Por um Feliz Ano Novo

Jorgetânia Ferreira, de Uberlândia, MG

Para um Ano realmente Novo é necessário construí-lo. Não será fácil, já adianto. De cara e pronto, teremos que entender mais de política. Os donos do poder trataram de dizer que política é uma coisa ruim e muita gente acreditou. Mas política é inseparável da vida humana, é a forma como nos organizamos e distribuímos o poder na sociedade. Então não só o preço da gasolina, da carne, do feijão, da energia elétrica é fruto de decisões políticas mas o fato de as meninas lavarem mais banheiros do que os meninos; os homens terem mais tempo para o descanso do que as mulheres; as mulheres apostarem mais nos casamentos do que os homens…, tudo isso é política. Então é melhor a gente ficar por dentro da política para não fazermos uma política de merda contra nós.

 Não tem como pensar em ano realmente novo com um velho problema assombrando o país: a fome. Sabe o que é não conseguir dormir por que está com fome? Ou acordar e não ter o que comer? Fruto de decisões políticas, vivemos numa sociedade que tem condição de alimentar todo o seu povo, mas a fome assola nosso país. Já passa de 50% o percentual de famílias brasileiras que não têm como se alimentar de forma suficiente, regular e adequada. Enquanto uma parte pequena vive no luxo e desperdício, a fome assusta grande parte da população. Podemos pensar que isso é resultado da pandemia. De fato houve um agravamento do que já era ruim: capitalismo, bolsonarismo.

Para fazermos um ano novo, que mereça esse nome precisamos reconhecer as mazelas da sociedade em que vivemos. Sem isso vamos continuar achando que o nosso fracasso é pessoal, e não é. Nosso fracasso é resultado de decisões políticas dos que mandam e, diga-se de passagem, decisões para as quais a gente colaborou para manter ou mudar, como o voto no Bolsonaro em 2018. Não foi apenas fake news que elegeu esse homem. Foi um desejo reacionário que diz muito sobre as raízes do Brasil que continuam muito fortes. Então é preciso olhar para essas raízes e estruturas. O racismo, o machismo, o capitalismo, o capacitismo, o etarismo estruturam a sociedade brasileira. Acredito que os homens e as mulheres fazem sua própria história, não da forma como gostariam mas a partir das condições existentes (Marx e Engels), quais sejam: desigualdade e opressão. Essas condições pesam mais sobre a população negra e indígena, sobre as mulheres, sobre as pessoas com deficiência, sobre o povo pobre, sobre as periferias, sobre as velhas, as lgbtqia+, pesa sobre a maioria. Essas estruturas são fortes e, muitas vezes, não são percebidas. Reconhecê-las é condição para mudá-las.

 Nosso fracasso é coletivo. Não se enganem com a vida do face e dos stories. Tá (quase) todo mundo mal. No fim do ano, quando é preciso mostrar que estamos bem, fica mais difícil suportar a explosão de felicidade nas redes. Com a pandemia e bolsonarismo tendo matado oficialmente 619 mil pessoas em nosso país, com tanta dor e tanto luto – vivido precariamente – com os desastres ambientais (provocados pela devastação do modelo econômico), como o que ocorre na Bahia e Norte de Minas neste fim de ano, com o desemprego assolando mais de 13 milhões de pessoas (desemprego no Brasil é o dobro da média mundial e a pior entre os membros do G20), com a inflação corroendo os salários, com a fome, endividamento altíssimo, adoecimento físico e mental, solidão, etc, etc, me parece compreensível não estarmos bem no contexto em que vivemos. Não está tudo bem. Não está nada bem.

Mas esse texto-desabafo de fim de ano não quer provocar mais tristeza, é preciso reconhecer a realidade, mesmo sendo difícil. Ainda mais pra mim que sou de Peixes. Seria mais fácil falar do mar de oportunidades que se abre em 2022 e elas realmente existem. Seria mais fácil acreditar que alguém pode nos salvar em 2022. Eu preciso dizer que a mudança que o Brasil precisa não é tarefa para apenas uma pessoa, um partido, um líder. Acreditar que alguém pode nos salvar dialoga muito com a história do Brasil, com a ideia do pai que salva e essa foi a educação romântica que nós mulheres recebemos desde a nossa tenra infância, provavelmente desde a barriga da mamãe. Ninguém vai nos salvar. Mesmo com a possível eleição de Lula, que evidentemente é a melhor e mais viável alternativa que temos nas eleições de 2022, mesmo com o entusiasmo daqueles que já puseram um salto alto para a posse, ainda tem muito chão para caminhar. Vai depender muito de nós, dos nossos esforços, do nosso trabalho. Nas eleições de 2018 o povo votaria em Lula ou em Bolsonaro. Foi preciso tirar Lula do jogo. O jogo de 2022 está só começando e não podemos continuar reféns das decisões dos de cima. É preciso entrar no jogo e jogar.

