A esquerda brasileira e a síndrome de Cotard

Luis Felipe Miguel*, de Brasília, DF

A Síndrome de Cotard pode estar ligada a danos no cérebro causados por traumas físicos (Foto: Jesus Bermudez-Ramirez)

Vendo um seriado médico, fui apresentado à síndrome de Cotard, também chamada de “síndrome do cadáver ambulante”. Um distúrbio psicológico bizarro, que faz com que a pessoa ache que já está morta.

Não sou psiquiatra, longe disso, mas vejo sintomas na esquerda brasileira.

É o discurso que justifica que se ceda tudo, sempre, já de partida, porque a esquerda não tem capacidade de exigir nada, de impor nada, de negociar nada, de resistir a nada.

Está morta, enfim.

É o tipo de profecia que se auto-realiza. Uma esquerda que não investe na mobilização de sua base social, que abre mão de seu próprio discurso, que entrega os pontos antes de qualquer batalha, que topa tudo, se não está morta, está moribunda.

A esquerda brasileira está enfraquecida? Está. Enfraqueceu por sua acomodação excessiva à institucionalidade, pela crença deliberada nas ilusões de apaziguamento do conflito que ela mesma vendia. E foi enfraquecida pelos muitos golpes que tomou, não só da extrema-direita como também de seus – dela, da esquerda – parceiros de ontem e, dizem, também de amanhã, do assim chamado “centro democrático”.

Mas morta não está. Mantém organizações importante, incluindo partidos e movimentos sociais, e vê que seu projeto tem potencial para voltar a empolgar a população.

Precisa parar de agir como se estivesse.

Mas fica difícil discutir qual a melhor estratégia quando, diante de qualquer argumento, as respostas são “Lula sabe mais” (a versão à gauche dos gritos de “mito! mito!”) ou “então vem fazer a revolução socialista” (que, por sua vez, é a versão do “vai pra Cuba” usada por esta esquerda).

Ninguém está falando de fazer a revolução socialista. Invocá-la, nestas circunstâncias, é um sintoma da síndrome de Cotard. Afinal, para um morto, tudo é impossível.

Não há muita dúvida de que o próximo governo, diante de um país destruído e de um cenário político de enorme tensão, não poderá avançar muito. Se conseguir voltar a colocar comida na mesa de milhões de brasileiros que hoje passam fome, já será uma grande vitória.

A questão é outra. É que o preço a pagar não pode ser o bloqueio de qualquer avanço ulterior.

E, sobretudo, que o preço a pagar não seja permanecer eternamente sob o risco de um novo retrocesso, a qualquer momento em que nossa classe dominante julgue que não quer mais brincar o jogo da democracia.

Um meme que circula por aí compara Lula à vacina. Depois das “doses” de 2002 e 2006, seria necessário um reforço em 2022.

Achei o símile interessante. Porque, se é assim, temos que concordar que as doses de 2002 e 2006 (assim como de 2010 e 2014, convém não esquecer) não nos protegeram da doença.

Afinal, o que tivemos de 2016 para cá não foi uma gripezinha. Foi um tsunami de violência, de regressão, de liquidação do país e do povo.

Se é para a dose de reforço nos proteger, não adianta repetir a mesma receita. Tem que mudar a fórmula, apostando mais no trabalho para mudar a correlação de forças – fortalecendo o campo popular, enfrentando e desfazendo os vetos dos grupos dominantes.

*Professor da UnB, coordenador do Demodê – Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades
As vacinas contra a COVID-19 passam por vários testes de segurança e eficácia e são, então, monitoradas com atenção.
Fonte: Organização Mundial da Saúde
Informações sobre vacinas
*Professor da UnB, coordenador do Demodê – Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades