Pular para o conteúdo
BRASIL

Máquina de guerra e a barbárie maranhense

Maranhão lidera o ranking de assassinatos no campo e de devastação do Cerrado

Luiz Eduardo Neves dos Santos* e Saulo Barros da Costa**, de São Luís, MA
Reprodução/oimparcial.com.br

Desmatamento no Cerrado maranhense.

A extração e o saque de recursos naturais pelas máquinas de guerra caminham de mãos dadas com tentativas brutais para imobilizar e fixar espacialmente categorias inteiras de pessoas ou, paradoxalmente, para soltá-las, forçando-as a se disseminar por grandes áreas que excedem fronteiras”
Achille Mbembe em Necropolítica, N-1 Edições, 2018, p. 58.

Máquina de Guerra é um conceito criado pelos filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari no volume 5 da obra Mil Platôs, publicada pela primeira vez em 1980. O conceito é complexo, ele não tem a ver necessariamente com o poder bélico estatal, pois se fragmenta diante do Estado, foge dele, se desterritorializa para se reterritorializar novamente [1] e causa fissuras nas organizações socais do Estado. Por outro lado, como já constatou o pensador camaronês Achille Mbembe, o Estado pode transformar-se em máquina de guerra [2]. Será que atualmente podemos nos referir ao Brasil e, mais especificamente, ao Maranhão como máquinas de guerra?

Para responder a esse questionamento é preciso deixar claro que o poder estatal, enquanto máquina de guerra, se expressa através da barbárie e da violência sem precedentes, seja ela simbólica ou concreta. Isto inclui a dominação de um sistema discursivo a fim de amedrontar as massas, mexendo com suas crenças e emoções, despertando racismos, misoginia e homofobia, abrange ainda o incentivo do extermínio de populações e a destruição de biomas, a criação de condições necessárias para que haja o saque dos recursos naturais valiosos e a entrega do patrimônio público aos interesses de mercado. Deleuze e Guattari, em outra obra, O Anti-Édipo, já se referiam ao déspota e sua paranóia, capaz de mobilizar novos grupos perversos, espalhando sua glória e impondo seu poder [3]. Este déspota – também chamado de fascista – ajuda a criar o clima de horror e barbárie em que vive o Brasil e o Maranhão hoje, mesmo dentro de um alardeado sistema democrático, que tem no ódio e no ressentimento, duas de suas principais manifestações.

A guinada brasileira rumo à extrema-direita e o advento da pandemia, ainda em curso, tem nos mostrado, com uma grande riqueza de detalhes, do que a máquina de guerra estatal é capaz. Amparada, nas palavras de Milton Santos, pela violência da informação e na tirania do dinheiro [4], ela está a serviço da ditadura do capital e as suas formas de violência são variadas, vão desde a criação de dispositivos legais para facilitar o acesso às armas de fogo para certos grupos sociais, disseminação em massa de informações que põem em dúvida a eficácia das vacinas contra a COVID-19, destinação de bilhões de reais, via orçamento secreto, à parlamentares corruptos em troca de apoios espúrios, passando pela devastação ambiental para atender interesses do latifúndio e da monocultura, até chegar na violência extrema de chacinas em favelas por policiais e assassinatos de camponeses, indígenas e quilombolas pela disputa do direito à terra.

O Maranhão é um dos territórios em que a barbárie oriunda da máquina de guerra tem se alastrado de forma bastante veloz, já que aqui existe – não somente aqui, mas fortemente aqui – há séculos condições para a reprodução de perversidades. Nestas bandas ainda predomina a intensa simbiose entre o político e o econômico, sendo um lugar dos políticos-empresários e dos empresários-políticos, onde imperam relações clientelistas, convênios suspeitos e multimilionários entre poderes, superfaturamentos, propinas, indicações para cargos em troca de favores e o patrimonialismo, onde se confunde o público com o privado. Não por acaso, o estado tem ocupado nas últimas décadas a pior ou as piores posições no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano – IDH.

Do ponto de vista geográfico e socioespacial, o Maranhão – com seus  217 (duzentos e dezessete) municípios e mais de 7 (sete) milhões de habitantes – se destaca por ser um Estado de grande extensão territorial, com diversidade paisagística e de biomas, clima úmido e semi-úmido, rios caudalosos, com o litoral de maior extensão do Brasil, levando-se em consideração suas reentrâncias. 

