1. Conflitos de terra e Poder Judiciário
O funcionamento do Poder Judiciário em situações de conflito de terra é o tema central deste artigo[1], que tem a pretensão de analisar como os movimentos sociais, impulsionados por um quadro histórico e legislativo de ampliação dos mecanismos de tutela de direitos coletivos (formado, com maior intensidade, após o encerramento do regime militar), utilizam a via do processo judicial na defesa dos seus interesses. A questão está diretamente ligada à moradia, um direito fundamental reconhecido pela Constituição da República de 1988 que permanece inacessível a grande parte da população brasileira.
Toma-se como objeto a desocupação do Pinheirinho, área localizada no município de São José dos Campos, interior do Estado de São Paulo, por tropas da Polícia Militar. Esse episódio ganhou repercussão política, nacional e internacional, e refletiu alguns aspectos da crise de habitação que atinge os centros urbanos, com destaque para o papel dos órgãos da Justiça na intermediação de disputas desse tipo.
O Pinheirinho corresponde a uma extensa área localizada na Zona Sul de São José dos Campos. Chegou a ser habitado por mais de sete mil pessoas [2], reunidas numa ocupação que teve início em 2004, organizada por trezentas famílias que haviam sido expulsas de um terreno próximo, no bairro Campo dos Alemães. Vinculado à Selecta Comércio e Indústria S.A., o imóvel, de 1,3 milhão de metros quadrados, permaneceu abandonado durante mais de duas décadas, até ser transferido, no início dos anos 1980, para o domínio daquela empresa, cuja falência foi decretada em 1989 [3].
Na madrugada de 22 de janeiro de 2012, uma operação militar comandada pela Justiça Estadual de São Paulo, responsável pela concessão de liminar de reintegração de posse ao grupo que se apresentava como dono do terreno, arrasou o Pinheirinho. Essa manobra violenta se fez em nome de uma concepção doutrinária que enxerga o Estado como aparelho ideologicamente neutro e descomprometido e, na esfera jurídica, reduz o direito ao âmbito das prescrições normativas (Faria, 1986). Para autorizar o despejo, o Poder Judiciário desenvolveu um raciocínio que, na ótica dos seus agentes, seria capaz de produzir soluções livres de interferências políticas, determinando, a partir do conteúdo estreito da lei, qual dos dois institutos postos em confronto seria mais importante: a propriedade privada ou a moradia. A escolha feita resultou num gigantesco despejo, acompanhado da destruição de casas e elementos urbanos, em nome da preservação de um patrimônio individual. Isso tudo expressaria a eficácia do direito, concebido nos limites da lei abstrata, generalizante e desprovida de reflexos sociais, não fosse a circunstância de que a ideia de neutralidade e completude contida nesse pensamento é, também ela, eminentemente ideológica (Freitas, 2006).
As controvérsias em torno do Pinheirinho envolvem, entre muitos outros incidentes, ações judiciais com tramitação nas comarcas de São Paulo e São José dos Campos, em juízos subordinados estruturalmente ao Tribunal de Justiça, além de passagens pela Justiça Federal. Mas é no campo político que se travaram os embates mais significativos, que chegaram a anunciar, poucos dias antes da intervenção policial, uma possibilidade de solução negociada para o impasse. Paralelamente a isso, existiram ideias discordantes sobre quais procedimentos judiciais deveriam ser adotados naquele momento. Enquanto a Justiça Estadual autorizava o desalojamento, dando respaldo técnico-jurídico à intervenção da Polícia Militar, a Justiça Federal despachava, mediante provocação de entidades ligadas à organização dos moradores, de modo a impedir, na prática, a remoção das casas edificadas no terreno.
O Poder Judiciário, encarado em sua unidade orgânica, enfrentou um dilema: impor a aplicação isolada de um dispositivo legal que permitiria a remoção de um punhado de famílias sem-teto, com o risco de agravamento de tensões sociais e de ampliação da crise de moradia num centro urbano economicamente importante, ou adotar uma linha interpretativa de cautela, com incentivo a uma composição política autorizada – mas não exigida expressamente – pelo ordenamento jurídico. A primeira alternativa foi a que prevaleceu.
2. A interpretação casuísta da norma
Envolvido pelo déficit de habitação nas grandes cidades, o Pinheirinho acompanhou as modificações estruturais dos bairros de São José dos Campos verificadas no curso de pelo menos cinco décadas [4]. O acampamento, localizado na Zona Sul, rapidamente se integrou às comunidades vizinhas, urbanizando-se e aumentando a expectativa de se transformar em área legalizada. Ao se deslocar para a esfera das demandas judiciais, a disputa por aquele território revelou como funciona o Poder Judiciário no Brasil, qual é a essência do direito e como se identifica o conteúdo “de classe” das leis impostas pelo Estado.
Em artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo de 29 de fevereiro de 2012, com o título “Pinheirinho: ideologia e fatos” [5], o juiz Rodrigo Capez, então assessor da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo, ao afirmar a legitimidade das decisões que culminaram com o despejo, ressaltou que “a Constituição prevê o direito à moradia e também o direito de propriedade”. Essa formulação parte da ideia de que os dois institutos, por estarem inscritos no Capítulo I do Título I da Constituição Federal, que consagra os “direitos e garantias fundamentais” e os “direitos e deveres individuais e coletivos”, ocupam o mesmo grau hierárquico no sistema normativo. A questão, todavia, é muito mais complexa. Pode-se afirmar, sem erro, que a Constituição protege, em seu artigo 5º, tanto a moradia quanto a propriedade. Acontece que o inciso XXIII, que diz que “a propriedade atenderá a sua função social”, estabelece uma restrição que não alcança o direito à moradia.
