador de aumentar os custos e riscos da luta e da resistência. Se você for presa por ser uma ativista ou simpatizante, você pode ser proibida de viajar ou descobrir que muitas organizações internacionais não lhe empregarão ou  que você pode ser demitida se tiver um emprego, além de diversos outros problemas. A única função disso é fazer os palestinos se perguntarem, qual o grande preço a se pagar para um pequeno ato de solidariedade ou de apoio ao ato de outra pessoa? As forças da ocupação uma vez prenderam um ônibus inteiro de estudantes homens e mulheres da Universidade de Birzeit em visita à casa da família do preso Montaser Shalabi, depois que ela foi demolida pelo exército. Muitos dos alunos foram indiciados apenas por visitar as famílias de presos e mártires.

Com a criminalização das instituições, ser um funcionário também se tornou um crime. Por exemplo, Shatha Odeh, de 60 anos, está sendo processada porque continuou a trabalhar na Federação de Comitês dos Trabalhadores da Saúde, apesar de a entidade ter sido fechada por Israel.

A segunda função da criminalização é a de isolar as instituições públicas e as estruturas internacionais, para reduzir o apoio financeiro e as fortes relações com as instituições mundiais. Juani Rechmawi, uma mulher espanhola casada com um palestino, foi presa pela captação de recursos para a Fundação de Comitês de Trabalhadores da Saúde, o que era sua atribuição funcional como funcionária.

O estado sionista não se satisfaz apenas em decretar as instituições e estruturas como terroristas. Eles também atacam e lacram seus escritórios, confiscam seus equipamentos, prendem seus funcionários e associados, montam campanhas internacionais para cortar apoio e comunicação, e ameaçam simpatizantes.

Na ausência de qualquer responsabilização internacional dos colonizadores sionistas, e à luz do flagrante apoio pelos governos ocidentais – liderados pelos Estados Unidos – é fácil para os nossos opressores rotular como “terrorista” qualquer instituição, mesmo que seja uma organização de direitos humanos com uma reputação ilibada, com diversas conexões e relações internacionais, como a al-Haq.

O fechamento dessas instituições cria uma ausência de atores responsáveis por documentar violações dos direitos humanos e de defender legalmente os direitos palestinos, nos níveis local e internacional. Por exemplo, o Addameer é a única organização não-governamental que defende os presos sem qualquer retorno financeiro. O fechamento de outras instituições de direitos sociais, como os comitês de saúde e trabalho agrícola, significa efetivamente um prejuízo para estruturas de apoio e resiliência do povo palestino. Essas organizações fornecem ferramentas cruciais que permitem que as pessoas sobrevivam sob a constante ameaça do exército israelense e dos colonos violentos. Seus recursos são necessários em particular porque a maioria dos destinatários desses serviços vivem na área C, áreas ameaçadas por confisco, roubo de terras, recursos e outras medidas arbitrárias.

Além disso, o fechamento das estruturas públicas que trabalham em nível social com o povo palestino, como a União dos Comitês das Mulheres, é uma tentativa de impor posições reacionárias e disruptivas à resistência social e política das mulheres.

NP: Tudo isso acontece na sequência da explosão da Intifada da Unidade, a completa falência da AP, a normalização contínua das relações dos estados árabes com o Estado colonial de Israel, e a possível anexação da Cisjordânia pela ocupação. Como você vê o estado atual da luta palestina? Que papel você acha que as organizações internacionais de esquerda e os estudantes devem desempenhar na construção de solidariedade?

 LK: A fragmentação palestina não se limita a divisões políticas internas, mas também se estende às divisões geográficas que afetam todos os segmentos do povo palestino, Gaza, Cisjordânia, os territórios apreendidos por Israel em 1948, e as diásporas, além de uma precisa divisão de classe que é o produto dos projetos de “paz econômica”. Por causa dessas condições, um projeto palestino verdadeiramente coletivo e inclusivo está ausente hoje, um que seja claramente definido com metas e tarefas claras, como já foi anteriormente com a OLP.

