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BRASIL

Uberização e precarização ameaçam profissionais de Saúde e Segurança do Trabalho

Os técnicos de segurança do trabalho formam um contingente superior a 430 mil e sofrem com a desindustrialização e redução de vagas, caminhando para a precarização e o trabalho por conta própria

Coletivo TSTs Cariri
Marcelo Camargo/Agência Brasil

Fábrica da empresa brasileira BRF em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos.

No Brasil de Bolsonaro e Guedes, os trabalhadores por conta própria somam 25,5 milhões, o que representa 27% da população ocupada. Ou seja, de cada dez pessoas ocupadas atualmente no Brasil, quase três trabalham de forma autônoma. Em números absolutos temos hoje 13,5 milhões de desempregados no país. Se considerada toda a mão de obra ainda subutilizada, está faltando trabalho para 30,743 milhões de brasileiros (IBGE, 2022).

Diante desse quadro de elevação do desemprego agravado pela pandemia muitos de nós da classe trabalhadora brasileira fomos forçados, para sobreviver, a nos tornar autônomos, realizando bicos e trabalhos temporários, inclusive alguns de nós nessa modalidade por Conta Própria com CNPJ, os chamados microempreendedores individuais (MEI) – fenômeno chamado de pejotização.

Nós, profissionais de Saúde e Segurança do Trabalho, que temos no ofício a nossa única fonte de rendimentos temos um futuro incerto já que o setor passa por uma série de mudanças profundas promovidas pelas reformas ultraliberais da economia e uma ampla revisão (enxugamento) das normas (NRs)? O que está ocorrendo e como devemos nos portar como classe diante dessa realidade? Sobre tais questões, o presente texto procura apresentar algumas pistas.

Em primeiro lugar é importante notar que a reestruturação ocorrida no setor prevencionista brasileiro não é uma simples mudança conjuntural – estamos diante de uma transformação estrutural, como veremos adiante.

Desindustrialização x SESMT

A indústria brasileira que aparecia como o setor mais dinâmico da economia, aquele a criar o maior número de empregos, superando a agricultura e o comércio, passa atualmente por um processo que provoca a reversão do crescimento e da sua participação na produção e na geração de empregos conhecido por “desindustrialização”. Entre 2013 e 2019 o Brasil perdeu cerca 30 mil indústrias e 1,4 milhão de vagas (IBGE, 2022). Um dos principais exemplos foi a saída da Ford, que em 2021 fechou suas fábricas e decidiu interromper a produção no país. Um dos efeitos da lógica de regredir e congelar o Brasil como nação primário-exportadora, importadora de produtos industriais e estufa de capitais especulativos.

Entre 2013 e 2019 o Brasil perdeu cerca 30 mil indústrias e 1,4 milhão de vagas

Um das tantas consequências da retração da atividade industrial podem ser identificados na composição do SESMT (Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho), já que o dimensionamento desse vincula-se a dois fatores: o risco da atividade e ao número de empregados. A composição do SESMT pode variar, mas, em geral, as indústrias com mais de 50 empregados possuem pelos menos um Técnico de Segurança do Trabalho presente. Por exemplo, uma empresa de grau de risco quatro, com 50 a 100 trabalhadores, terá um SESMT formado por, ao menos, um técnico de segurança do trabalho – algo comum no setor metalomecânico. Em outro exemplo, se a empresa tiver mais de 3.500 empregados, deverá ter 10 técnicos de segurança do trabalho, além de três engenheiros de segurança do trabalho, um auxiliar de enfermagem do trabalho, um enfermeiro do trabalho e um médico do trabalho. De outro lado, estabelecimentos empresariais com menos de 50 empregados estão desobrigados de constituir o SESMT.

Diante do processo de desindustrialização que se aprofunda ainda mais com a pandemia, ainda longe do controle, tanto o número de empresas industriais (a maioria com grau de risco 3) diminuem, como a massa de empregados (e a quantidade em cada fábrica) encolhe. Diante desse quadro, as vagas no SESMT para médico, engenheiro, técnico, enfermeira e auxiliar de enfermagem tendem a sumir. O resultado dessa equação é o aumento de especialistas desempregados que não conseguem se inserir no mercado formal e acabam recorrendo aos trabalhos precários e ao subemprego. Somente os técnicos de segurança do trabalho formam um contingente superior a 430 mil (FENATEST, 2018).

Uberização dos Profissionais de SST

Na atualidade, em uma situação de mercado de trabalho onde as vagas nos SESMTs sumiram resta ao profissional de SST tentar “se virar”. Assim como o motorista por aplicativo da Uber, o profissional de SST para se inserir nesse mercado é obrigado a se “uberizar”. Deve aprender a ser um empreendedor: um indivíduo em constante formação que toma para si todos os riscos de seu trabalho. Especialmente vai aprender a se autogerir, tornar-se empregável, investindo em si mesmo. A uberização contempla dezenas de milhões – é a “viração”, o “bico”, o freelance, o trabalho “por conta”, e tudo onde se encontram hoje a maioria dos “prestadores de serviços de SST”.

A uberização dos profissionais de SST é resultado do receituário neoliberal baseado na flexibilização, na desregulação e na privatização – aprofunda desigualdades ao passo que dissemina a precarização por dentro do emprego com perdas de garantias e direitos. Ao passar a atuar no mercado como um “empreendedor’ ou “patrão de si mesmo” esse profissional uberizado também sofre um impacto ideológico.

Ocorre que o profissional de SST, ao ser contratado como consultor para atuar numa determinada empresa mais preocupada em evitar processos trabalhistas, é levado a se identificar com os interesses do contratante. Essa identificação com aquele que explora sua força de trabalho, o patrão, pode ser explicada pela vontade estimulada na sociedade capitalista para que os indivíduos possam parecer pertencer a classes sociais superiores e por isso são levadas a desejar ter uma capacidade de consumo cada vez mais parecida com os de cima. Existe uma enorme pressão social que nos empurra a adquirir os mesmos hábitos dos empresários, celebridades e personalidades de “sucesso”.

O inferno da guerra competitiva criada entre os “prestadores de serviços de SST” passa a minar a nossa capacidade de resistência e luta coletiva. É um mecanismo eficaz de controle, pois ao agir sozinho, por si mesmo, esse profissional que também é um trabalhador, é mergulhado na confusão, já não consegue compreender a realidade em seu entorno, nem o funcionamento da sociedade onde se insere. Dai vem o apelo a “neutralidade”, “nem esquerda, nem direita” e finalmente “sou técnico e não gosto de política”.

Assim, a concorrência no trabalho se volta contra nós trabalhadores. Na medida em que faz emergir no nosso meio, trabalhadores que não se identificam conosco, e alheios ao nosso sofrimento, passam a imaginar formas individuais de convencer o patrão a comprar mais caro a sua mão-de-obra, e dessa maneira vivem a perseguir um sucesso que nunca chega – efetivamente, esses sujeitos agora servem aos interesses daquele que os explora e oprime. O medo do fracasso o domina, esse confuso trabalhador é tomado pelo temor de perder o “amor” do patrão, e de não sair-se bem aos olhos dele. Essa lógica complexa faz com que o trabalhador aja ao avesso daquilo que se espera, negando sua identidade de classe.

Perspectivas para o futuro próximo: a disputa por um governo de esquerda com um programa de esquerda

Os profissionais de SST, assim como a classe trabalhadora de conjunto, convivem com incertezas e inseguranças crônicas diante da crise, da fome, da miséria e das mortes de um governo de extrema direita, mas pode reagir. É preciso derrotar a extrema direita, mas isso inclui derrotar junto o neoliberalismo, pois são indissociáveis. Uma das chaves para isso se efetivar concretamente é inserir no seio da classe e entre nós profissionais de SST o debate urgente sobre a possibilidade de revogação das reformas trabalhista e previdenciária (incluindo toda revisão das NRs), o fim do teto de gastos, a reversão das privatizações. E relacionar tais necessidades a tantas outras reivindicações muito sentidas pelas amplas massas dos que vivem do trabalho.

Um governo de esquerda pode e deve mudar de forma estrutural todo quadro de ataques desferidos contra os que vivem do trabalho que se sucedeu pós golpe de 2016 contra Dilma e à interdição eleitoral de Lula tramados pela classe dominante. É mais que urgente questionar em que tipo de sociedade queremos viver e o que queremos enquanto classe.