A ação de reintegração de posse que tramitou no juízo cível de São José dos Campos preservou, aparentemente, o conteúdo da lei. Mais do que isso, as decisões produzidas naquela demanda observaram uma linha doutrinária que se assenta na visão de positividade atribuída ao direito uno, estatal e racional, em cujo núcleo está a convicção de que todas as respostas se colocam explícita ou implicitamente no sistema, não sendo lícito buscá-las fora dele (Coelho, 1987). Mesmo nos marcos dessa corrente de pensamento de traços conservadores, no entanto, a existência da lei, em si mesma, não basta para solucionar conflitos.
Ainda que se argumente que os direitos à moradia e de propriedade se equivalem, como fez o juiz Capez, em algum momento o julgador, para embasar a ordem judicial favorável aos que se diziam donos do terreno do Pinheirinho, se viu na contingência de emitir um juízo de valor – ou seja, fez uma eleição impregnada de elementos subjetivos. É que, “de certo modo, tudo no direito se refere à interpretação” (Azevedo, 1989). A opção “transformadora”, aqui, seria interpretar a norma de acordo com um processo histórico que tem a sociedade como centro. Mas o despacho de reintegração, aliado à maneira como foi executado, incorporou uma escolha que ignora as restrições constitucionais ao direito de propriedade, prestigiando um formalismo cujo alcance é reduzido à “vida” documentada no processo.
A Justiça de São Paulo anunciou uma decisão técnica, amparada nos dogmas da completude, do abstracionismo e da coerência do sistema legal, “típicos do positivismo interessado em fazer da jurisdição eminentemente técnica, de um juiz acima das partes, imparcial e neutro, veículos da ‘lógica’ do poder elitizado” (Cresci Sobrinho, 1991). Ao mesmo tempo, quando confrontada com despachos da Justiça Federal, assumiu uma postura claramente política, que ignorou a formação de um conflito de competência [6] que marcava a profundidade da disputa – e impunha o adiamento da solução de mérito – para permitir a investida policial, um ato precipitado diante das tensões que cercavam a desocupação. Esse atropelo de formalidades – ou a negação da lei num ambiente de prevalência da lógica positivista – é analisado por Lyra Filho (1985): “A legislação abrange, sempre, em maior ou menor grau, direito e antidireito – isto é, direito propriamente dito, reto e correto, e negação do direito, entortado pelos interesses casuísticos e caprichos continuístas do poder estabelecido”.
Os acontecimentos do Pinheirinho constituem objeto de investigação importante, que passa pelo estudo dos detalhes jurídicos que o envolvem, mas não se limita a ele. Pelo contrário, o significado extraído dos documentos que formam os autos de falência da Selecta e da ação de reintegração de posse é político, e mostra que a propriedade privada, na estrutura de poder do Estado brasileiro, prevalece como direito irrestrito e absoluto. Esse entendimento, de traço ideológico, foi reproduzido por agentes do Poder Judiciário – primeiro, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que sustentou uma decisão baseada na interpretação literal e assistemática da lei; depois, pela Justiça Federal, que silenciou diante do fato consumado da desocupação feita à revelia dos pronunciamentos de alguns dos seus juízes.
O uso da força se deu em torno de uma ação concreta, de impacto definitivo [7], extraída de um contencioso que ainda não estava resolvido. Lembre-se que o poder de polícia, monopólio de órgãos estatais, deve ser contido pelo reconhecimento de garantias inseridas na Constituição, por meio de instrumentos normativos que funcionam como uma espécie de proteção aos destinatários das ações governamentais. Para Canotilho (1999), o advento do Estado de Direito submeteu a administração pública à lei, em razão do que o poder de polícia passou de ilimitado a limitado. É que, no Estado de Direito, o ordenamento jurídico é chamado a desempenhar três funções: i) a de instrumento da ordem e da estabilidade do grupo social (como expressão normativa do poder de governo); ii) a de aparato legislativo de limitação do poder político; e iii) a de garantia de direitos subjetivos.
Daí a constatação de que o destino do Pinheirinho, ligado a interferências de órgãos estatais diante de um fenômeno social de luta por direitos, se distanciou dos princípios doutrinários de formação do Estado Democrático de Direito, no qual o poder político, na expressão de Hannah Arendt [8], citada por Habermas (2012), “não é um potencial para a imposição de interesses próprios ou a realização de fins coletivos, nem um poder administrativo capaz de tomar decisões obrigatórias coletivamente, […] [caracterizando-se], ao invés disso, [como] uma força autorizadora que se manifesta na criação do direito legítimo e na fundação de instituições”.
3. A crise social posta de lado
Os órgãos do Poder Judiciário responsáveis pela desocupação do Pinheirinho não consideraram, em suas sentenças, o alcance social do problema que lhes foi apresentado. Num primeiro momento, optaram pela aplicação mecânica da lei para resguardar o direito de propriedade afetado pela ação dos ocupantes do terreno. Em seguida, com o acirramento da disputa na via judicial, o Tribunal Justiça de São Paulo, na defesa da sua prerrogativa de decidir, ameaçada pela perspectiva de ingresso da União no conflito, contrariou explicitamente as regras procedimentais aplicáveis ao caso. Resta saber se essa atuação foi contraditória com o caráter imparcial do processo, sustentado pela dogmática positivista, ou se apenas reproduziu técnicas comuns à práxis judiciária.