Para fazermos um ano novo que realmente mereça esse nome vamos ter que acreditar nas mulheres. Vamos ter que reconhecer que o melhor para o enfrentamento à covid no Brasil e no mundo vem das mulheres, seja das cientistas, das trabalhadoras da limpeza, das enfermeiras, das mulheres das cozinhas comunitárias, das que estão a frente dos governos. Não há nenhuma saída sem considerar o que historicamente as mulheres produziram. Tudo, tudo de bom que está sendo produzido tem a presença das mulheres. E, para equilibrar esse jogo, nós mulheres precisamos ocupar todos os espaços, inclusive do poder político institucional porque arcar com as consequências das políticas nefastas, sem definir os rumos da política está pesado demais para nós. E, entre nós mulheres, vamos ter que cultivar o amor, apostar na sororidade real, como nos inspira a nossa amada bell hooks, que se foi recentemente mas tanto nos legou. Num mundo que não gosta das mulheres, que tudo em nós precisa ser combatido (vide o boom das cirurgias plásticas durante a pandemia) o amor entre as mulheres é transformador.

Para fazermos um ano realmente novo vamos ter que reconhecer que vivemos em um país racista, que a escravização durou quase quatro séculos e suas marcas colonialistas e escravistas permanecem. Reconhecer coletivamente o racismo como estrutural e estruturante da sociedade brasileira é condição para lidar com essa ferida e ter chance de superá-la. O ano novo exige uma aprendizagem e um compromisso com a luta antirracista. É dos saberes das mulheres negras e indígenas, das experiências de aquilombamentos, de cuidado e proteção que podemos construir um ano novo.

A pandemia acentuou as desigualdades e opressões. Elas estavam ali e agora estão mais explícitas. Do governo brasileiro vem a posição de que pessoas com deficiência atrapalham a aprendizagem dos/as demais estudantes. Na minha cidade, Uberlândia, o prefeito Odelmo Leão e a secretária de educação Tânia Toledo não querem matricular estudantes com deficiência e com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA). É a versão local da política de exclusão bolsonarista. A violência cresceu assustadoramente, especialmente contra a juventude negra, mulheres, lgbtqia+, pessoas com deficiência, velhos/as e crianças. É preciso cessar a violência.

Para um ano verdadeiramente novo vamos ter que rever o que pensamos sobre o amor e o lugar de cada pessoa nesse processo. A heterossexualidade não poderá mais ser compulsória e precisamos enxergar que estamos impondo um amor a partir de um padrão racista, machista, capacitista, idadista, lbgtffóbico. Tem exceções né? Mas é fruto de muito esforço e confirma a regra. Sem essa revisão a maior parte das pessoas continuarão sendo apenas objetos dos homens, que esses sim, costumam devotar muito amor uns aos outros.

Eu desejo que 2022 seja o começo de um novo tempo. Que as mulheres, que sempre cuidam possam dedicar um tempo para cuidar de si mesmas. Que nas cozinhas comunitárias, os homens também peguem no pesado, que cozinhem junto e que o combate à fome seja nossa prioridade coletiva: se tem gente com fome, dá de comer. Que nossas crianças sejam logo vacinadas para que o ano escolar de 2022 não tenha como principal marca a morte, como ocorreu nestes dois últimos anos. Que os movimentos sociais, possam se articular e se enraizar nas comunidades para que o tráfico e os vendilhões do templo não sejam as alternativas para quem não tem mais esperanças. Que desde 1º de janeiro de 2022 a gente faça um grande campanha, tipo vira voto de 2018, para que Lula seja eleito e trabalhemos por uma frente de esquerda, por que de vice traíra já temos a péssima experiência com Temer.

Meu sonho de ano novo é um país sem fome, com vacinas e sem Bolsonaro. É ver a bola da criança livre e povo com acesso à cultura e às artes.

Um Feliz Ano Novo é um sonho. Sigo com Paulo Freire: “sonhos são projetos pelos quais se luta. Sua realização não se verifica facilmente, sem obstáculos. Implica, pelo contrário, avanços, recuos, marchas às vezes demoradas. Implica luta”. Feliz Ano Novo.

Feliz Ano Novo! Saúde, amor, cuidado e disposição para as lutas!

 ps. Ainda precisa usar máscara, se tiver sintoma de gripe ou covid não saia por aí passando pros coleguinhas.


*Texto publicado originalmente na coluna no Mídia Ninja.