Há também grandes vazios demográficos, terras ociosas, fundos territoriais, ou seja, condições para a fixação de pessoas no campo, mas a realidade é outra, a diáspora maranhense é conhecida, centenas de milhares de famílias do campo foram ou expropriadas de suas terras ou assassinadas por jagunços e pistoleiros, principalmente ao longo dos últimos cinquenta anos, momento da promulgação da Lei Estadual nº 2.979 de 1969, no governo de José Sarney, que sob o discurso ideológico da modernização, “determinava a venda de terras devolutas do interior do Estado a grupos de fora do Maranhão sem licitação e a preços módicos” [5]. Destaque para a atual proposta de mudança na Lei de Terras, com esforço concentrado do Instituto de Terras do Maranhão (ITERMA) – órgão do Governo do Estado – que prevê desapropriação de territórios quilombolas no Artigo 30 e legalização de compra de terras por estrangeiros, no Artigo 44, ou seja, configurando mais um duro golpe aos moradores ancestrais dos territórios maranhenses.

 O impacto desta legislação foi o aumento da concentração de terras no Estado, da grilagem, da migração para grandes metrópoles e para o vizinho Pará por conta de grandes projetos, a proliferação das relações precárias de trabalho no campo e mais recentemente a consolidação de enclaves modernos para a plantação de soja e eucalipto, já que o território estadual faz parte do MATOPIBA, uma região composta por Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, uma área do tamanho do Japão e que abrange 337 municípios. Um território de savana que vem sendo utilizado para os objetivos do agronegócio brasileiro e para a reprodução ampliada do Capital, sobretudo do ramo sojicultor, o que tem gerado conflitos e mortes no campo e a devastação indiscriminada do cerrado, bioma que, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) [6], teve 1.278,66 km² destruídos no Estado entre agosto de 2020 e julho de 2021, 15% de toda devastação nativa de cerrado no Brasil para o período, ocupando o triste 1º lugar no ranking de desmatamento no país, algo incomodamente silenciado pelo chefe do Executivo Estadual Flávio Dino, diz fazer parte de um governo progressista, preocupado com questões.ambientais e sociais.

Na outra esteira de avanço da barbárie, disfarçada de política de desenvolvimento, se encontra a instalação do Terminal Portuário de Alcântara, na lha do Cajual, território quilombola, com início de operação real previsto para 2024. O projeto prevê a instalação de um porto e um terminal ferroviário para dar uma vazão ainda maior às commodities do agronegócio e da mineração, potencializando os efeitos do MATOPIBA e do Corredor Carajás, que historicamente tem sangrado a natureza e as populações do entorno do corredor, atingindo 200 milhões de toneladas de minério e 40 milhões de toneladas de produtos oriundos do agronegócio. Este empreendimento não se resume a Ilha do Cajual, mas mira também as calhas das bacias dos rios Pindaré, Mearim e Itapecuru, já ameaçadas e atingidas pelo agronegócio via exploração hidroviária.

O Maranhão nos últimos anos vem liderando o número de conflitos no campo e em 2021 teve 9 (nove) pessoas assassinadas por disputas em torno da posse da terra, o maior do Brasil. No dia 3 de janeiro do corrente ano, no território Cedro, município de Arari (MA), houve um atentado – por disparo de arma de fogo – contra o quilombola José Francisco Lopes Rodrigues de 58 anos, o Seu Quiqui, que veio a óbito no dia 8 de janeiro de 2022 [7]. Sua neta de 10 anos que o acompanhava também foi atingida, mas não corre risco de morte. As 9 (nove) vítimas no Maranhão representam a maior parte dos 26 assassinatos no Brasil no ano passado, representando uma escala de 30% em relação ao mesmo período de 2020 (01 à 31 de agosto), segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT)[8]

Assim como Seu Quiqui, os 3 (três) quilombolas assassinados no Brasil em 2021 aconteceu em terras maranhenses, representando o alvo que se mistura a identidade e a defesa dos territórios quilombolas tradicionais. Nenhum dos crimes foi elucidado! A Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade (COECV), do Governo do Maranhão, possui trâmite ordinário de judicialização de todos – aqueles registrados e oficializados pela Secretaria de Direitos Humanos e Participação Popular (SEDIHPOP) – os conflitos no campo, com a concepção de que apenas o espaço do judiciário seria suficiente para tratar essas questões [9]. Mas as mortes e as violações não diminuíram, só aumentam! Essa é a marca do modelo em curso que interliga ganhos vultuosos no campo, superexploração e mercados locais/globais de modernização. 