Há, de fato, uma aparente contradição entre as justificativas utilizadas na ordem de despejo e o afastamento de requisitos legais para que ela fosse cumprida. Ao menos em tese, a mesma ideia que se incorporou ao despacho liminar, de totalidade do sistema normativo, deveria ter impedido ou adiado a desocupação. A eficácia do comando judicial, com o consequente acionamento das forças repressivas para a destruição do Pinheirinho, fez com que essa lógica cedesse a um discurso de conteúdo político e ideológico bastante acentuado.
Esse tipo de paradoxo se coloca no campo da interpretação da norma jurídica, que oscila conforme as posições assumidas pelos julgadores em face do direito [9]. Para Azevedo (1989), “a questão da interpretação guarda indissociável vinculação com a ideia que se tem do direito, em certo contexto histórico-cultural, bem como do modo por que se liga essa ideia à vida, às necessidades e finalidades humanas”. No Pinheirinho, o atropelo de formalidades processuais serviu para afirmar a propriedade privada como direito absoluto. Prevaleceu, com isso, a negativa de legitimidade de questões relacionadas ao interesse coletivo ou de reforma, a partir da rejeição do seu caráter científico e da colocação do juiz como ator socialmente desengajado (Azevedo, 1989).
Sob outro ângulo, o movimento de ocupação, empenhado em afirmar a sua conquista, materializada no levantamento de residências e na formação de uma coletividade submetida a regras de controle interno rigorosas, se envolveu, também, em disputas mediadas pelo Poder Judiciário – o engajamento na via judicial se fez acompanhar de outras formas de contato com a institucionalidade, entre as quais se destacaram as reiteradas negociações com parlamentares e representantes das administrações federal, estadual e municipal. Essa alternativa ofereceu espaços, ainda que limitados, de busca da aplicação de preceitos constitucionais que reconhecem a moradia como direito fundamental.
4. A imparcialidade que nunca existiu
Os fatos que cercaram a desocupação do Pinheirinho deram à máquina judiciária uma conotação de parcialidade, exibida, principalmente, pela cúpula do Tribunal de Justiça de São Paulo. Esta, empenhada em tornar efetiva a ordem de desocupação da 6ª Vara Cível de São José dos Campos – o despacho que autorizou o uso da força militar para a execução do despejo –, ignorou a existência de decisões conflitantes proferidas pela Justiça Federal. Ao agir administrativamente em defesa do grupo que se colocava como titular do domínio da área em litígio, o Poder Judiciário praticou uma interpretação assistemática da lei, conferindo valor absoluto ao direito de propriedade.
Essa postura não impediu que os antigos moradores utilizassem a forma jurídica para preservar seus interesses, o que caracteriza “a aposta feita por vários movimentos sociais brasileiros, em estreita conexão com determinados atores da arena político- institucional, na luta ‘por dentro do Estado’ como estratégia de transformação social” (Tatagiba, 2010). Ocorre, porém, que os mecanismos de garantia de direitos coletivos propiciados pela legalidade são, ainda, muito restritos, o que funciona como ponto de contenção da eficácia das normas ou das interpretações de conteúdo minimamente progressista ou transformador, dependentes do reconhecimento de um sistema judiciário que é conservador em essência.
Os acontecimentos verificados no Pinheirinho mostram que a Justiça, em situações de conflitos coletivos, tende a se submeter a pressões econômicas e abandonar a neutralidade recomendada pelo formalismo dominante no discurso e nas decisões dos seus agentes. Em termos específicos, observa-se que: i) o debate em torno do Pinheirinho é fundamentalmente político, uma vez que as controvérsias técnico-jurídicas que o caso suscitou deveriam encontrar solução na ordem jurídica em vigor, que contém normas de proteção de direitos individuais e coletivos que, se fossem aplicadas, eliminariam a hipótese de cumprimento do despacho de reintegração de posse do terreno ocupado; e ii) o desfecho do caso Pinheirinho mostra a fragilidade institucional do Estado brasileiro, cujas forças controladoras das esferas política, social e econômica dispõem de mecanismos de persuasão que impedem ou dificultam a efetividade de direitos (individuais e coletivos) incorporados pela Constituição Federal de 1988.
5. Um breve recorte teórico
As manobras militares que resultaram na desocupação do Pinheirinho foram respaldadas não apenas por uma sucessão de ordens administrativas e judiciais, mas, muito além disso, pelo engajamento político dos seus prolatores, que assumiram a tutela dos interesses dos supostos proprietários do terreno. Essa postura contrariou o discurso de neutralidade que costuma acompanhar ações desse tipo, ensaiando uma resposta previsível à pergunta: a serviço de quem funcionam os órgãos da Justiça?
Para fundamentar suas decisões, as autoridades judiciárias utilizaram a dogmática jurídica, corrente apoiada na teoria pura do direito, do filósofo austríaco Hans Kelsen, que pretende “garantir um conhecimento […] dirigido do direito e [a] excluir desse conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto” (Kelsen, 1962). Tem-se, a partir daí, um mecanismo de produção de comandos fundados na interpretação isolada das leis. O pensamento do jurista, então, passa a ser dogmático “não porque se apegue a dogmas, mas porque deriva da normatividade das fontes formais do direito, que a teoria tradicional enumera como legislação, direito costumeiro e jurisprudência […]” (Coelho, 1981).
