A esquerda latino-americana acompanhou com apreensão os últimos dias da campanha eleitoral chilena, em um cenário extremamente polarizado e, segundos as pesquisas, indefinido. Abertas as urnas, a pequena vantagem para Gabriel Boric se transformou em uma vitória histórica e inquestionável. Ele recebeu 55,87% dos votos contra 44,13% de José Antonio Kast, candidato da extrema direita. Boric venceu em quase todas as regiões e em algumas a vitória foi ainda maior, como na Região Metropolitana, com 60,33% dos votos, e em Valparaíso, com 59,33%. Imediatamente sua vitória foi reconhecida pelo adversário e uma multidão tomou as ruas de Santiago e das principais cidades do país, com bandeiras, festas e buzinaços.
Entre o La Moneda e a Praça Itália (batizada de Praça Dignidad nos protestos de 2019), centenas de milhares celebraram a vitória de Boric. Uma cifra só comparável a dos maiores protestos do país. A felicidade é proporcional à expectativa sobre Boric, um jovem de 35 anos, tatuado, que se formou politicamente nas lutas estudantis e cujo partido foi legalizado há apenas um ano. Mas o que explica a sua vitória?
Um aspecto indiscutível do resultado foi o comparecimento à urnas. Com 8 milhões e 320 mil votantes, este foi o recorde de comparecimento em uma eleição, em um país onde o voto não é mais obrigatório. No segundo turno, 55% dos eleitores votaram, contra 47% de comparecimento na primeira volta. O comparecimento recorde ocorreu mesmo com o boicote de empresários de transporte na Grande Santiago, que retirou parte da frota das ruas. “A campanha aqui terminou quinta-feira. A gente andava pela rua e não havia sinal de campanha, não tinha um papel. Não sabia o que ia acontecer. Mas no dia, as pessoas saíram de casa para votar e, diante da falta de transporte, organizaram esquemas solidários, de transporte voluntário”, conta o professor João Zafalão, da Apeoesp e militante do PSOL, que viajou ao país acompanhando a eleição.
Boric, que passou ao segundo turno como segundo colocado, conseguiu um feito eleitoral que pode ser explicado pela combinação de diversos fatores. Acima de tudo, conseguiu expressar a força do estallido social que sacudiu o Chile em 2019 e encurralou o governo de Sebastian Piñera. Sua candidatura representou as diversas lutas que sacudiram o Chile desde 2011, como as da juventude pela educação pública (da qual ele é um representante direto, como ex-líder estudantil), as lutas dos povos originários por seus territórios e culturas, as mobilizações feministas contra o patriarcado e a violência de gênero, as pautas LGBTQI+s e ecológica, entre outras bandeiras caras às gerações que tomaram as ruas nos últimos anos. Ainda que com limites de sua candidatura, é possível afirmar que a força do ativismo abraçou a campanha neste segundo turno, em especial a juventude, e garantiu a vitória, repetindo o que ocorrera na eleição para a Constituinte, quando a direita e a extrema direita ficaram em minoria, e expressando o desejo de uma agenda política de mudanças.
Sua candidatura conseguiu expressar a força do estallido social não apenas junto aos setores que estão diretamente em luta, mas junto a população dos bairros pobres, aos trabalhadores mais precarizados, empobrecidos. Ao contrário do que ocorrera no Brasil, lá o voto silencioso ocorreu a favor da esquerda. Nos bairros e municípios pobres das regiões urbanas, sua vitória já havia ocorrido no primeiro turno e se tornou mais expressiva neste segundo turno.
Esse resultado parece dialogar com a motivação fundamental dos levantes chilenos, que é a revolta com um modelo econômico neoliberal onde todos os bens naturais e direitos – água, saúde, educação – foram transformados em mercadoria e as famílias, em grande maioria, vivem endividadas. Ao que tudo indica, apesar do crescimento da extrema direita entre os setores populares, a esquerda conseguiu simbolizar o sentimento de mudança e se apresentar como uma alternativa para se alcançar uma vida melhor, para que a “dignidade se torne costume”, como no lema dos protestos de 2019.
Apenas as regiões mais ricas da Grande Santiago deram a vitória para Kast.
