Uma hipótese controversa e otimista perante a maioria absoluta
Publicado em: 1 de fevereiro de 2022
Os resultados são conhecidos. A vitória do PS é retumbante, sobretudo à luz das últimas sondagens e da fase final da campanha eleitoral ― a maioria absoluta do PS é a notícia da noite. À esquerda ― ou seja, Bloco, CDU e Livre ― sofremos uma derrota pesada: menos 331.550 votos, menos 20 deputados e menos 7% do total. A direita sobe de conjunto, em percentagem e em votos, mas o processo de reconfiguração radical mantém uma dinâmica autofágica, impedindo Rio de sequer beliscar Costa ― não obstante, a afirmação do neofascismo como terceira força política destacada é o sinal dos perigos que se acumulam no horizonte.
Seguem-se umas notas iniciais para auxiliar uma discussão de balanço e, sobretudo, uma reflexão sobre o rumo estratégico que a esquerda tem de construir para o futuro. Não pretendem ser definitivas; pelo contrário, arriscam algumas hipóteses que podem e devem ser postas em causa. O objetivo destas linhas é estimular a reflexão fraternal à esquerda.
É preciso olhar à correlação social de forças
Sondagens, gatos e o brilhantismo tático de Costa serão facilmente mobilizados para explicar o resultado eleitoral. Certamente os rumos da campanha e as opções dos seus protagonistas influenciaram os resultados. Assim como o fizeram as sondagens, que ao apontar uma possível vitória da direita, mobilizaram o voto útil no PS. Mas aqui destaco explicações de longo fôlego: proponho que se pense o resultado com base nos últimos anos, não nas últimas semanas.
A grande clivagem social da história política recente no nosso país foram os anos da Troika e do governo das direitas. A estrutura social do país foi qualitativamente alterada então ― e as mudanças de então não foram globalmente revertidas. Mas esses anos, entre 2011 e 2014, sensivelmente, foram também os do maior ciclo de lutas de massas, não só do período recente, mas desde a revolução de abril. A resposta das classes trabalhadoras em manifestações massivas, na multiplicação de greves setoriais e gerais e através da votação massiva à esquerda em 2015 deixou marcas tão importantes no terreno económico, político e social cujo impacto ainda se faz sentir. Aí radica a primeira explicação de recente noite eleitoral.
O trauma da direita e da austeridade
A tese que sustento é que os presentes resultados eleitorais nos indicam que a correlação social de forças conquistada então não foi revertida. Esse facto positivo reflete-se no principal aspeto positivo deste resultado eleitoral: a direita foi derrotada. Não obstante a razia que se abateu sobre nós em termos de votos, na esquerda não podemos ignorar esse fato. O povo trabalhador não rejubila com a vitória do PS, mas respira de alívio com a derrota do PSD. Ter em conta isso é essencial, ignora-lo só nos afastará mais do povo de esquerda.
O povo que se revoltou contra o governo Passos e Portas, nas ruas e nas urnas, contra a austeridade e em defesa das conquistas sociais e econômicas da revolução de 74-75, mantém-se como maioria social, ativa pelo menos eleitoralmente. Isso explica a derrota da direita. Essa maioria social, perante o crescimento real da direita, mobilizou-se para votar em quem lhe pareceu melhor posicionado para defender as posições conquistadas: o PS. Foi um voto que arrastou quase a totalidade do eleitorado de esquerda, desde as parcelas mais moderadas às mais combativas, secando o terreno de Bloco e CDU e levando igualmente à maior participação em eleições legislativas dos últimos anos (também explicada pelo crescimento da direita).
A gestão da pandemia
Claro que a explicação não radica apenas nos idos anos de luta contra a austeridade. O balanço generalizado do governo da Geringonça, primeiro, e da gestão da pandemia, depois, convergem com essa tendência mais de fundo. A reversão parcial da austeridade marcou profundamente milhões de trabalhadores e pensionistas: com ela, reconstruiu-se no imaginário popular algo que os anos anteriores haviam diluído, a diferenciação entre uma governação PS e uma das direitas. Ao contrário do que sucedia nos últimos anos de Sócrates e no consulado de Seguro, nenhum trabalhador politizado assegura hoje que o PS e a direita «são a mesma coisa». Mesmo os mais críticos reconhecem diferenças.
A gestão da crise pandémica, no terreno social e epidemiológico, feita pelo PS confirmou, na consciência popular, esta ideia. Uma análise mais profunda da gestão feita pelo PS seria necessária: ela mercê muitas críticas, se feitas a partir de um enfoque de esquerda. É, contudo, impossível desprezar o efeito de medidas como foram o layoff generalizado em 2020, que impediu um cataclismo social incontrolável; ou da moratória das dívidas bancárias, entre outras. A recuperação assinalável da criação de emprego (que se deve antes de mais a fatores internacionais), combinada com o sucesso da vacinação, na segunda fase da pandemia, consolidou essa perceção popular. Toda a gente sabe que uma gestão pandémica com um ministro das finanças como Victor Gaspar teria pesado muito mais sobre quem trabalha ― e se coubesse a gente como Rio, Cotrim de Figueiredo e Ventura fazê-la seria uma calamidade de tipo trumpista. Foi com base nesse balanço que grande parte dos trabalhadores e pensionistas votaram no domingo.
O copo meio cheio
A ser verdade, esta hipótese não pode ser menosprezada. A direita foi derrotada, de novo. O voto no PS foi um voto na estabilidade, mas numa estabilidade em que o SNS não é frontalmente atacado, em que o salário mínimo aumenta, em que as desigualdades sociais são mitigadas (ainda que não revertidas). Uma estabilidade em que a maioria das classes populares duvidam da possibilidade de conquistar novos direitos, mas estão determinadas a manter os que têm.
Aprofundarei, mais tarde, como conseguiu o PS, injustamente, colocar-se como garante de tudo isto, em vez da esquerda. Mas o voto em Costa foi contra a degradação do SNS, contra a redução dos salários, contra novas privatizações, contra a degradação da segurança social e contra a extrema-direita. Foi uma expressão distorcida de tudo isto. Um gesto defensivo, nem entusiasta nem combativo, mas decidido, pragmático e firme neste sentido.
Há uma conclusão estratégica a retirar desta análise, caso ela seja verdadeira. A derrota de esquerda dá-se, por enquanto, no terreno da correlação política de forças, não da correlação social. Ou seja, há combustível social para alimentar uma recuperação das esquerdas ― em futuras eleições, mas sobretudo, na disputa das ruas e das ideias ― pois só elas podem ser consequentes na defesa dos valores que, agora, levaram ao voto no PS.
Mais: a única esperança de que esta correlação de forças, que se expressou pragmaticamente no PS, não ser revertida por uma revanche radical da direita e do capital reside mesmo na capacidade da esquerda em passar ao contra-ataque. Ele é possível, é necessário e será a questão estratégica definidora do próximo período. O crescimento inédito das direitas radicais alerta nesse sentido.
Para rearmar a esquerda e as classes trabalhadoras para essa mudança, será necessário compreender o que sucedeu na relação eleitoral com o PS. Porque foram BE e CDU tão penalizados pelo chumbo (correto) do Orçamento? Se é verdade que existiu um voto massivo contra a direita, porque não se beneficiaram dele as esquerdas? A resposta a esta questão reside na análise da correlação política de forças ― portanto, menos na movimentação profunda das classes, mas mais na disputa político-partidária. Só desse balanço poderemos retirar elementos para uma reflexão estratégica que rearme a esquerda combativa. Será esse o objeto do meu próximo texto.
*Publicado originalmente em Semear o Futuro.
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