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BRASIL

Em 2022, adiar o fim do mundo

Enchentes no Sul da Bahia e a crise ecológica

Vanessa Monteiro Cunha*, de Niterói, RJ
Fernando Vivas/GOVBA

A pior chuva dos últimos 32 anos na Bahia já deixou mais de 500 feridos e 90 mil pessoas desabrigadas ou desalojadas. São 151 municípios sob decreto de situação de emergência e 25 mortos até o momento, segundo dados divulgados pela Superintendência de Proteção e Defesa Civil (Sudec) da Bahia.

Especialistas apontam causas diversas para as fortes chuvas. Os principais fatores são o fenômeno La Niña, que esfria águas do Pacífico equatorial, causando aumento de chuvas no centro-norte do Brasil; e a combinação da Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS), um corredor de umidade que surge na Amazônia e vai em direção a Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, com a formação de uma área de baixa pressão no Oceano Atlântico, um evento meteorológico que é marcado pela formação de nuvens, ventos, tempestades e agitação marítima [1].

Fato é que vivemos tempos onde desastres como o que presenciamos tendem a ser cada vez menos atípicos, reflexo direto da crise climática. O ano de 2021 foi o ano com a maior ocorrência de eventos extremos da história segundo relatório preliminar da Organização Meteorológica Mundial (WMO) [2]. Incêndios no Mediterrâneo, calor de 50 graus no Canadá, a maior nevasca registrada na cidade de Madri ocorreu em janeiro de 2021 e em agosto a cidade registrou a temperatura mais alta já medida, assim como hemisfério norte da América neste momento enfrenta condições climáticas extremas com calor recorde no Alasca e, há poucos quilômetros, as temperaturas mais frias do último século no Canadá.

O relatório do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas) pulicado em agosto de 2021 aponta, pela primeira vez, que a ação humana é responsável por 98% da elevação de temperatura da Terra e consequentes alterações de padrões meteorológicos por atividades como queima de combustíveis fósseis e desmatamento. Porém, na contramão da crise ecológica, avança o desmantelamento das leis de proteção ambiental no país e a produção desenfreada em busca de lucro, como ditam as leis do capital. Assim, a tragédia que ocorre no sul da Bahia está intimamente ligada a um modo de produção incompatível com as condições de reprodução de vida na Terra.

Lucro acima da vida: mineração e monocultura devastam a Bahia

A Bahia é o estado do país que mais investiu em mineração, ocupando mais da metade dos municípios com a atividade extrativista. O governo da Bahia, sob a gestão de Rui Costa (PT), investiu R$ 600 milhões em pesquisa mineral em apenas dois anos (2019-2020) segundo dados do Observatório da Mineração [3]. Se considerarmos os gastos desde 2010 até 2020, foram mais de R$1,8 bilhão. Os impactos da mineração em termos de desmatamento, seca de nascentes e cursos d’água, contaminação de ar e solo, além do impacto social são comprovados e inevitavelmente levam ao agravamento da crise ecológica.

No site da Companhia Baiana de Pesquisa Mineral (CBPM) [4] são propagandeadas as oportunidades “de investimento minerais mais promissoras” do estado, que atraiu apenas em 2021 mais de 50 empresas para iniciarem a produção mineral; bem como o crescimento de 60% do setor pelo segundo ano consecutivo. O faturamento da mineração baiana apenas no terceiro trimestre de 2021 foi de mais de R$ 2 bilhões[ 5], sendo o estado líder em produção de 18 minerais.

A região já é atingida pelos projetos minerais. O projeto Porto Sul, em Ilhéus, inclui um complexo portuário, uma mina de minério e a ferrovia Oeste-Leste. O terminal, previsto para inauguração em 2026, terá capacidade de escoar até 42 milhões de toneladas por ano de minério e grãos. O complexo ocorre dentro da área de proteção ambiental (APA) de Lagoa Encantada e Rio Almada e seus impactos naturais e humanos já são sentidos com o desmatamento, moradores que perderam suas casas e comunidades de pescadores e pequenos agricultores que perderam seus meios de sustento[6].

No Itariri, 17 hectares de Mata Atlântica estão sendo derrubados para dar lugar a estrada que ligará a ferrovia ao retroporto, deixando nascentes expostas. Os relatos são de que a estrada foi aberta no trecho mais importante das nascentes. Assim como muitas empresas, a CBPM busca dar uma roupagem “ecológica” para sua atividade extrativista, denominando-a como “sustentável”.

Além dos projetos minerais, a região também é atingida pelo monocultivo de eucalipto que forma gigantescos “desertos verdes”. A empresa Suzano, maior produtora global de celulose de eucalipto [7], é responsável por 1,3 milhão de hectares de plantio concentrados em grande parte no sul da Bahia e Espírito Santo. O povo indígena Pataxó, comunidades quilombolas e pequenos agricultores vivem a seca, contaminação de rios, esgotamento do solo e insegurança fundiária ocasionada pela monocultura [8]. No Espírito Santo, em quatro das 32 áreas de comunidades quilombolas reconhecidas há mais de uma década pela Fundação Palmares há plantação de eucalipto, que aguardam a titularização de suas terras… sem perspectiva sob este governo.

Jorge Feffer, bilionário acionista da Suzano, tem uma longa história de crimes ambientais e uma estreita relação com o movimento bolsonarista. Feffer foi um dos patrocinadores do Movimento Endireita Brasil, presidido por Ricardo Salles. Salles, quando era secretário do Meio Ambiente em São Paulo, foi acusado pelo Ministério Público do Estado de São Paulo por tentar alterar de maneira irregular o Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) Várzea do Rio Tietê para “passar a boiada” e favorecer a Suzano, entre outras empresas. Carla Zambelli, que na época saiu em defesa de Salles e atualmente integra a Frente Parlamentar pela Agropecuária, recebeu de Feffer uma doação de R$ 10 mil [9].