Por conceber uma realidade em que o direito se impõe como manifestação exclusivamente estatal, o positivismo jurídico esbarra em limites intransponíveis quando está diante de conflitos não alcançados pela previsão da norma – mesmo porque ele traduz uma ideia que não admite soluções afastadas da legalidade. Esse mecanismo serve para estabilizar as expectativas em torno da decisão judicial, sem compromisso com a extração da sua legitimidade. Os principais teóricos dessa corrente, Kelsen e H. L. A. Hart, buscaram, conforme Habermas (2012), o sentido normativo das proposições jurídicas e a construção de um ordenamento capaz de garantir a consistência das decisões ligadas a ele, o que tornaria o direito independente da política. Por isso, “a interpretação positivista da prática de decisão judicial faz com que, no final das contas, a garantia da segurança jurídica eclipse a garantia da correção” (Habermas, 2012).
O Poder Judiciário ocupou posição nuclear e decisiva no caso Pinheirinho. Confrontados com uma situação de instabilidade social, seus representantes – ou a parte majoritária dos agentes públicos envolvidos no processo – decretaram a primazia do direito de propriedade, individualmente considerado, para reprimir a organização coletiva dos moradores desalojados, que reivindicavam o direito elementar à moradia. O discurso inspirador das suas decisões adotou um enquadramento positivista, no qual as normas – ou os padrões de conduta ditados pelo poder social, com ameaça de sanções organizadas (medidas repressivas, expressamente indicadas, com órgãos e procedimentos especiais de aplicação) – significam a completude do direito (Lyra Filho, 1985).
A contradição entre o tecnicismo do processo e a parcialidade exibida pelos responsáveis pela ordem de desocupação não chega a surpreender. Pelo contrário, tudo é decorrência lógica do sistema de aplicação da lei, no qual a propriedade privada se mantém, de fato, como garantia individual absoluta. O direito, em sentido amplo, representaria um elemento da sua proteção, funcionando para manter desigualdades políticas, sociais e econômicas. É que o discurso jurídico, destacado por Faria (1986), oculta as relações sociais concretas e privilegia a formalidade da ordem positiva e a estrutura burocrática da Justiça, com seus rituais processualísticos e o culto à intangibilidade dos juízes, encarados como intérpretes da vontade coletiva expressa na norma.
Pretende-se, com esse esquema, evitar indagações sobre o teor da lei e sobre a sua aplicação mecânica e assistemática, sem a consideração de que ela (a lei) “sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção” (Lyra Filho, 1985).
Para os teóricos marxistas, o direito burguês, ao estabelecer a igualdade formal entre os agentes de produção e ao tratar os indivíduos como sujeitos de obrigações e garantias, direciona o conceito de segurança jurídica à satisfação das pautas da classe economicamente dominante, de modo a estabilizar as relações de exploração (Saes, 1998). Esse tipo de apontamento é indicativo de como a obra de Marx e Engels contribuiu para a elaboração das teorias críticas, que buscam maior aproximação entre direito e sociedade [11]. A interpretação dada por essas correntes de pensamento tende, no fim, a denunciar a afetação ideológica da Justiça, compreendida como “Justiça de classe”, e a ilegitimidade de processos como o que levou à expulsão dos antigos moradores do Pinheirinho.
A questão das ocupações urbanas e do déficit habitacional no Brasil é tema de uma literatura dedicada a esmiuçar a realidade vivida por trabalhadores sem-teto em grandes concentrações urbanas, especialmente nas décadas de 1970 e 1980 [12]. Essa literatura também se aplica à análise dos fatos que marcaram os conflitos jurídicos e sociais registrados em São José dos Campos. Da mesma forma, o estudo de caso exige, para a compreensão do alcance das medidas que os agentes do Estado adotaram antes, durante e depois do despejo, a abordagem do direito de propriedade (e sua função social) em face do direito à moradia, os dois inscritos no título dos direitos e garantias fundamentais da Constituição de 1988 [13].
O Pinheirinho buscou, desde o início do acampamento, em 2004, apoios externos para a sua consolidação, além de acionar o Poder Judiciário com relativa frequência. Essa estratégia pretendeu efetivar uma garantia constitucional – a moradia –, e não, necessariamente, obter conquistas novas. A quantidade de demandas, incidentes processuais, pedidos administrativos, denúncias e reclamações a organismos de proteção dos direitos humanos, nacionais e internacionais, na tentativa de preservar a integridade da área ocupada é significativa, e revela o impacto do engajamento dos usuários da Justiça numa espécie de “mobilização do direito” (McCann, 2010).
Houve, em todas as etapas da disputa pela posse da terra, um plano destinado a pressionar o Estado a reconhecer o fato jurídico da ocupação, com o acionamento de uma complexa rede de normas e ritos processuais. Estavam em curso, entre as lideranças populares, cálculos sobre os espaços deixados pela lei para interpretações de caráter até certo ponto transformador. Essa agenda, conforme Maciel (2011), é bastante contemporânea, e tem sido abordada por setores influentes da literatura norte- americana, que dedicam esforços para compreender como os tribunais se comportam quando postos diante de situações de conflito social. Em contextos assim, organizações como a que levou à formação do Pinheirinho estabelecem uma relação com o Estado (Judiciário, governo e partidos políticos) que rompe o pressuposto de “oposição natural, radical e imutável entre os campos”, de tal modo que “a própria relação entre sociedade civil e sociedade política se constitui como questão empírica e teórica a ser enfrentada” (Tatagiba, 2010).
O estudo da desocupação, como se vê, reúne várias correntes teóricas que se contrapõem ao dogmatismo jurídico prevalente no discurso e nas decisões majoritárias dos membros que integram o aparato da Justiça. São teorias que servem para aprofundar a compreensão dos fatos e respaldar as análises sobre as circunstâncias em que se deu a trágica destruição promovida por forças policiais comandadas pelo chefe do Poder Judiciário do Estado economicamente mais importante do País.
6. O conteúdo das decisões judiciais
O Pinheirinho desencadeou uma grande e intrincada batalha judicial, cujos procedimentos vêm acompanhados de questões incidentais, manobras mais ou menos legítimas e interferências políticas. O estudo técnico-jurídico dos vários processos que cuidam do assunto é fundamental para vislumbrar como o Poder Judiciário atuou no caso. Basicamente, as ações se distribuíram em três partes: a falência da Selecta Comércio e Indústria S.A., na 18ª Vara Cível de São Paulo (Capital), a reintegração de posse, na 6ª Vara Cível de São José dos Campos, e o conflito de competência estabelecido entre a Justiça Federal e a Justiça Estadual de São Paulo (a União foi acionada pela organização do movimento com base no pressuposto de que teria interesse em regularizar a ocupação). Esses feitos se interligam e revelam aspectos peculiares das principais decisões, que vão desde a concessão de liminar de reintegração de posse pelo juiz da falência – que não era a autoridade competente para isso – ao restabelecimento, por ato “de ofício” da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, dos efeitos de uma ordem de despejo que estava revogada.
Para a compreensão das circunstâncias em que ocorreu o despejo, foram examinadas as manifestações judiciais mais importantes relacionadas ao caso [14]. Trata-se de despachos ordenadores dos processos, liminares e acórdãos que deram resposta a diversas questões suscitadas pelas partes.
6.1. As primeiras polêmicas
Em 2004, a Selecta Comércio e Indústria S.A., qualificando-se como proprietária do imóvel onde se localizava o Pinheirinho, solicitou uma liminar de reintegração de posse na 18ª Vara Cível de São Paulo, onde tramitava o seu pedido de falência. O encaminhamento se baseou no princípio de que todas as questões relacionadas à massa falida deveriam ser submetidas a um único juízo – o juízo universal da falência –, já que o patrimônio da empresa se encontrava indisponível. Acontece, porém, que essa regra não se aplica às hipóteses de ações possessórias, que devem ser julgadas no local do imóvel. Ainda assim, um despacho de deferimento foi dado pelo juiz Beethoven Fiffoni Ferreira, que era o titular daquele cartório.
Em São José dos Campos, onde a determinação de origem deveria ter sido executada por carta precatória [15], o juiz Marcius Geraldo Porto de Oliveira, da 6ª Vara Cível, antecipou vários problemas que poderiam ocorrer se a Justiça não adotasse nenhuma providência urgente para evitar o agravamento da crise social que se anunciava. No dia 21 de outubro de 2004, ele determinou que a liminar ficasse suspensa até que as medidas políticas que apontou fossem realizadas [16]. Como era de se esperar, a massa falida não se conformou com esse despacho. Ingressou com agravo de instrumento no Tribunal de Justiça, sob a alegação de que a liminar da 18ª Vara Cível de São Paulo deveria ser restabelecida e cumprida [17]. Obteve a resposta que queria. Acontece, porém, que decisões subsequentes, proferidas em grau de mandado de segurança e recursos a tribunais superiores, decretaram a competência da 6ª Vara Cível de São José dos Campos para julgar a causa, o que significou a suspensão formal do despejo que havia sido ordenado pelo juízo da falência. Naquele momento, mais de mil famílias moravam no Pinheirinho.
6.2. As manobras feitas na 6ª Vara Cível de São José dos Campos
Com a definição da 6ª Vara Cível de São José dos Campos como juízo competente para apreciar a demanda possessória, a liminar que havia sido dada pelo juiz Beethoven, da 18ª Vara Cível de São Paulo, perdeu eficácia. O processo, então, deveria seguir seu curso ordinário, com a realização de audiências, a produção de provas e a prolação de sentença de mérito. Esse caminho chegou a ser apontado pela própria massa falida, numa petição protocolada no dia 19 de abril de 2011. Ali, a suposta proprietária do terreno ocupado observou que “a medida liminar deferida em favor da autora não mais subsiste em razão do provimento do recurso especial interposto por José Nivaldo de Melo [um dos antigos moradores do Pinheirinho] consoante […] decisão monocrática [18] […]”. Em seguida, veio o seu pedido: “[…] prosseguimento [da] ação mediante a prolação de despacho saneador, nos termos do artigo 331, § 2º, combinado com o artigo 931, ambos do Código de Processo Civil”.
A decisão mencionada pela massa falida consta dos autos de recurso especial nº 967.823-SP (2007/0160656-6), nos quais o relator, ministro João Otávio de Noronha, do STJ, reconheceu a “inadmissibilidade do agravo de instrumento [ajuizado pela massa falida, que restabeleceu a liminar de reintegração de posse oriunda do juízo da falência] e, consequentemente dos julgados nele proferidos”. Não parecia haver dúvida de que à 6ª Vara Cível de São José dos Campos cabia, apenas, ordenar o procedimento com base nas provocações formais das partes. Ocorre que, a partir desse ponto, o caso ganhou uma conotação política mais evidente.
