Parte V
A pandemia aumenta as diferenças entre os estados e entre as classes
A pandemia do coronavírus aumentou a distância entre Norte Global e Sul Global
Face à pandemia de coronavírus que teve início em finais de 2019, inícios de 2020, a resposta dos governos dos países que tradicionalmente fazem parte das potências imperialistas (Europa Ocidental, América do Norte, Japão, Austrália-Nova Zelândiia) e a das grandes firmas farmacêuticas privadas aumentou o fosso que separa o Norte Global do Sul Global.
A Pfizer e a BioNTech entregarem até agora ao Estado sueco nove vezes mais doses de vacinas do que a todos os países de baixo rendimento somados
Para as grandes farmacêuticas, é mais rentável e mais seguro fornecer prioritariamente os países ricos, uma vez que os governos do Norte pré-financiam uma parte da produção e estão dispostos a pagar preços altos. Daí que as grandes firmas do Big Pharma lhes tenham dado prioridade absoluta. Os números que mostram a distribuição geográfica dos fornecimentos de vacinas são eloquentes. Para a Moderna, a União Europeia e os Estados Unidos representam 84 % das suas vendas totais. 98 % das entregas da Pfizer/BioNTech e 79 % das entregas da Johnson & Johnson foram para os países de rendimento elevado ou intermédio superior. A Pfizer e a BioNTech entregaram até à data ao Estado sueco nove vezes mais doses de vacina que a todos os países de baixo rendimento somados [55].
Dos 5,76 mil milhões de doses injectadas em todo o mundo, 0,3 % foram para os países de baixo rendimento, onde vivem 700 milhões de pessoas
A cartografia das vacinações também indica claramente que uma parte do mundo foi deixada à margem. Recordemos que, no início de outubro de 2021, dos 5,76 mil milhões de doses injectadas em todo o mundo, 0,3 % foram para países de baixo rendimento, onde vivem cerca de 700 milhões de pessoas. Apenas 2,1 % da população dos 27 países de baixo rendimento receberam uma dose da vacina contra o covid, ao passo que mais de 60 % da população da América do Norte e da Europa Ocidental foram vacinadas.
Os governantes de um punhado de países ricos opõem-se ao levantamento das patentes desejado por mais de 100 países do Sul Global. Entre os mais notórios opositores à suspensão das patentes, encontramos a Comissão Europeia, a Suíça, o Japão. No caso dos EUA, embora o presidente Joe Biden tenha anunciado em maio de 2021 que era favorável à suspensão das patentes, até agora ainda não fez o que seria necessário para convencer os governos que bloqueiam o dossier na Organização Mundial do Comércio (OMC).
Graças às patentes e às ajudas dos estados, é fornecida à Big Pharma uma renda ilegítima
Os preços cobrados pela Big Pharma sobre as vacinas covid são totalmente abusivos. Dois exemplos: segundo as estimativas baseadas nas investigações do Public Citizens, a produção em grande escala da vacina Pfizer/BioNTech não custa mais de 1,20 $ por dose. A vacina custa à Moderna cerca de 2,85 $ por dose [56]. No entanto, a Pfizer cobra até 23,50 $ por dose nalguns países e a Moderna chega aos 37 $.
Para justificar os elevados preços cobrados pelas vacinas, os medicamentos e os tratamentos, os representantes da indústria farmacêutica argumentam com o elevado nível de investimentos em investigação e desenvolvimento (I&D / R&D / P&D) e em ensaios clínicos. Este argumento é geralmente fácil de rebater, mas no caso da produção de vacinas covid cai pela base, pois as despesas em I&D e em ensaios clínicos foram financiadas pelos poderes públicos, com dinheiro dos contribuintes.
Os governos do Norte, ao decidirem facultar uma terceira injecção, favorecem os interesses particulares da Big Pharma, que vai buscar lucros acrescidos. Se as patentes sobre as vacinas anti-covid, sobre os testes, sobre os medicamentos não forem suspensas ou pura e simplesmente suprimidas, as grandes empresas privadas que dominam o sector da farmácia vão embolsar durante 20 anos rendimentos colossais, à custa das populações, dos orçamentos dos estados e dos sistemas públicos de saúde. A questão é portanto candente, pois já se sabe que as injecções de reforço vão ser recomendadas ou impostas. Imaginemos uma injecção anual durante 20 anos, com uma vacina protegida por uma patente e portanto vendida a preços altos … Isto significa um lucro monumental.
