Parte IV: O capitalismo e os bens comuns
O capitalismo prosseguiu a sua ofensiva contra os bens comunitários nos séculos XX e XXI
O capitalismo continuou a sua ofensiva contra os bens comuns por duas razões: 1. Esses bens ainda não desapareceram completamente e, portanto, constituem uma limitação à dominação total do capital, que procura apropriar-se deles ou reduzi-los ao mínimo; 2. Intensas lutas permitiram recriar espaços de bens comuns durante os séculos 19 e 20. Esses espaços comuns são constantemente postos em causa.
Ao longo dos séculos 19 e 20 houve simultaneamente destruição e reconquista ou construção de espaços de bens comuns
Ao longo do século 19 e na primeira metade do século 20 o movimento operário, ao desenvolver sistemas de entreajuda, recriou novos espaços de bens comuns: criação de cooperativas, desenvolvimento de caixas de greve, de fundos de solidariedade. A vitória da revolução russa também contribuiu durante um curto período para o restabelecimento de bens comunitários, antes da degeneração estalinista impor a ditadura e privilégios vergonhosos, em proveito de uma casta burocrática, como muito bem descreveu, em 1936, Leão Trotsky [pt-br: Leão Trotsky] em A Revolução Traída [48].
Nos séculos 19 e 20 o movimento operário recriou espaços de bens comuns, ao desenvolver sistemas de entreajuda
Digamos que, nos países capitalistas, as lutas políticas e sociais traduziram-se no século 20 (em períodos que variam de país para país) no desenvolvimento do que convencionou chamar-se wellfare state ou estado social, quando os governos capitalistas compreenderam que tinham de fazer concessões ao movimento operário para obterem a paz social e em certos casos para evitar o reacender das lutas revolucionárias.
Depois da II Guerra Mundial, de finais dos anos 1940 até finais da década de 1970, a vaga de descolonização, principalmente em África, Próximo Oriente e Ásia, à qual se juntaram as vitórias de revoluções como a da China (1949) ou de Cuba (1959), conduziram à reaquisição de certos bens comuns, nomeadamente por via da onda de nacionalizações de certas infraestruturas (o Canal de Suez em 1956, pelo regime de Nasser) e de fontes de matérias-primas (o cobre sob Allende, no início dos anos 1970) e hidrocarbonetos (Argélia, Líbia, Iraque, Irão, …).
O direito ao desenvolvimento dos povos pressupõe o exercício do direito inalienável à plena soberania sobre todas as suas riquezas e recursos naturais
Este período de reafirmação dos bens comunitários foi expresso numa série de documentos das Nações Unidas, desde a declaração universal de 1948 até à Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986 [ver aqui em pt-br ou aqui em pt-pt]. Note-se que no seu artigo 1, § 2, a declaração sobre o direito ao desenvolvimento afirma: «O direito humano ao desenvolvimento implica também a plena realização do direito dos povos à autodeterminação, o qual inclui […] o exercício do seu direito inalienável à plena soberania sobre todas as suas riquezas e recursos naturais» [49]. Este direito inalienável dos povos «à plena soberania sobre todas as suas riquezas e recursos naturais» é constantemente posto em causa por instituições como o Banco Mundial, o FMI, a maioria dos governos, sempre no interesse de grandes empresas privadas.
A reprodução social no centro das preocupações sobre os bens comuns, graças à acção dos movimentos feministas
A actividade de reprodução social também passou a fazer parte das preocupações sobre os bens comuns, graças à acção dos movimentos feministas. Como escreveram Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser no seu manifesto intitulado «Feminismo para os 99 %» [50], «a sociedade capitalista encerra uma contradição no que diz respeito à reprodução social: tende a requerer tanto quanto possível o trabalho reprodutivo “gratuito”, sem prestar qualquer atenção à sua renovação e em benefício exclusivo do capital – o que provoca inevitavelmente “crises de cuidados” que pesam sobre as mulheres, arrasam as famílias e esgotam a energia das pessoas e dos grupos sociais» (Posfácio, p. 99 [aqui em tradução livre de Rui Viana Pereira]). As outras autoras definem a reprodução social como englobando «as actividades que permitem sustentar os seres humanos enquanto seres sociais incarnados: não têm apenas necessidade de se alimentarem e de dormirem, mas também de educar as crianças, de cuidar da família e de proteger a sua comunidade, esforçando-se por realizar a esperança num futuro melhor. Todas as sociedades assentam nestas actividades, mas nas sociedades capitalistas elas servem outro mestre: o capital, que precisa do trabalho de reprodução social para produzir e reconstituir a “força de trabalho”» (Posfácio, p. 103 [trad. idem]).