No dia 1º de junho de 2011, a juíza Márcia Faria Mathey Loureiro, que havia assumido a 6ª Vara Cível de São José dos Campos, ratificou, de ofício, a liminar que havia sido concedida pelo juízo da falência, determinando “a expedição do competente mandado de reintegração da autora na posse da área objeto da ação […]”. Depois, em novo despacho, de 17 de outubro de 2011, corrigiu o primeiro, mas manteve o comando original, com a garantia de devolução da gleba à massa falida. O que se deu, na prática, foi a restituição, em 2011, dos efeitos de uma liminar que havia sido proferida em 2004, numa realidade completamente diferente. Uma coisa seria desalojar pouco mais de trezentas famílias de um acampamento estruturado precariamente (essa era a situação em 2004). Outra, bem distinta, foi expulsar mais de sete mil pessoas – ou 1800 famílias – de uma área com características consolidadas de bairro (essa era a situação em 2011/2012). A ficção jurídica colocou todos esses elementos num só e único conceito, o de “esbulho”, sem explicar por que, afinal, a ordem de despejo foi restaurada.
6.3. As intervenções da Justiça Federal
Com a confirmação de que seria a juíza Márcia Faria Mathey Loureiro a encarregada de julgar a ação de reintegração de posse, os moradores do Pinheirinho se empenharam em transferir a causa para o âmbito federal. Isso porque os órgãos estaduais, com a chancela da cúpula do Tribunal de Justiça, já haviam demonstrado afinidade de interesses com a massa falida. Quando a ordem de desocupação emitida pela 6ª Vara Cível de São José dos Campos foi executada, em janeiro de 2012, esse objetivo estava parcialmente atingido. Existia, na época, uma determinação da Justiça Federal para que forças policiais comandadas pelo Governo do Estado e pelo Município de São José dos Campos “se abstivessem de intervir” no conflito. Ao mesmo tempo, membros do Poder Judiciário de São Paulo sustentavam que o despacho da juíza Márcia somente poderia ser revogado por decisão de instâncias superiores, como o STJ ou o STF. Estabeleceu-se um “conflito de competência” que seria oficializado somente quando estava em curso a desocupação.
Uma das manifestações importantes nessa fase foi feita pela juíza Roberta Monza Chiari, plantonista da Justiça Federal em São José dos Campos. Provocada pela defesa dos sem-teto, ela constatou haver “indícios de interesse da União Federal na solução da questão posta em lide, de modo a atrair a competência […] [da Justiça Federal] para analisar o pedido”. Em seguida, suspendeu liminarmente a execução do despejo, uma ameaça que atormentava as lideranças do movimento desde o dia 1º de junho de 2011, data do despacho da juíza Loureiro que “ressuscitou”, de ofício, a liminar concedida pela 18ª Vara Cível de São Paulo em 2004.
O pronunciamento da juíza Chiari, assinado na madrugada de 17 de janeiro de 2012, evitou uma tragédia de proporções incalculáveis, com riscos objetivos de mortes de civis e militares – naquele dia, os habitantes da ocupação estavam preparados para resistir, com armas improvisadas [19], à investida policial. Mas o caso teria desdobramentos, ainda. Depois de ser derrubada pelo juiz titular da 3ª Vara Federal, Carlos Alberto Antonio Júnior, a orientação favorável aos moradores foi reexaminada pela 5ª Turma do Tribunal Federal da 3ª Região (TRF-3). Lá, um agravo de instrumento relatado pelo desembargador federal Antonio Cedenho recompôs a eficácia da liminar obtida pelo movimento. Com isso, as forças policiais convocadas para expulsar os ocupantes da área do Pinheirinho, com apoio da Presidência do Tribunal de Justiça, estavam proibidas de agir. Essa era a situação vigente em 22 de janeiro de 2012 – o acórdão do TRF-3 havia sido proferido dois dias antes.
6.4. Ordem administrativa e conflito de competência
No sábado, 21 de janeiro de 2012, o Pinheirinho foi palco de comemorações. Um acordo que suspendia a reintegração de posse havia sido formalizado na 18ª Vara Cível de São Paulo (juízo da falência da Selecta), reforçando a decisão do TRF-3 que declarava que os batalhões policiais convocados pelo Estado e pela Prefeitura de São José dos Campos estavam proibidos de avançar. Por conta dessas “conquistas”, a assembleia daquele dia, no pátio central da ocupação, foi pautada por discursos expansivos de parlamentares, advogados e outras lideranças políticas. Todos eles indicavam que o caminho para a regularização da área estava pavimentado. O arsenal de defesa do Pinheirinho, então, não seria mais necessário. Os moradores se desarmaram.
Longe desse clima festivo, autoridades do Estado se preparavam para realizar a operação policial, independentemente dos acordos existentes ou da posição da Justiça Federal. Envolveram-se nessa manobra várias autoridades que ocupavam cargos importantes na época: o presidente do Tribunal de Justiça, Ivan Ricardo Garisio Sartori, o juiz titular da 18ª Vara Cível de São Paulo, Luiz Beethoven Fiffoni Ferreira, a juíza da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, Márcia Faria Mathey Loureiro, o governador Geraldo Alckmin, no comando da Polícia Militar, e o prefeito de São José dos Campos, Eduardo Cury. O objetivo era apresentar uma “surpresa” aos sem-teto, cuja capacidade de resistência estava anulada.