Num dossier bem construído, [57] o Financial Times explica como esta firma norte-americana, aliando-se à empresa alemã BioNTech, levou a melhor sobre os seus concorrentes (Moderna, Astra Zeneca, Johnson & Johnson) na produção/comercialização da vacina. Tal como a Moderna, deu prioridade absoluta aos mercados dos países ricos. No final de 2021 vendeu 80 % das vacinas covid compradas na União Europeia e 74 % do mercado dos EUA. Em relação aos governos do Sul Global mostra-se extremamente exigente e impõem-lhes modificações na legislação como condição prévia ao fornecimento de vacinas. Escreve o Financial Times: «Antes de concluir os acordos, a Pfizer exigiu aos países que modifiquem a legislação nacional, a fim de proteger os fabricantes de vacinas contra processos judiciais (…). Do Líbano às Filipinas, os governos nacionais modificaram as leis para garantirem o aprovisionamento em vacinas».
A Pfizer conseguiu que os países modificassem a legislação nacional, a fim de proteger os fabricantes de vacinas contra processos judiciais
O Financial Times cita Jarbas Barbosa, director-adjunto da Organização Pan-Americana da Saúde, que considera as condições impostas pela Pfizer «abusivas», num momento em que, por razões de urgência, os governos não podem dizer não.
O diário financeiro londrino explica que as negociações com a África do Sul foram particularmente tensas. O Governo queixou-se das «exigências irracionais» da Pfizer, assim qualificadas pelo antigo ministro da Saúde, Zweli Mkhize. Isto atrasou a entrega das vacinas. Segundo o Financial Times, a dado momento a Pfizer exigiu ao Governo que desse activos soberanos como garantia para cobrir os custos de qualquer potencial indemnização, coisa que ele recusou fazer. Segundo as pessoas que conhecem bem este dossier, o Tesouro sul-africano rejeitou a proposta do Ministério da Saúde de assinar o acordo com a Pfizer, argumentando que isso equivalia a uma «perda da soberania nacional».
O Financial Times acrescenta que a «Pfizer insistiu em ser indemnizada por processos civis e exigiu ao Governo que financiasse um fundo de indemnização». Segundo um alto funcionário que preferiu manter o anonimato, alguns membros do Governo disseram-lhe: «Estes tipos apontam-nos uma pistola à cabeça».
A organização sul-africana Health Justice recorreu à Justiça para impor a publicação dos contratos assinados entre a Pfizer e o Governo sul-africano. «Queremos conhecer todos os pontos em que eles fizeram um braço-de-ferro», declarou Fatima Hassan, fundadora da Health Justice. «Uma empresa privada não pode ter tamanho poder. O contrato deveria ser público. Assim se veria o que a Pfizer conseguiu impor a países soberanos em todo o Mundo».
O comportamento escandaloso dos governos dos países capitalistas mais industrializados que reforçam deliberadamente o fosso que os separa dos povos dos países de baixo rendimento é ilustrado pela terceira dose de vacinas. À data de novembro de 2021, estes governos já tinham providenciado a terceira dose da vacina a 120 milhões de habitantes dos países ricos, enquanto o total de vacinas administradas nos países de baixo rendimento era de 60 milhões [58]. Estamos perante um verdadeiro apartheid em matéria de saúde pública.
Por seu lado, a Amnistia Internacional denunciou a AstraZeneca, a BioNTech, a Johnson & Johnson, a Moderna, a Novavax e a Pfizer, por estas «seis empresas ao comando do fornecimento de vacinas contra o Covid-19 fomentarem uma crise de direitos humanos sem precedentes, ao recusarem renunciar aos seus direitos de propriedade intelectual e partilhar a sua tecnologia, sendo que a maior parte delas se recusa a entregar vacinas aos países pobres» [59].
COVAX não é solução
Os governos dos países do Sul que quiserem permitir que a sua população se vacine terão de se endividar, pois as iniciativas do tipo COVAX [Covid-19 Vaccines Global Access (Acesso Global às Vacinas da Covid-19)] são insuficientes e consolidam a influência do sector privado. A COVAX é co-dirigida por três entidades: 1. A GAVI Aliance, uma estrutura privada na qual participam empresas e estados; 2. A Coligação para Inovações de Preparação para Epidemias (CEPI, Coalition for Epidemic Preparedness Inovation), uma estrutura privada na qual participam igualmente firmas capitalistas e estados; 3. A OMS, que é uma agência especializada das Nações Unidas.