Desmonte da legislação ambiental

Na mesma semana em que milhares sofreram com os impactos das enchentes e inundações no sul da Bahia e norte de Minas o governo Bolsonaro, com apoio da bancada ruralista e em conformidade com os interesses do mercado imobiliário, aprovou na Câmara dos Deputados a Lei 2510/2019 cujo objetivo é consolidar ocupações irregulares e antigas em áreas desmatadas com intenção de ocupar Áreas de Preservação Permanente (APP), às margens dos rios das cidades. As APPs são essenciais para a manutenção da dinâmica natural dos cursos d’água, evitando, entre outros, fenômenos como os que estamos acompanhando a Bahia e em Minas Gerais [10].

As enchentes fazem parte do processo de dinâmica dos rios e demais cursos d’água, isso sim é natural. E é por este motivo que áreas onde se encontram as matas ciliares são consideradas Áreas de Preservação Permanente. Tais fenômenos são conhecidos e há legislações ambientais que vão desde o Código Florestal Brasileiro de 1965 até a Lei de Proteção da Vegetação Nativa de 2012 (12.651) visando a preservação destas áreas. Porém, medidas como o PL aprovado na Câmara Federal, se apoiam no crescimento desordenado das cidades, afinal, já há pessoas morando em APPs. Os mesmos que permitem o “vale tudo” nas cidades, facilitando o desmonte da legislação ambiental para lucrar com construções em áreas de risco são aqueles que depois irão responsabilizar as vítimas. A ausência de reforma urbana e a negação ao direito à moradia – problemas estruturais que nunca foram enfrentados pelo Estado, sob os distintos governos – são parte das causas da tragédia que, todo ano, atinge milhares.

Em 2022, adiar o fim do mundo

Sabrina Fernandes, fazendo uma analogia entre o filme “Não olhe para cima” e o ocorrido no sul da Bahia, alerta para a necessidade de superação tanto do negacionismo que nega e ataca a ciência quanto aquele que apresenta falsas soluções. Superar aqueles que ordenam a mineração ilegal na Amazônia, com mais de 20 mil garimpeiros operando em terra indígena yanomami é tão necessário quanto superar aqueles que investem em mineradoras em nome de um “desenvolvimento sustentável”.

O Estado brasileiro há séculos pratica o extrativismo predatório, levando ao “fim do mundo” de muitos povos originários. Ocorre que no atual estágio do capitalismo, como bem denominou Ricardo Antunes como “capitalismo virótico”, onde o sistema de reprodução sócio-metabólico do capital avança em seu caráter destrutivo e letal, estamos todos ameaçados. Estamos ameaçados pela ação do “povo da mercadoria”, etnônimo que o povo Yanomami utiliza para denominar os brancos, como lembra Ailton Krenak. Não se trata de sucumbir à ideia abstrata de “fim do mundo”, mas compreender que este modelo de civilização erguido pela premissa do capital tem seus dias contados, para o bem ou para o mal.

A tarefa histórica colocada para nossa geração, a de reinventar novos modos de vida, não parte do nada. A resistência secular dos povos indígenas, assim como as lutas antirracista, feminista, ecológica que estão em curso hoje nos apontam caminhos. A radical experiência chilena demonstra que é possível em meio aos escombros do neoliberalismo nos erguer e pavimentar um caminho de futuro, sem ilusões na falsa democracia do capitalismo. Se a luta pela sobrevivência de nossa espécie não é mais uma questão de futuro, mas de presente (olhemos para a Bahia), revolucionar o mundo para reestabelecer um metabolismo saudável entre humanidade e natureza é imperativo.

NOTAS
[1] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59617328
[2] https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/Meio-Ambiente/noticia/2021/12/retrospectiva-em-termos-climaticos-2021-foi-um-ano-de-extremos.html
[3] https://observatoriodamineracao.com.br/governo-da-bahia-gastou-r-600-milhoes-em-pesquisa-mineral-nos-ultimos-2-anos-crise-climatica-pode-se-agravar/
[4] http://www.cbpm.ba.gov.br/
[5] http://www.cbpm.ba.gov.br/mineracao-baiana-fatura-mais-de-dois-bilhoes-no-terceiro-trimestre-deste-ano/
[6] https://dialogochino.net/pt-br/infraestrutura-pt-br/49664-porto-sul-na-bahia-avanca-sobre-areas-de-nascentes-e-pesca-artesanal/
[7] https://www.moneytimes.com.br/suzano-vai-investir-quase-r-15-bi-em-nova-fabrica-de-celulose-no-ms/
[8] https://cimi.org.br/2021/08/documentario-que-mostra-o-avanco-da-monocultura-de-eucalipto-na-bahia-e-selecionado-pela-mostra-ecofalante-de-cinema/
[9] https://deolhonosruralistas.com.br/2021/03/10/suzano-e-elo-entre-carla-zambelli-e-ricardo-salles-as-faces-brasileiras-da-implosao-ambiental/
[10] https://www.ecodebate.com.br/2021/12/26/desmonte-da-legislacao-ambiental-e-as-enchentes-na-bahia-e-em-minas-gerais/

*Vanessa Monteiro Cunha é mestranda em Antropologia na Universidade Federal Fluminense (UFF).