Mais adiante as autoras acrescentam algo que nos aproxima da situação posta em destaque pela crise multidimensional actual do capitalismo e pela pandemia do coronavírus: «O capitalismo parte do princípio de que sempre haverá energias suficientes para “produzir” trabalhadores e trabalhadoras e manter os laços sociais de que dependem a produção económica e a sociedade no seu conjunto. Na realidade, as capacidades de reprodução social não são infinitas e estão à beira do seu limite. Quando uma sociedade suprime as ajudas públicas à reprodução social, e simultaneamente obriga as pessoas sobre as quais recai esse encargo a efectuarem um trabalho exaustivo e mal pago, está a esgotar as capacidades sociais das quais depende em absoluto» (Posfácio, p. 109 [trad. idem]).
A ofensiva neoliberal suprime as ajudas públicas à reprodução social e obriga as pessoas sobre as quais recai esse encargo a efectuarem um trabalho exaustivo e mal pago
O que Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Fraser denunciam nestas passagens permite compreender melhor a fragilidade da sociedade capitalista face ao coronavírus, a incapacidade dos governos para fazerem o necessário, em tempo útil, para defenderem o melhor possível a população num contexto de pandemia, a pressão que recai sobre os trabalhadores/as dos sectores essenciais e vitais para correrem em auxílio das populações, enquanto ao mesmo tempo, em consequência das decisões desses mesmos governos, elas e eles são sub-remunerados/as, desvalorizados/as e em número insuficiente. E podemos verificar que o mesmo se passa com as causas da incúria dos governos para enfrentarem as consequências das alterações climáticas em curso, sobre o subequipamento e a falta de pessoal encarregado da protecção civil, perante as «catástrofes naturais» cada vez mais frequentes.
A dívida pública foi e é utilizada pelo sistema capitalista para atacar os bens comuns
Desde a década de 1970-1980 as dívidas públicas foram usadas sistematicamente para agravar os ataques contra os bens comunitários, tanto no Norte como no Sul do planeta. É o que o CADTM, bem como outros movimentos que se opõem às dívidas ilegítimas, não deixam de denunciar desde a década de 1980. Já consagrei a este tema uma dezena de obras [51] e centenas de artigos. É encorajador verificar que cada vez mais autores destacam igualmente a utilização da dívida como arma de ataque aos bens comuns e aos serviços públicos [52].
A dívida é a arma predilecta do capitalismo financeirizado
A título de exemplo, cito mais uma vez as autoras do Feminismo para os 99 %: «Longe de permitir aos estados que perpetuem a reprodução social graças à instalação de serviços públicos, disciplina-os para satisfazer os interesses de curto prazo dos investidores privados. A dívida é a sua arma predilecta. O capital financeiro vive da dívida soberana, que utiliza para impedir até as mais modestas prestações sociais, forçando os estados a liberalizarem as suas economias, a abrirem os mercados e a imporem a “austeridade” às populações sem defesa» (Posfácio, p. 114 [trad. idem]).
O capital financeiro vive da dívida soberana
Ao longo da ofensiva neoliberal que dominou a cena mundial a partir da década de 1980, os governos e diversos organismos internacionais, como o Banco Mundial e o FMI, serviram-se da necessidade de reembolsar a dívida pública para generalizarem uma vaga de privatizações de empresas estratégicas, serviços públicos, recursos naturais tanto no Norte como no Sul. Assim se inverteu, conforme foi apontado mais acima, uma tendência que tinha marcado as décadas anteriores, durante as quais, devido à pressão das lutas populares, tinha havido um reforço dos bens comuns.
As políticas impostas para reembolsar a dívida reduziram fortemente a capacidade dos estados e das populações para enfrentarem a pandemia do coronavírus
É longa a lista dos ataques levados a cabo em nome do reembolso da dívida. Alguns aceleraram a crise ecológica e o desenvolvimento de zoonoses: desflorestação acelerada, aumento da pecuária intensiva e das monoculturas, a fim de fornecer rendimentos em divisas que permitam reembolsar a dívida externa. Tudo isto foi feito por meio da aplicação das políticas de ajustamento estrutural recomendadas pelo FMI e pelo Banco Mundial.
Certas políticas impostas para o reembolso da dívida também tiveram impacto directo na capacidade dos estados e das populações para enfrentar a pandemia do coronavírus e outras crises sanitárias: estagnação ou redução das despesas com a saúde pública, imposição do respeito pelas patentes/licenças sobre medicamentos e tratamentos, renúncia à produção de medicamentos genéricos, abandono da produção local de equipamentos médicos, promoção do sector privado dentro do sector da saúde, supressão da gratuitidade do acesso aos cuidados de saúde em grande número de países, precarização das condições de trabalho dos trabalhadores/as da saúde, desenvolvimento de parcerias público-privadas, …
Dívida pública = alienação do Estado
Marx, há mais de século e meio, já tinha encontrado uma fórmula muito forte: «A dívida pública, por outras palavras a alienação do Estado, seja ele despótico, constitucional ou republicano, é uma marca da era capitalista» [53]. Se atentarmos no papel instrumentalizador do reembolso da dívida pública no reforço de políticas capitalistas neoliberais mortíferas, chegamos à conclusão que é preciso lutar pela anulação das dívidas ilegítimas. Marx também escreveu que «O crédito público e o crédito privado são o termómetro económico que permite medir a intensidade de uma revolução». [54]
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