Articulações entre Polícia Militar do Estado, Poder Judiciário e Prefeitura de São José dos Campos definiram todos os aspectos da desarticulação (ou destruição) do Pinheirinho. Os moradores foram surpreendidos durante a madrugada. Estavam sem defesa, incapacitados de reagir ao avanço dos dois mil soldados que os retiraram de suas casas. As forças militares usaram uma tática de saturação. Com o cerco da área, os ocupantes ficaram sem nenhuma rota de fuga. Não lhes restou alternativa a não ser abandonar a zona atingida. Com a rede de comunicação regional interrompida, todos os celulares emudeceram. O local ficou completamente isolado. A partir daí, a violência se espalhou. Concluída a operação, coube ao Tribunal de Justiça, pelo juiz auxiliar Rodrigo Capez, fazer a entrega solene da gleba desocupada a um preposto da massa falida.
Sobre o conflito de competência que se anunciava desde que as lideranças dos ocupantes buscaram transferir a causa para a Justiça Federal, a controvérsia chegou ao STJ quando a desocupação já estava sendo executada pelas tropas militares. Naquele dia 22 de janeiro de 2012, uma intensa movimentação processual mobilizou dois campos distintos: a União Federal, que estava engajada nas tentativas de negociação entre as partes, levadas a efeito no juízo da falência (18ª Vara Cível de São Paulo), e o Ministério Público Federal. Os dois órgãos ingressaram, ao mesmo tempo, com conflitos de competência, que foram analisados, em caráter liminar, pelo ministro Ari Pargendler, que ocupava a Presidência do STJ. Imediatamente, o entendimento foi pela efetividade da ordem expedida pela Justiça Estadual, que teria a prerrogativa de decidir. Algum tempo depois, no dia 22 de maio de 2013, a Segunda Seção do STJ deu contorno definitivo a essa interpretação, conforme acórdão relatado pelo ministro Antonio Carlos Ferreira.
Houve, nitidamente, um desencontro temporal, uma vez que o STJ se manifestou sobre um fato que estava consumado antes da formalização do conflito de competência. Quando os moradores do Pinheirinho foram expulsos, existiam dois comandos opostos: i) o da Justiça paulista, que ordenava o cumprimento da liminar de reintegração de posse; e ii) o da Justiça Federal, que proibia o ingresso da força armada no acampamento. De concreto, a direção do Tribunal de São Paulo impôs a sua vontade, unilateralmente, para em seguida obter a “legitimação” da violência estatal que ela mesma autorizou.
6.5. As intenções por trás das sentenças judiciais
Uma análise preliminar das decisões que envolvem o Pinheirinho poderia sugerir que os órgãos da Justiça tendem, invariavelmente, a beneficiar os proprietários individuais, colocando em plano secundário a luta pelo direito à moradia. Ou que os antigos sem-teto não encontraram espaço nem condições adequadas para uma disputa nos marcos do aparelho de Estado. Tais conclusões, que são perfeitamente plausíveis, não se extraem da leitura simples e isolada dos números. Estes revelam, sem dúvida, uma proximidade entre Estado e poder econômico, mas são insuficientes para apontar o conteúdo ideológico das sentenças judiciais. Vários fatores, além de uma espécie de senso comum que tem a propriedade como direito absoluto, podem ter formado o quadro de desequilíbrio que levou à desocupação violenta, chancelada pelo Poder Judiciário. Por mais que a convicção particular dos julgadores tenha pesado em seus pronunciamentos, elaborados, no mais das vezes, com base numa plataforma liberal que encara o direito sob o prisma da igualdade entre as partes, nem todas as manifestações se orientaram por esse prisma ideológico. Muitas delas se esforçaram por aplicar as técnicas processuais recomendadas pela legislação, sem favorecimento a ninguém.
Talvez o indicador mais sensível dos interesses “de classe” protegidos pela Justiça venha da constatação de que, entre os despachos e sentenças analisados, somente um tenha mencionado um dado fundamental em conflitos pela posse da terra: a função social da propriedade [20]. Para piorar, nenhuma decisão apurou a regularidade do título de domínio apresentado pela massa falida – segundo os antigos moradores do Pinheirinho, esse título foi obtido à custa de práticas ilegais, como a “grilagem” [21]. As evidências de irregularidades nos assentos documentais da gleba ocupada sempre foram grandes, mas não mereceram nenhuma atenção do Poder Judiciário. Prevaleceu a tendência de reconhecimento pleno da documentação formal da propriedade privada, independentemente da sua origem.
Além do mais, existiu, ao que tudo indica, uma articulação entre a cúpula do Tribunal de Justiça de São Paulo e o juízo da 6ª Vara Cível de São José dos Campos para desmobilizar o Pinheirinho. As razões dessa manobra não se tornaram explícitas – e nem poderia ser de outro modo – nos julgamentos. Mesmo assim, os indícios de parcialidade se tornaram mais fortes a partir do despacho dado pela juíza Márcia Faria Mathey Loureiro, em julho de 2011, que restabeleceu, de ofício, a ordem de reintegração de posse emitida em 2004 pela 18ª Vara Cível da Capital. Os motivos podem estar vinculados ao cenário político da cidade. A desocupação era uma das prioridades do grupo que ocupava a Prefeitura, e a participação técnica do Poder Judiciário foi determinante para que se chegasse a tal objetivo. O discurso político, então, se incorporou ao jurídico, apesar da proclamada “equidistância” deste, numa retórica apoiada no papel mediador atribuído aos magistrados. Enquanto a Justiça dava respaldo às forças dominantes no Executivo municipal, o Tribunal de São Paulo se movimentava para garantir o controle do processo de falência, colocando-se em posição de “defesa” de uma das partes, a Selecta Comércio e Indústria S.A. Isso tudo está nos recursos e nas movimentações processuais apresentados em nome das partes.