Entre as empresas que financiam e influenciam a GAVI encontramos a Fundação Bill & Melinda Gates, a Fundação Rockefeller, Blackberry, Coca Cola, Google, Federação Internacional de Comercialização de Produtos Farmacêuticos (International Federation of Pharmaceutical Wholesalers), o banco espanhol Caixa, o banco UBS (principal banco suíço de gestão de fortunas a nível mundial), as sociedades financeiras Mastercard e Visa, o construtor de motores para aviões Pratt and Whitney, a firma multinacional americana especializada em bens de consumo corrente (higiene e produtos de beleza) Proctor & Gamble, a multinacional agroalimentar neerlando-britânica Unilever, a sociedade petroleira Shell International, a firma sueca de streaming musical Spotify, a firma chinesa TikTok, o fabricante de automóveis Toyota, … [60]
Entre as empresas que financiam e influenciam a COVAX: Fundação Bill & Melinda Gates, Fundação Rockefeller, Blackberry, Coca Cola, Google, banco UBS, Mastercard e Visa, Shell
A segunda estrutura que co-dirige a COVAX é a CEPI (Coligação para Inovações para Epidemias), fundada em 2017 em Davos, por ocasião de uma reunião do Fórum Económico Mundial. Entre as sociedades privadas que financiam e influenciam fortemente a CEPI vamos encontrar a Fundação Melinda & Bill Gates, que investiu 460 milhões de dólares.
A composição da iniciativa COVAX é esclarecedora quanto ao facto de os estados e a OMS renunciarem às suas responsabilidades na luta contra a pandemia em particular e em matéria de saúde pública em geral. Esta atitude insere-se na vaga neoliberal que vinga desde a década de 1980 à escala mundial. O secretário-geral das Nações Unidas, assim como as direcções das agências especializadas do sistema da ONU (por exemplo a OMS, encarregue da saúde, e a FAO, encarregue da agricultura e alimentação) evoluíram acentuadamente no mau sentido ao longo dos últimos 30 a 40 anos, alinhando-se cada vez mais com iniciativas privadas dirigidas por um número restrito de grandes empresas de dimensão mundial. Os chefes de estado e de governo seguiram a mesma via. Aliás, pode dizer-se que foram eles quem tomou a iniciativa. Ao fazerem-no, aceitaram que as grandes empresas privadas tomem parte nas decisões e sejam favorecidas quando se trata de fazer escolhas. [61]
Recordemos que há mais de 20 anos os investigadores e os movimentos sociais especializados no domínio da saúde propuseram que os poderes públicos investissem quantias suficientes para produzir remédios eficazes e vacinas contra diversos vírus de «nova geração» relacionados com o aumento das zoonoses. A esmagadora maioria dos estados preferiu passar a bola ao sector privado e permitiu-lhe o acesso aos resultados das investigações científicas realizadas por organismos públicos, quando, pelo contrário, deveriam ter investido directamente na produção de vacinas e tratamentos, no âmbito do serviço público de saúde.
A iniciativa COVAX não constitui de modo algum uma solução.
A COVAX tinha prometido fornecer, até ao final de 2021, 2 mil milhões de doses aos países do Sul que as pediram e estão associados à iniciativa. Na realidade, verificava-se no início de setembro de 2021 que apenas 243 milhões de doses foram enviadas, [62] de forma que o objectivo dos 2 mil milhões de doses foi adiado para o primeiro semestre de 2022.
Todas as grandes potências do Norte ficaram aquém das promessas feitas.
Por exemplo, a União Europeia comprometeu-se a entregar 200 milhões de doses aos países mais pobres até ao final de 2021 e afinal enviou apenas 20 milhões, conforme reconheceu em 7/09/2021 Clément Beaune, secretário de Estado encarregue dos Negócios Europeus do Governo francês. [63]
Segundo um balanço oficial efectuado em dezembro de 2021, até à data a COVAX apenas enviou 600 milhões de doses para os 144 países ou territórios, muito longe dos 2 mil milhões prometidos para 2021. Até hoje, apenas 9 doses por cada 100 habitantes foram entregues aos países de baixo rendimento (no sentido da expressão adoptado pelo Banco Mundial). A título de comparação: a média mundial eleva-se a 104 por cada 100 habitantes. Este número sobre para 149 nos países de elevado rendimento.
África é o continente menos vacinado, com 18 doses administradas por cada 100 habitantes. [64]
A C-TAP (Covid-19 Technology Access Pool) é outra iniciativa enganadora da OMS. Inclui os mesmos protagonistas da COVAX. Foi criada para tornar pública a propriedade intelectual, os dados e os processo de fabrico, encorajando as empresas farmacêuticas detentoras das patentes a conceder a outras firmas o direito de produzir a vacina, os medicamentos ou os tratamentos, facilitando a transferência de tecnologia.