O Maranhão é um dos principais representantes da máquina de guerra estatal brasileira hoje, uma espécie de laboratório do horror, onde acontecem as piores experiências do capitalismo destruidor da natureza, onde populações que tiram seu sustento da terra são tratadas como cobaias para atender objetivos do mais-valor. São territórios e seus habitantes que tradicionalmente buscam o bem viver, mas que tem sido objeto de ataques vários, a exemplo da utilização excessiva de agrotóxicos, como o crime que aconteceu em maio de 2021 quando um centena de pessoas foram atingidas e contaminadas por pesticidas jogados de um avião, na zona rural de Buriti (MA), baixo Parnaíba maranhense [10]. São populações vítimas da sanha por lucros de grandes empresas estrangeiras, como no caso do rompimento da barragem de rejeitos de minérios em março de 2021 na localidade Aurizona, município de Godofredo Viana (MA), pela empresa canadense Equinoxx Gold, que devastou o rio Tromaí e deixou por meses 4 mil famílias sem acesso a água potável [11]. Ou os territórios passíveis de inundações, como visto nas últimas semanas, em terra arrasada, no centro-sul e oeste maranhense [12].

A instalação da barbárie, pela lógica da acumulação do capital, se assemelha ao que Byung Chul-Han chamou de economia arcaica da violência, já que o capitalismo é obcecado pela morte [13]. A máquina de guerra brasileira e maranhense é direta, intencional e destinada ao enriquecimento sem precedente das tradigs e holdigns, que levam nos calados dos navios e nas esteiras da mineração o chão sagrado, o sangue dos camponeses e dos povos tradicionais. “Até quando vão nos matar?”: o grito doído sobre o caixão de Seu Quiqui. Seu Quiqui, presente, presente, presente!

*Geógrafo, professor da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Diretor da Regional Nordeste I do ANDES-SN, membro do Movimento de Defesa da Ilha (MDI) e da Resistência PSOL/MA.

**Geógrafo, professor do Colégio Universitário (COLUN-UFMA), agente da Comissão Pastoral da Terra, Regional Maranhão.

NOTAS
[1] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs 5: Capitalismo e esquizofrenia 2. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 56.
[2] MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 edições, 2018, p. 54.
[3] DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e esquizofrenia 1. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011, p. 255.
[4] SANTOS, Milton. Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2000. Pgs. 38-44.
[5] ASSELIN, Victor. Grilagem: corrupção e violência em terras de Carajás. 2. ed. Imperatriz-MA: Ética, 2009.
[6] MATOPIBA bate recorde histórico de desmatamento no Cerrado. Notícias do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Belém, Pará. 5 jan. 2022. Disponível em  IPAM Amazônia – | Matopiba bate recorde histórico de desmatamento no Cerrado
[7] Disponível em: Comissão Pastoral da Terra – Maranhão registra o primeiro assassinato no campo em 2022 (cptnacional.org.br).Acesso em 16 jan. 2022.
[8] Disponível em: Comissão Pastoral da Terra – Dados parciais da CPT: Violência contra ocupação e a posse, assassinatos de sem-terras e mortes em consequência disparam em 2021 (cptnacional.org.br). Acesso em 16 jan. 2022.
[9] Disponível em: Comissão Pastoral da Terra – CPT no Maranhão renuncia à Comissão Estadual de Prevenção à Violência no Campo e na Cidade e denuncia ações autoritárias da Secretaria de Direitos Humanos (cptnacional.org.br). Acesso em 16 jan 2022.
[10] Disponível em: Agrotóxicos são lançados de avião sobre crianças e comunidades em disputa por terra (reporterbrasil.org.br). Acesso em 16 jan. 2022.
[11] Disponível em: Após seis meses do rompimento de barragem da Equinox Gold, distrito de Aurizona (MA) segue sem acesso à água potável (mab.org.br). Acesso em 16 jan. 2022
[12] Disponível em: Sete municípios estão em situação de emergência por conta das chuvas no MA | Maranhão | G1 (globo.com). Acesso em 16 jan. 2022.
[13] HAN, Byung-Chul. Capitalismo e Impulso de Morte: ensaios e entrevistas. Petrópolis: Vozes, 2021. p. 17.