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BRASIL

Os desafios dos socialistas para as eleições de 2022 no Rio de Janeiro

Resistência/PSOL – Rio de Janeiro
Tomaz Silva/ Agência Brasil

Comunidade da Rocinha.

O Estado do Rio de Janeiro é dotado de um amplo potencial econômico, respondendo por 11% do PIB brasileiro, segundo dados do IBGE de 2015, menor apenas que São Paulo. Possui um significativo parque industrial para a escala brasileira, dispõe de importantes recursos naturais e conta com uma relevante rede de serviços, expressa, por exemplo, pelo elevado número de hospitais de alta complexidade e de universidades públicas. A observação descontextualizada de tais elementos, entretanto, oculta uma realidade de decadência secular. Com efeito, desde que perdeu a liderança industrial do país, ainda nos anos 1920, o estado tem experimentado uma trajetória de escasso planejamento e ciclos de estagnação econômica, baseado em enorme desigualdade social.

Como aprofundamento dessa dinâmica de decadência, que se acumula há décadas – e teve como outro de seus momentos importantes a transferência do Distrito Federal para Brasília, em 1960 –, o estado foi particularmente afetado pela dinâmica neoliberal, que avançou no país ao longo dos últimos trinta anos, e sofreu diretamente com a crise orgânica desenvolvida desde 2013. Nesse cenário, é tarefa dos/as socialistas elaborar um projeto capaz de reverter a tendência de crise secular, sem ter como objetivo simplesmente melhorar a condição relativa do Rio na disputa econômica interestadual, mantendo intactos os fundamentos do modelo neoliberal. Pelo contrário, tal projeto deve almejar ser um ponto de apoio para a mobilização da classe trabalhadora a nível estadual e nacional no enfrentamento direto ao neoliberalismo e, de maneira mais geral, ao capitalismo em todas as suas formas e expressões.

De modo a contribuir com essa tarefa, o presente texto aborda três questões que singularizam a realidade fluminense na crise orgânica em curso e determinam de maneira decisiva sua atual situação. Além de delinear os contornos gerais, trata-se de avançar em termos de formulação, oferecendo propostas programáticas que podem compor um projeto dos/as socialistas a se expressar nas lutas cotidianas e nas eleições estaduais de 2022. Esse é um primeiro texto elaborado pela Resistência RJ como contribuição aos desafios em curso, com a perspectiva da publicação de outras notas temáticas, debatendo um programa feminista para o estado, sobre educação, saúde, entre outros.

1 – O regime de recuperação fiscal e a armadura neoliberal do Estado

Um dos resultados mais diretos da crise econômica dos últimos anos foi a deterioração da situação fiscal fluminense, que levou à decretação do estado de calamidade pública no tocante à administração financeira, em 2016. Na passagem para 2017, a relação entre dívida consolidada e receita corrente líquida ficou próxima de 300%, evidenciando a profundidade das dificuldades.

Sob o pretexto de solucionar esse problema, o então governador Luiz Fernando Pezão (MDB) assinou, em 2017, a adesão do estado ao Regime de Recuperação Fiscal (RRF) dos Estados proposto pelo governo federal (o Rio foi o único a aderir). Assim, em troca da suspensão temporária do pagamento da dívida com a União e garantias para o acesso a um empréstimo bancário, o governo se comprometeu com um pacote de ajuste fiscal, incluindo redução das isenções fiscais, privatizações e aprovação de uma Lei de Responsabilidade Fiscal em âmbito estadual, dentre outras condições.

Em 2021, foi aprovada a prorrogação da vigência do RRF, sob novas regras, com ampliação do período de suspensão de pagamento da dívida com a União e efetivação da privatização da CEDAE, que não fora concretizada no primeiro momento. Ainda assim, as contas seguem apresentando amplo déficit – agravado pela pandemia da Covid-19 – e o espaço para investimentos é reduzido, o que tem justificado novos ataques ao regime previdenciário do funcionalismo.