Além disso, está claro que após quase 28 anos de Oslo e da Autoridade Palestina, até mesmo os projetos que deveriam ter transformado a causa palestina em um conflito gerenciado, prolongando-o até que fosse esquecido, falharam miseravelmente. Nos próximos anos, o número de colonos israelenses na Cisjordânia atingirá um número igual ao da população palestina nativa. Isso significa que a forma de confronto será diferente, e se transformará em um enfrentamento face a face, como começamos a notar, especialmente em cidades como Jerusalém, com a crescente pressão na Cisjordânia pelos projetos de ocupação e roubo de terra e a construção de unidades de assentamento, além das práticas violentas dos colonos que continuam a invadir a vida e a propriedade dos palestinos. Mas, principalmente, o congelamento do financiamento da Autoridade Palestina, a principal fonte de renda para as famílias na Cisjordânia, assim como o novo ataque às instituições da sociedade civil, todas essas práticas violentas ameaçam a qualquer momento tornar a situação explosiva. O projeto de Oslo buscava garantir necessidades mínimas da vida na Cisjordânia para manter as pessoas quietas, mas esse projeto fracassou.

Nosso conflito é uma luta existencial; é impossível encontrar meiostermos. Eles querem nos matar e as pessoas não ficarão mais silenciosas. Elas não têm nada a perder.

Para o povo palestino como um todo, os eventos de Saif Al-Quds constituíram uma nova consciência, prova de que há uma consciência comum entre o povo palestino, independente dos diversos e distintos contextos. Nós provamos que somos um povo unido por objetivos comuns, e que projetos de normalização e neutralização falharam.

A necessidade de hoje é transformar essa consciência em um programa de ação, em um projeto e uma declaração de libertação palestina revitalizada. Acredito que devemos reativar a OLP e seus quadros populares e concordar com um programa de libertação, integrando todas as estruturas e partidos palestinos, e reconsiderando nossa existência como um povo, como um movimento de libertação nativo anticolonial, necessariamente ligado ao contexto árabe mais amplo e à luta planetária de todos os oprimidos na Terra.

Em nível árabe, o mundo árabe está sendo destruído, seja através de guerras, como está acontecendo no Iêmen, no Iraque, e na Síria, ou nas políticas de desenvolvimento liberal e na dependência econômica, como acontece nos Estados do Golfo. Isso torna hoje o processo de normalização – melhor exemplificado pela Conferência do Bahrein – em uma extensão desse estado de destruição. Ajuda a transformar a entidade sionista em um parceiro político e econômico. No entanto, a normalização está ocorrendo no nível dos governos; O povo árabe ainda vê a entidade sionista como ilegítima. Não há libertação da Palestina sem libertar a região das relações coloniais e da dependência econômica, política, militar e cultural.

A questão palestina não é apenas uma questão local. Como povo palestino, estamos enfrentando a entidade sionista, que está organicamente ligada a todos os interesses imperialistas na região e no mundo. Isso significa que o conflito com o projeto sionista não se limita à terra da Palestina.

Além de boicotar Israel em todos os aspectos econômicos, acadêmicos e culturais, organizar campanhas de pressão frente aos governos e suas políticas pró-israel como a venda de armas, trocas comerciais ou políticas que adotam o discurso israelense, entendemos que combater a injustiça e opressão em qualquer lugar do mundo faz parte da nossa luta contra Israel. É óbvio que Israel não é apenas o produto de interesses imperialistas e o garantidor de sua influência no sul global, mas também um agente ativo no apoio à opressão em todo o mundo. Israel é um laboratório de armas, vigilância e tecnologias militares, que ele exporta para governos opressivos em todo o mundo.


*Brian Bean é ativista socialista de Chicago, escritor e palestrante nascido da Carolina do Norte. É um dos editores e fundadores da revista Rampant e membro do coletivo socialista Tempest. Seus trabalhos foram publicados na Jacobin, Socialist Worker, Red Flag, International Viewpoint, New Politics e outros lugares.

**Shireen Akram-Boshar é uma ativista socialista e escritora que tem como foco a revolução e o anti-imperialismo no Oriente Médio e Norte da África.

Artigo publicado em New Politics, número 04, pg. 55-63, em janeiro de 2022.

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