Outro aspecto que explica a vitória de Boric foi a capacidade de atrair os votos e apoios do centro, centro-esquerda e ainda a centro-direita, como ficou expresso nos apoios da Democracia Cristã, do PS e da ex-presidente Michelle Bachelet. A conquista do apoio desta fatia do eleitorado para Boric mostrou a derrota da narrativa de medo que seu adversário tentou impor no segundo turno, associando sua candidatura a violência e desordem, enquanto oferecia um cenário de paz social, para os eleitores saudosos da “ordem” imposta durante ditadura pinochetista, em especial entre as classes favorecidas, que criaram cordões de segurança em seus bairros ricos durante os protestos de outubro. “A esperança venceu o medo”, afirmou Boric em seu discurso de vitória, em resposta a campanha suja que tomou conta das redes sociais contra ele e o fantasma do comunismo.
Boric virou o medo a seu favor, conquistando os votos do centro e associando a candidatura de Kast aos horrores da ditadura pinochetista. O medo de um retorno ao autoritarismo fortaleceu o voto anti-kast fazendo o eleitorado de centro penderem a seu favor, ainda que não concordem integralmente com a agenda das ruas e de sua campanha. Movimento que pode ter atingido ainda eleitores que haviam optado no primeiro turno por alternativas da direita, mas que votaram em Boric pela sua defesa da democracia, contra o perigo representado por um neofascista como Kast e pela volta dos tempos sombrios da ditadura, em um voto de caráter plebiscitário, que deu mais um golpe no pinochetismo, cuja herança voltou ao centro do debate com a morte de sua viúva, Lucía, a três dias da eleição.
Da mesma forma, contou a seu favor os comícios e atividades promovidas em diversas regiões do país, em uma caravana vitoriosa em busca dos eleitores indecisos e que haviam deixado de votar na primeira volta, em especial no Sul do país.
Um governo diante de muitos desafios
Boric fez um discurso de posse prometendo as mudanças sociais que o país necessita, com uma agenda sintonizada com as ruas. Pediu apoio para que a massa que o assistia seguisse sustentando essas mudanças e a nova constituinte. Mas, após as merecidas comemorações, sua coalizão irá se deparar com muitos desafios e obstáculos. O discurso do medo e a chantagem do mercado já começaram, com a alta do dólar e a queda nas bolsas de valores no dia seguinte à vitória, em especial das companhias de mineração, recurso natural valioso para a economia chilena, hoje em mãos privadas. Além das mãos do mercado, o novo governo irá se deparar com uma minoria no congresso eleito, com uma maioria da direita, que pode atuar bloqueando suas pautas, ao contrário da Assembleia Constituinte, de maioria progressista.
“A primeira e grande tarefa do governo será a vitória do Si no plebiscito sobre a nova Constituição, que está sendo redigida por uma Câmara em que a esquerda tem 2/3 das cadeiras, uma relação de forças muito distinta do Congresso. O governo e a nova Constituição precisam romper com a ordem neoliberal e abrir um futuro de dignidade para o Chile”, afirma Deborah Cavalcante, secretária de Relações Internacionais do PSOL, que acompanhou a eleição.
Seu maior desafio, entretanto, será o combate às ideias do candidato derrotado, ao peso do neofascismo na sociedade chilena, que alcançou peso de massas, distantes de resultados de um dígito em eleições anteriores, e conquistou mentes e corações de milhares, também entre os setores populares. Boric precisará disputar com essa força política, que, apesar de dizer o contrário, atuará em oposição inclemente ao novo governo, articulado com a extrema-direita mundial.
Neste sentido, Boric precisará governar de fato com os “pés nas ruas”, como anunciou em seu discurso. Ou seja, seu governo precisará se apoiar na mobilização dos trabalhadores, das mulheres e da juventude, caso queira impor as mudanças e recuperar a dignidade ao povo chileno. Preocupa, nesse sentido, parte de seu discurso, quando afirma que “buscará pontes” com todos os setores da sociedade, inclusive Kast. Resta saber se o trecho do discurso foi somente uma expressão de uma tradição política chilena, de agradecer e dialogar com os derrotados, ou se de fato Boric e a Frente Ampla acreditam realmente ser possível esse diálogo. Como aprendemos com o bolsonarismo no Brasil e com as lições da história do século passado, não há pontes ou diálogos possíveis com o fascismo.
De todo modo, como afirmou Guilherme Boulos, que integrou a caravana do PSOL ao Chile, é hora de comemorarmos: “Que a derrota de Kast ajude a enterrar o ciclo da extrema direita no continente e que anuncie a derrota de Bolsonaro em 2022”.
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