Na prática, o RRF nada mais é do que uma atualização da armadura neoliberal do Estado brasileiro, aprofundando a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF, 2000) e a Emenda Constitucional do Teto de Gastos (2016). Seu objetivo é colocar o fundo público a serviço da acumulação capitalista, seja pela priorização da remuneração do capital financeiro (via juros e serviços das dívidas públicas), seja pela abertura de novas áreas de acumulação (privatizações, parcerias público-privadas, etc). Os resultados mais imediatos são o aprofundamento do sucateamento dos serviços essenciais (como saúde, educação, saneamento) pela redução de investimentos e da remuneração dos servidores.

Sendo assim, o completo repúdio e a defesa da revogação do RRF precisam ocupar lugar de destaque em um programa encampado pelos/as socialistas. Trata-se de condição necessária para começar a enfrentar as desigualdades que nos assolam, e pode, indo além, funcionar como um primeiro degrau no questionamento da armadura neoliberal do estado.

2 – A indústria do petróleo e o papel da Petrobras

A indústria do petróleo desempenha significativo papel na economia fluminense, não apenas em função de sua produção direta, como também de seu papel dinamizador de outros setores, como, por exemplo, a indústria naval. A partir de 2016, entretanto, o impacto da Lava-Jato, que teve a Petrobras como seu alvo principal, afetou diretamente a indústria petrolífera nacional, travando projetos em andamento, afastando investimentos e aprofundando a ingerência estrangeira. No caso do Rio, a expressão mais emblemática desse processo foi a paralisação das obras do Comperj, que constituía um dos maiores investimentos da história da Petrobras.

Já sob a gestão Bolsonaro, a empresa tem recuperado parte de sua lucratividade, mas às custas da redução de seu horizonte de atuação às necessidades imediatas dos acionistas, ignorando as demais repercussões econômicas e sociais. Com efeito, a política de paridade de preços internacionais (PPI), ao atrelar o valor do barril de petróleo internamente às oscilações do mercado internacional, tem contribuído diretamente para a aceleração da inflação, que corrói as condições de vida da classe trabalhadora. O Comperj, por sua vez, nunca teve seu projeto original finalizado, resultando em milhares de desempregados/as e na desarticulação econômica local e regional.

Em função de seu peso, a indústria do petróleo precisa receber destacada atenção de um programa socialista para o Rio. O estado precisa atuar para pressionar a Petrobras a reverter sua política de preços, subordinando a remuneração dos acionistas aos interesses da classe trabalhadora. É também fundamental que os royalties obtidos com a produção do petróleo sejam investidos em projetos de interesse social, com destaque para as iniciativas de transição energética que contribuam para o enfrentamento da crise ambiental e suas repercussões no estado.

3 – A segurança pública e a política de morte do governo

A tendência secular de crise, aprofundada por três décadas de neoliberalismo, resultou em um quadro social dramático para a população. Atualmente, de acordo com o IBGE, a taxa de desemprego encontra-se em 19,4%, um patamar bastante superior à já elevada média nacional, de 14,7%. São mais de 1,6 milhão de desempregados/as. Mesmo entre os/as empregados/as, a região metropolitana reúne o maior contingente de informais, desprovidos/as de direitos e com remunerações reduzidas. As expressões mais dramáticas disso já são visíveis, como aumento de pessoas em situação de rua, redução do consumo de carne, etc, atingindo de forma mais dura os setores oprimidos da classe, como negras e negros, mulheres e população LGBT+, que são as/os primeiras/os nas filas de demissões, as/os mais envolvidas/os em relações informais de trabalho e mais atingidos pela pobreza.