7. Considerações finais
A centralidade do Poder Judiciário no caso Pinheirinho constitui o fator de análise principal deste artigo. Abstraído o caráter hermético – e, também por isso, ideológico – da linguagem utilizada nas sentenças e nos despachos que levaram à desocupação, elegeu-se como tarefa prioritária a identificação dos interesses e das posições políticas que marcaram o processo de reintegração de posse, em particular em suas fases cumpridas na cidade de São José dos Campos. A primeira conclusão propiciada por esse raciocínio é bastante próxima do senso comum que atribui à Justiça brasileira um conservadorismo estrutural, reforçando a ideia de que os agentes encarregados de julgar “têm lado”: o lado dos interesses do capital e seus agentes, da concentração da riqueza e da negação de direitos coletivos.
No universo das leis e dos tribunais, tudo se passaria como se o campo do direito fosse efetivamente autônomo, neutro e desligado da exterioridade social. Isso daria às sentenças judiciais o caráter de objetividade, coerência e racionalidade. Tais predicados, todavia, nunca chegaram a fazer parte do mundo real, até mesmo porque, segundo Andrade (1996), as práticas jurídicas ainda dominantes do País estão presas a conceitos do século XIX, ligados à escola da exegese, que impõe ao julgador a tarefa de “cumprir a lei e ponto”. Tem-se, aí, uma simplificação normativista que “reduz o legítimo ao legal, afirmando que o poder se torna legítimo quando sustentado por qualquer legalidade” (Lafer, 1978). Nessa linha de interpretação, temas de natureza social, como as desigualdades, a concentração de renda e a pobreza, se colocam na categoria dos fatos juridicamente irrelevantes. É que “até mesmo o positivismo jurídico, de Hans Kelsen, e a sua revisão sociológica, efetuada por Hart, onde se admitem espaços de não-direito, são teorias muito avançadas para a quase totalidade dos juízes do Brasil” (Andrade, 1996).
O Pinheirinho pôs em xeque a tese segundo a qual o direito se coloca à margem de fatores sociais, políticos e econômicos. Esse raciocínio contém a ilusão de que o aparelho estatal, pelos seus órgãos dotados de jurisdição, produz comandos e aplica sanções conforme a própria sociedade autoriza ou reclama. Ao enfrentar o tema da decisão judicial, Hart (1984) enxergou nos tribunais superiores as instâncias de definição do direito por excelência, de tal modo que a questão da sua (da decisão judicial) falibilidade teria pouco ou nenhum reflexo na preservação do equilíbrio do sistema. O problema surge quando os tribunais fixam, no mesmo plano temporal, regras diferentes ou conflitantes para uma situação comum, subvertendo o caráter estático, fechado e hierarquizado do edifício normativo assim concebido.
Não foi por acaso, consequentemente, que a defesa dos moradores do Pinheirinho deu prioridade à indicação de quem, em cada uma das fases da demanda, estava à frente do procedimento. A consideração dos preconceitos sociais que envolvem as ocupações de terra no País, entre outras intenções não declaradas em muitas das sentenças que levaram à ordem de despejo, foi importante para o desenho da estratégia jurídica adotada.
Os conflitos que marcaram a desocupação do Pinheirinho traduzem uma questão de fundo ideológico. Na prática, existiriam contradições entre as respostas dadas pelo aparelho judicial, identificado formalmente como órgão mediador de conflitos, titular de uma função “moderadora” e “neutra”, e os compromissos de seus agentes com a preservação do sistema. Numa abordagem estritamente lógica, esse mesmo sistema impõe ao julgador um comportamento padrão, limitado pela norma estatal. Segundo Azevedo (1989), trata-se de “um discurso jurídico ideológico, que termina por desembocar no formalismo lógico-jurídico, cuja premissa fundamental consiste justamente na pretensão de conhecimento do direito separado de toda e qualquer ideologia”.
A interferência do Poder Judiciário em aspectos políticos da vida em sociedade, seja provocada pela mobilização de grupos organizados, seja pelo impulso “conservador” de proteção de direitos de ordem privada, como a propriedade, não exclui a verificação de brechas no ordenamento jurídico e nas técnicas de interpretação da lei, de modo a conferir à ação dos chamados operadores do direito um aspecto transformador da realidade. Trata-se, aqui, de ultrapassar a identificação entre direito e lei, própria da dogmática positivista, e de estabelecer pontos de contato entre a ação coletiva e a produção e a aplicação de normas.
O mito da neutralidade aplicado à função jurisdicional do Estado tem a pretensão de elevar o direito ao plano da sacralidade, fazendo-o de instrumento garantidor da paz – ou, mais detalhadamente, da “paz do bem-estar social, a qual consiste não apenas na manutenção da vida, mas da vida mais agradável possível” (Ferraz Jr., 1984). Foi essa visão idealista, que ignora o pressuposto de que “todo o direito é ideológico, porque na sua reivindicação desconhece sempre seu condicionamento social e histórico” (Fetscher, 1970), que serviu de apoio à expulsão de milhares de habitantes de uma área urbana consolidada como bairro popular, com a destruição completa de suas casas, em favor do direito de propriedade – uma garantia constitucional que não se coloca, em nenhuma hipótese valorativa possível, acima da garantia constitucional da moradia.
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