Até hoje, nenhum fabricante de vacinas partilhou as patentes ou o conhecimento por via da C-TAP. [65]
Até hoje nenhum fabricante de vacinas partilhou as patentes ou o conhecimento por via da C-TAP
Face ao falhanço da COVAX e da C-TAP, os signatários do manifesto «Ponhamos Fim ao Sistema de Patentes Privadas!», lançado pelo CADTM em maio de 2021, têm razão em afirmar:
«Iniciativas como COVAX ou C-TAP falharam miseravelmente, não só devido à sua inadequação, mas sobretudo porque respondem ao fracasso do actual sistema de governação global com iniciativas em que países ricos e multinacionais, muitas vezes sob a forma de fundações, procuram remodelar a ordem global ao seu gosto. A filantropia e as iniciativas públicas-privadas florescentes não são a resposta. São ainda menos face aos actuais desafios globais num mundo dominado por Estados e indústrias guiados apenas pela lei do mercado e pelo máximo lucro.» [66]
Voltando à visão histórica global
Segundo o Relatório sobre as Desigualdades Mundiais publicado no início de dezembro de 2021 e coordenado por Lucas Chancel, Thomas Piketty, Emmanuel Saez e Gabriel Zucman, a fatia de rendimentos actualmente arrecadados pela metade mais pobre da população mundial é cerca de metade do que era em 1820, antes da grande divergência entre os países ocidentais e as suas colónias. A fatia dos rendimentos pessoais dos 50 % de adultos mais pobres em todo o Mundo, ou seja cerca de 3 mil milhões de pessoas, é metade do que era em 1820!
Para além da clivagem Norte-Sul: a exploração de classe dentro de cada país
Este panorama da situação mundial é fundamental, mas deve ser completado com as fortes desigualdades de rendimento e de acumulação de riquezas no interior de cada país. O capitalismo alastrou a todo o planeta. Neste sistema, a classe capitalista, que representa uma ínfima minoria da população, enriquece todos os dias à custa das riquezas produzidas pelo trabalho da maioria da população, e também graças à exploração da Natureza, sem qualquer preocupação com os limites físicos desta.
Despojada da propriedade dos meios de produção, a maioria das mulheres e homens não tem outra escolha para viver senão vender a sua força de trabalho aos capitalistas (proprietários dos meios de produção), que procuram remunerar esse trabalho tão pouco quanto possível, impedindo assim a esmagadora maioria da população de sair da condição social em que se encontra. Inversamente, as riquezas acumuladas pelos capitalistas permitem-lhes investir em variados sectores, com o objectivo de aumentarem as suas fontes de lucro, explorando ao mesmo tempo os seres humanos e a Natureza.
A fim de maximizar os lucros e assegurar que este modo de produção perdura, a classe capitalista procura não só manter os salários directos ao mais baixo nível, mas também impedir a redistribuição das riquezas, contribuindo o menos possível em impostos e agindo contra as políticas sociais, nomeadamente os serviços públicos de saúde, educação, habitação [67]. Aos capitalistas também lhes convém impedir a organização dos trabalhadores/as, nomeadamente actuando contra o que se costuma chamar direitos do trabalho: o direito de constituir sindicatos, o direito à greve, as negociações colectivas, etc. Inversamente, aos trabalhadores/as interessa organizarem-se, a fim de ganharem direitos sociais e contestarem as desigualdades. Existe portanto uma luta de classes a nível internacional – cuja intensidade varia segundo a organização colectiva dos trabalhadores, a região e a época – contra as injustiças gritantes.
As desigualdades económicas entre diferentes grupos da população podem ser medidas nomeadamente pelo património possuído por cada pessoa e pelos rendimentos que usufrui (rendimentos do trabalho – salários, pensões, subsídios sociais – e rendimentos do capital – lucros das empresas, dividendos recebidos pelos accionistas, etc.).
Os grupos mais pobres da população mundial possuem literalmente menos que nada: estão endividados e devem dinheiro aos seus credores – geralmente bancos –, que é como quem diz aos grupos mais ricos da população. Nos EUA cerca de 12 % da população – ou seja 38 milhões de pessoas – têm património negativo. [68] O nível de endividamento dessas pessoas – resultante nomeadamente de empréstimos para estudar ou comprar casa – é tal que atira o património acumulado dos 50 % mais pobres da população para valores negativos (-0,1 %) [69].
Conclusão
Desde o início da conquista violenta de continentes inteiros pelas potências europeias até hoje, assistiu-se a sucessivas pilhagens, à destruição de bens comuns, ao genocídio de populações inteiras, à exploração do trabalho e da Natureza … Progressivamente o sistema capitalista generalizou-se à escala mundial. Este sistema submete os seres humanos e o conjunto da Natureza a uma exploração intensiva, com o fim de acumular o máximo de lucros a curto prazo e de garantir o enriquecimento da classe capitalista, que não representa mais de 1 % da população mundial. Segundo o relatório sobre a riqueza mundial, emitido todos os anos pelo banco Crédit Suisse, 1 % dos adultos em todo o mundo possui 45 % de toda a riqueza pessoal, enquanto cerca de 3 mil milhões de pessoas nada possuem [70].
O sistema capitalista produziu uma crise multidimensional a nível global que coloca a vida na Terra à beira da extinção.
É mais que tempo de agir para romper com o modo capitalista de produção e de propriedade. Temos de sair do capitaloceno.
Tradução de Rui Viana Pereira
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