Ao longo das últimas décadas, tem se desenvolvido no estado uma ampla gama de formas de gestão violenta dessa classe trabalhadora, crescentemente pauperizada e precarizada, que conjuga forças estatais, paraestatais e facções do comércio varejista de drogas. Tais forças apresentam indícios de hibridização (com as milícias assumindo padrões das facções e vice-versa), bem como atuam de maneira articulada (entre polícia, milícias e facções), ainda que disputem entre si. Isso se alicerça em três pilares fundamentais, o controle territorial – em especial, de favelas e periferias, marcadamente territórios negros –, sufocando a organização coletiva; o exercício de atividades altamente lucrativas (construção habitacional ilegal, comércio varejista de drogas, transporte alterativo, etc); e a violação de direitos humanos, culminando com o direito à própria vida. Não à toa, sua expressão mais trágica é o genocídio da população jovem e negra. Nesse contexto, a Chacina do Jacarezinho está longe de ser um caso isolado, sendo um episódio extremo da política de morte que nos governa.

A presença de áreas de concentração da população trabalhadora pobre e negra em meio a regiões valorizadas tornam a questão ainda mais presente, alimentando temores nas classes médias e burguesia, que oferecem combustível adicional à atuação arbitrária da polícia. Essa ação tem sido a tônica no Rio há décadas, estimulando uma escalada armamentista. Diante disso, o estado se configurou como um berço da corrente neofascista que se estruturou em torno da família Bolsonaro e alcançou a presidência em 2018. Esse quadro também dialoga com nosso passado colonial, sendo sede do Império e com grande concentração de escravidão urbana, gerando uma situação de contra insurreição permanente dos detentores do poder contra a maioria.

Uma política de socialistas deve se contrapor a essa orientação de guerra e enfrentar a questão pela raiz. É preciso alterar completamente a lógica que tem fundamentado a atuação das polícias. Nesse sentido, a desmilitarização da PM é um passo incontornável, que deve ser acompanhado pelo estabelecimento de fortes controles sociais – em especial, dos/as moradores/as das favelas e periferias – e da alteração dos currículos de formação dos policiais, bem como é necessário garantir a autonomia da perícia criminal, para a devida investigação dos crimes contra a vida. O governo também precisa atuar nas dimensões da segurança pública que são geridas em âmbito federal, como a legalização das drogas, o enfrentamento ao encarceramento massivo e o controle sobre o tráfico de armas.

Enfrentar o neofascismo no laboratório da barbárie neoliberal

O Rio vem assumindo, ao longo de anos, o posto de principal laboratório do neoliberalismo e da gestão da barbárie em nível nacional. Atualmente, o estado encontra-se imerso em uma situação particularmente grave, conjugando dificuldades fiscais e econômicas, crise social e elevados índices de violência. Politicamente, o estado vive uma sucessão de gestões desastrosas, que culminaram com a eleição de uma chapa alinhada ao presidente genocida, cuja ideologia neofascista se alimenta, justamente, da crise social e do enfrentamento à esquerda. Assim, derrotar o governador Cláudio Castro em sua tentativa de reeleição deve ser encarado como tarefa prioritária.

Nessa situação, é tentador para muitos apostar na diluição do programa, tornando nossa classe refém dos acordos mínimos aceitos pela burguesia. Entretanto, a via do rebaixamento programático e do quietismo das organizações populares foi o que nos conduziu à presente condição. De maneira inversa, acreditamos que apenas a força da classe trabalhadora pode apontar uma saída sólida para o labirinto atual. É preciso apostar na construção da maior unidade possível entre as organizações e partidos ao proletariado. A unidade de ação pontual com setores da burguesia que recusem a barbárie neofascista é bem-vinda, mas não deve ser confundida com compromissos que amarrem nossas mãos.

Um programa socialista para as lutas e para as eleições de 2022 deve, portanto, oferecer um horizonte de transformações que aponte para o enfrentamento efetivo dos principais problemas que caracterizam o cotidiano dos/as trabalhadores/as. Os três elementos aqui abordados, longe de exaurirem tal programa, indicam alguns aspectos que acreditamos serem centrais, tanto por sua capacidade nos bloqueios estruturais a políticas alinhadas aos interesses da nossa classe, quanto pelo impulso que podem oferecer à mobilização. Nosso desafio é nos debruçarmos sobre eles, afinando a elaboração coletiva e buscando ampliar seu potencial. Seguimos na luta, pelo Fora Bolsonaro, pelas nossas vidas e pelos nossos direitos!