Original publicado em 29 de dezembro de 2021 em cadtm.org
Parte III – A criação das dívidas externas dos países dominados
A dívida externa como arma de dominação e subordinação
A utilização da dívida externa como arma de dominação desempenhou um papel cimeiro na política imperialista das principais potências capitalistas durante o século 19 e assim continua no século 21, sob formas que foram evoluindo. A Grécia, desde o seu nascimento nos anos 1820-1830, foi totalmente submetida aos ditames das potências credoras (em particular a Grã-Bretanha e a França) [28]. O Haiti, que se libertou da França durante a Revolução Francesa e proclamou a independência em 1804, voltou a ser subjugada pela França em 1825, por meio da dívida [29]. A Tunísia endividada foi invadida pela França em 1881 e transformada em protectorado-colónia [30]. Igual destino foi imposto ao Egipto em 1882 pela Grã-Bretanha [31]. O Império Otomano, a partir de 1881, foi submetido directamente aos credores (Grã-Bretanha, França, Alemanha, Itália …), [32] o que acelerou o seu desmembramento. A China foi forçada pelos credores a ceder concessões territoriais e a abrir totalmente o seu mercado no século 19. A Rússia czarista, fortemente endividada, também poderia ter se tornado presa das potências credoras, se a revolução bolchevique não tivesse possibilitado em 1917-1918 o repúdio unilateral das dívidas [33].
Das diversas potências periféricas [34] que poderiam potencialmente aceder ao papel de potências capitalistas imperialistas na segunda metade do século 19 – o Império Otomano, o Egipto, o Império Russo, a China e o Japão –, só o último conseguiu aí chegar. [35] De facto, o Japão praticamente não recorreu a empréstimos externos para alcançar um grande desenvolvimento económico e transformou-se numa potência capitalista imperialista na segunda metade do século 19, passando por um grande desenvolvimento capitalista autónomo no seguimento das reformas do período Meiji (iniciado em 1868). Importou as técnicas de produção ocidentais mais avançadas à época, ao mesmo tempo que impedia a penetração financeira estrangeira no seu território, recusando o recurso aos empréstimos externos e suprimindo os entraves à circulação de capitais autóctones. Em finais do século 19 o Japão passou de uma autarcia secular a uma expansão imperialista vigorosa. É claro que a ausência de endividamento externo não foi o único factor que lhe permitiu dar o salto para um desenvolvimento capitalista vigoroso, com uma política internacional agressiva, ascendendo assim ao pódio das grandes potências imperialistas. Outros factores – cuja enumeração ocuparia muito espaço – desempenharam um papel fundamental, a par da ausência de endividamento externo. [36]
A contrario, embora a China até aos anos 1830 tenha alcançado um desenvolvimento considerável e se tenha tornado uma potência económica de primeiro plano [37], o recurso ao endividamento externo permitiu às potências europeias e aos Estados Unidos progressivamente marginalizá-la e submetê-la. Também neste caso outros factores entraram em jogo, tais como as guerras abertas pela Grã-Bretanha e pela França para imporem o livre-cambismo e a exportação forçada do ópio para a China, mas o recurso à dívida externa e as suas consequências nefastas tiveram um papel muito importante. De facto, para reembolsar os empréstimos estrangeiros, a China teve de entregar às potências estrangeiras enclaves territoriais e portuários.
Rosa Luxemburgo menciona, entre os métodos empregues pelas potências capitalistas ocidentais para dominar a China, o «sistema da dívida pública, dos empréstimos europeus, do controlo europeu das finanças e da consequente ocupação de fortalezas chinesas, a abertura forçada de portos livres e a concessão de caminhos de ferro obtida sob pressão dos capitalistas europeus» [38]. Joseph Stiglitz, quase um século depois de Rosa Luxemburgo, retoma este tema no seu livro La Grande Désillusion (A Grande Desilusão).
Endividamento externo e livre-cambismo
Durante a primeira metade do século 19, os governos latino-americanos, com excepção do governo de Francia no Paraguai, adoptaram políticas de livre-cambismo, por pressão da Grã-Bretanha.
Dado que as classes dominantes locais não investiam na transformação ou na fabricação local de produtos destinados ao mercado interno, a adopção do livre-cambismo não ameaçava os seus interesses. Por consequência, o facto de aceitar a importação livre de produtos manufacturados provenientes sobretudo da Grã-Bretanha condenou esses países à incapacidade de adquirirem um verdadeiro corpo industrial. O abandono do proteccionismo destruiu grande parte das manufacturas e oficinas locais, nomeadamente no sector têxtil.
De certa maneira, podemos dizer que a combinação do recurso ao endividamento externo e a adopção do livre-cambismo constituem o factor fundamental do subdesenvolvimento na América Latina. Por outro lado, isto está relacionado com a estrutura social dos países da América Latina. As classes dominantes locais, nomeadamente a burguesia compradora1, fizeram opções concordes com os seus interesses.
A combinação do recurso ao endividamento externo e a adopção do livre-cambismo são os factores fundamentais do subdesenvolvimento na América Latina
No final do século 18, várias regiões da América Latina, embora ainda estivessem sob domínio colonial, passaram realmente por um desenvolvimento artesanal e manufactureiro virado essencialmente para o mercado interno. A Grã-Bretanha apoiou as veleidades de independência dos Latino-Americanos, no fito de dominar economicamente a região. Desde o primeiro momento a Grã-Bretanha pôs uma condição ao seu reconhecimento dos estados independentes: eles deveriam comprometer-se a deixarem entrar livremente nos seus territórios as mercadorias inglesas (o objectivo era limitar os impostos sobre as importações a cerca de 5 %). A maioria dos novos estados aceitou e daí resultou uma crise para os produtores locais, em particular os artesãos e pequenos empresários. Eduardo Galeano dá uma série impressionante de exemplos no seu livro As Veias Abertas da América Latina [39]. Os mercados locais foram invadidos pelas mercadorias britânicas.
Importa sublinhar o factor essencial que permitiu à Grã-Bretanha tornar-se a principal potência industrial, financeira, comercial e militar mundial durante o século 19: as autoridades de Londres aplicaram na prática uma política fortemente proteccionista até 1846 [40]. Ao mesmo tempo que conseguiram convencer os líderes independentistas latino-americanos a assinarem, a partir de 1810-1820, acordos que abriram a economia dos novos estados independentes em construção às mercadorias e investimentos britânicos [41], as autoridades britânicas tiveram o cuidado de não renunciar à protecção das suas indústrias e do seu comércio. Foi por ter protegido fortemente o seu mercado e, portanto, as suas indústrias em pleno desenvolvimento, ao mesmo tempo que destruía as manufacturas concorrentes (como a indústria têxtil da Índia), que a Grã-Bretanha conseguiu tornar-se a primeira potência mundial. Uma vez que a sua indústria obteve um avanço tecnológico evidente, a Grã-Bretanha abriu-se ao livre-cambismo, pois já não tinha a temer uma concorrência séria. Como disse Paul Bairoch, a partir da década de 1840 «o país mais desenvolvido tornou-se o mais liberal, o que permitia atribuir o sucesso económico ao sistema do livre-cambismo, ainda que a relação de causalidade fosse inversa» [42]. Bairoch acrescenta que até 1860, no continente europeu, só alguns países que perfaziam menos de 10 % da população europeia continental tinham adoptado uma política de livre-cambismo: os Países Baixos, a Dinamarca, Portugal, a Suíça, a Suécia e a Bélgica. E não esqueçamos que os EUA permaneceram proteccionistas ao longo de todo o século 19 (e assim continuaram em grande parte no século 20).
Georges Canning, uma das principais figuras políticas britânicas [43], escreveu em 1824: «O negócio está feito: a América Hispânica é livre; e se nós não fizermos descarrilar os nossos negócios, ela é inglesa». Treze anos mais tarde, o cônsul inglês na região do rio da Prata, Woodbine Parish, podia escrever com propriedade, ao descrever um gaúcho da pampa argentina: «Examinem todas as peças do seu vestuário, tudo o que o rodeia, e, exceptuados os objectos de couro, o que encontram que não seja inglês? Se a mulher vem de saia, há noventa e nove por cento de probabilidade que tenha sido fabricada em Manchester. A panela ou a marmita onde cozinha, o prato de faiança onde come, a faca, as esporas, o freio do cavalo, o poncho que o cobre, tudo veio de Inglaterra» [44].
Para alcançar este resultado, a Grã-Bretanha não teve de recorrer à conquista militar (ainda que, quando assim achou necessário, não tenha hesitado em usar a força). Utilizou duas armas económicas muito eficazes: o crédito internacional e a imposição do abandono do proteccionismo.
As crises da dívida externa na América Latina, do século 19 ao século 21
Desde a sua independência nos anos 1820, os países da América Latina passaram por quatro crises da dívida.
A primeira estalou em 1826, em consequência da primeira grande crise capitalista internacional, que começou em Londres em dezembro de 1825. Esta crise da dívida prolongou-se até aos anos 1840-1850.
A segunda teve início em 1876 e terminou nos primeiros anos do século 20. [45]
A terceira começou em 1931, no seguimento da crise que estalou em 1929 nos EUA. Terminou em finais da década de 1940.
A quarta estalou em 1982, como reflexo da reviravolta da Reserva Federal dos EUA (Fed) em matéria de taxas de juro, combinada com a queda dos preços das matérias-primas. Esta quarta crise terminou em 2003-2004, quando o aumento dos preços das matérias-primas engrossou fortemente os rendimentos [46] em divisas. Os países da América Latina beneficiaram também da forte queda das taxas de juro internacionais decidida pela Fed, logo imitada pelo Banco Central Europeu (BCE) e pela banca de Inglaterra, a partir da crise bancária do Norte, que começou em 2008-2009.
Vem aí uma quinta crise.
As origens das crises da dívida do Sul e os momentos em que elas rebentam prendem-se com o ritmo da economia mundial e dos países do Norte
As origens destas crises e os momentos em que elas rebentam prendem-se com o ritmo da economia mundial e principalmente com os países mais industrializados. Cada crise da dívida foi precedida por uma fase de sobreaquecimento da economia dos países mais industrializados do Centro, durante a qual houve uma superabundância de capitais, uma parte dos quais foi canalizada para as economias da Periferia.
As fases preparatórias do rebentamento da crise, durante as quais a dívida aumenta fortemente, correspondem sempre ao fim de um ciclo longo de expansão dos países mais industrializados, salvo no caso presente, pois desta vez não se pode dizer que tenha havido um ciclo longo de expansão, excepto no caso da China. A crise é geralmente provocada por factores exteriores aos países periféricos endividados: uma recessão ou uma queda financeira brutal que afecta as principais economias industrializadas, uma mudança das taxas de juro decidida pelos bancos centrais das grandes potências nesse momento da História.
O que se disse mais acima entra em contradição com a narrativa das crises que domina o pensamento económico-histórico [47] e que é veiculado pelos grandes meios de informação e pelos governantes. Segundo a narrativa dominante, a crise que rebentou em Londres em dezembro de 1825 e alastrou às outras potências capitalistas resultou do sobreendividamento dos estados latino-americanos; a dos anos 1870, do sobreendividamento da América Latina, do Egipto e do Império Otomano; a dos anos 1890, que quase provocou a falência de um dos principais bancos britânicos, do sobreendividamento da Argentina; a dos anos 2010, do sobreendividamento da Grécia e dos «PIGS» (Portugal, Irlanda, Grécia, Espanha).
Notas da parte III
[28] Ver http://cadtm.org/A-Grecia-independente-nasceu-com e http://cadtm.org/Grecia-La-continuidad-de-la.
[29] Ver Sophie Perchellet,Haïti. Entre colonisation, dette et domination, CADTM-PAPDA, 2010. http://cadtm.org/Haiti-Entre-colonisation-dette-et. «Portaria do rei de França de 1825», «Artigo 2: Os habitantes actuais da região francesa de Saint-Domingue depositarão na Caisse des Dépôts et Consignations de France em cinco partes iguais, a cada ano, a contar de 1 de dezembro de 1825, a quantia de cento e cinquenta milhões de francos, destinada a compensar os antigos colonos que reclamam uma indemnização». Esta quantia subiu para 90 milhões de francos alguns anos mais tarde.
[30] Éric Toussaint, «Dívida: a Arma Que Permitiu à França Apropriar-se da Tunísia», 12/08/2016, http://cadtm.org/Divida-a-arma-que-permitiu-a.
[31] Éric Tousssaint, «A Dívida como Instrumento de Conquista Colonial do Egipto», 27/07/2016, http://cadtm.org/A-divida-como-instrumento-de.
[32] Louise Abellard, «L’Empire Ottoman face à une “troïka” franco-anglo-allemande: retour sur une relation de dépendance par l’endettement», 17/10/2013, http://cadtm.org/L-Empire-Ottoman-face-a-une-troika
[33] Éric Toussaint, «Rússia: Origem e Consequências do Repúdio das Dívidas de 10 de Fevereiro de 1918», 15/02/2021, 15429.
[34] Periféricos em relação às principais potências capitalistas europeias (Grã-Bretanha, França, Alemanha, Países Baixos, Itália, Bélgica) e aos Estados Unidos.
[35] Jacques Adda é um dos autores que chama a atenção para isto. Ver Jacques Adda. 1996. La Mondialisation de l’économie, tomo 1, p. 57-58.
[36] Para saber mais sobre os outros factores além do não recurso à dívida externa, ler Perry Anderson, L’État absolutiste. Ses origines et ses voies, t. 2, p. 261-289, sobre a passagem do feudalismo ao capitalismo no Japão. Por seu lado, Carmen M. REINHART e Christoph TREBESCH fazem notar que efectivamente o Japão não recorreu ao endividamento externo e saiu-se melhor que os outros. Ver Carmen M. REINHART e Christoph TREBESCH, The Pitfalls of External Dependence: Greece, 1829-2015, Brookings Papers.
[37] Kenneth Pomeranz, que faz questão em sublinhar os factores que impediram a China de se tornar uma das grandes potências capitalistas, não atribui importância à dívida externa, sendo verdade que centra o seu estudo no período anterior a 1830-1840. A sua análise é no entanto muito rica e inspiradora. Ver Kenneth POMERANZ (2000), The Great Divergence, Princeton University Press, 2000, 382 p.
[38] Luxemburgo, Rosa. 1969. A Acumulação do Capital. Ed. Civilização Brasileira, 2021; ed. Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1970, disponível on-line em https://gpect.files.wordpress.com/2013/11/a-acumulac3a7c3a3o-do-capital-rosa-luxemburgo.pdf (consultado em 27/12/2021).
[39] Eduardo Galeano traça um quadro concreto e imaginado dessa destruição no seu precioso livro As Veias Abertas da América Latina (1970), que até hoje continua a ser a melhor e mais acessível apresentação das diversas formas de dominação e espoliação sofridas pelos povos da América Latina. Esta obra é solidamente documentada e mostra as responsabilidades das classes dominantes, tanto as do Velho Mundo quanto as do Novo Mundo.
[40] Ver Bairoch, Paul. 1993. Mythes et paradoxes de l’histoire économique, La Découverte, Paris, 1999, p. 37.
[41] Ver BRITTO, Luis, El pensamiento del Libertador – Economía y Sociedad, BCV, Caracas, 2010.
[42] Ver Bairoch, Paul. 1993. Mythes et paradoxes de l’histoire économique, op. cit., p. 37.
[43] George Canning, alto funcionário do Ministério dos Negócios Estrangeiros, viria a ser primeiro-ministro em 1827. Ver https://fr.wikipedia.org/wiki/George_Canning.
[44] Woodbine Parish, Buenos Aires y las provincias del Rio de la Plata, Buenos Aires, 1853. https://books.google.be/books?id=jBYOAAAAYAAJ&printsec=frontcover&hl=fr#v=onepage&q&f=false. Citado por Eduardo Galeano, p. 245-246.
[45] A Venezuela, que recusou reembolsar a dívida, viu-se arrastada para um verdadeiro braço-de-ferro com os imperialismos norte-americano, alemão, britânico e francês, que enviaram em 1902 uma frota militar multilateral para bloquear o porto de Caracas e obter, por meio da política da canhoneira, o compromisso venezuelano de retomar o reembolso das dívidas. A Venezuela só acabou de pagar essa dívida em 1943. Ver Pablo Medina et al. 1996. «ABC de la deuda externa», p. 21-22, p. 37, p. 50.
[46] PT-BR: renda. O português europeu distingue «renda» de «rendimento». A primeira é um provento resultante da propriedade de um bem, sem intervenção de actividade produtiva, como acontece com o aluguer de moradias, de terras ou de dinheiro; o segundo inclui a totalidade dos proventos, sejam eles resultantes do trabalho ou da exploração do trabalho.
[47] Ver nomeadamente os escritos de Sismondi e de Tougan Baranovsky no século 19, assim como os grandes títulos de imprensa dessa época e os discursos dos governantes europeus coetâneos.
1 Nota da edição brasileira – burguesia compradora é a fração cujos interesses estão diretamente subordinados aos do capital estrangeiro e que serve de intermediária direta para a implantação e reprodução do capital estrangeiro no interior duma formação social. (https://www.ufrgs.br/odela/2020/09/29/ensaio-sobre-a-burguesia-associada-no-brasil/)
Comentários