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OPRESSÕES

Erguer a voz! uma homenagem à bell hooks

Elita Morais Dorvillé*, de Maceió, AL.
Foto de bel hooks na juventude. Ela é uma mulher negra, usa cabelos grandes, e ma camisa florida. Está com a mão no queixo e ao longo da face e olha para a frente.

A mulher negra que escreve essas linhas não quer falar como uma especialista. Não sou especialista em bell hooks e demarco isso para enfatizar que o meu texto é uma dedicatória, uma homenagem. Aqui falo, portanto, como uma feminista negra que foi impactada pelos escritos da bell hooks, como uma mulher negra que entendeu, graças a sua contribuição gigante e afinada a luta antirracista contra o patriarcado e o capitalismo, que amar a história que define a mim e a milhares de mulheres como eu é também RESISTÊNCIA.

Os escritos de Gloria Jean Watkins, que adotou como nome bell hooks em homenagem a sua avó (assim, no diminutivo mesmo, como uma forma de destacar o que escrevia e não seu nome), através de uma crítica aguda ao feminismo branco e a forma como ele não representava a condição de uma parcela significava das mulheres deixavam muito claro não apenas o tamanho da sua contribuição teórica e o seu ativismo, como evidenciava que ou a luta antirracista deixava de ser um mero adendo teórico que subalternizava e excluía as mulheres negras, ou não seria possível enfrentar o patriarcado e o capital.

Ao direcionar sua crítica às feministas brancas nos Estados Unidos, hooks foi enérgica, dura e sem rodeios e, ao fazer isso, mostrou um movimento que estava distante da maioria das mulheres, de um feminismo que queria criticar o patriarcado, como bem descreveu Angela Davis, “a ideologia da feminilidade, subproduto da industrialização, responsável pela clivagem entre economia doméstica e economia pública” (DAVIS, 2016, p.24) mas que não fazia sentido para mulheres que lidaram com o trabalho escravizado (DAVIS, 2016, p. 25). Com sua crítica ao feminismo liberal naquela época, hooks demonstrou que o feminismo branco, de classe média e alta não podia reivindicar um lugar universal para as mulheres, em especial para mulheres que sofriam com as consequências do racismo e da superexploração capitalista em seu cotidiano:

“Nos Estados Unidos, o feminismo não surgiu das mulheres que são mais vitimizadas pela opressão machista, das mulheres agredidas todos os dias, mental, física e espiritualmente – as que são impotentes para mudar sua condição na vida. Estas são a maioria silenciosa. (…) As mulheres brancas que dominam o discurso feminista – as quais, na maior parte, fazem e formulam a teoria feminista – têm pouca ou nenhuma compreensão da supremacia branca como estratégia, do impacto psicológico da classe, de sua condição política dentro de um Estado racista, sexista e capitalista”. (hooks, 2015)

A crítica de hooks ao feminismo branco, porém, sempre foi bem demarcada, ou seja, hooks era contrária ao discurso hegemônico e universal da opressão sexista, mas entendia com muita clareza o seu significado destacando que “a luta contra a opressão sexista é de grande significado político – e não apenas para as mulheres. O movimento feminista é vital tanto por seu poder de nos liberta das terríveis garras da opressão sexista quanto por seu potencial para radicalizar e renovar outras lutas de libertação” (HOOKS, 2019, p. 77). Hooks tinha urgência em se expressar e sabia da necessidade da unidade da luta contra as opressões, de pautar a diversidade em seu interior e seu papel como educadora também deixava isso evidente. Isso porque para nós, feministas negras, cada passo dado, cada estratégia elaborada, cada discurso é urgente. É urgente falar de racismo e das consequências perversas dessa ideologia em uma sociedade de classes e hooks, assim como todas nós, tinha urgência em falar. E como falou! como diz o título de uma de muitas das suas obras, nos mostrou como “Erguer a voz!” e romper com os lugares históricos de subalternidade, precariedade e morte que o racismo, o patriarcado e o capital sempre nos legaram.

Comprometida com as rupturas hegemônicas no interior dos movimentos feministas, hooks evidenciou que “nenhuma intervenção mudou mais a cara do feminismo do que a exigência de que pensadoras feministas reconhecessem a realidade de raça e racismo” (HOOKS, 2018, p. 89) e denunciou uma visão “utópica de sororidade evocada em um movimento feminista que inicialmente não considerava diferença racial ou a luta antirracismo séria não captou o pensamento da maioria das mulheres negras/não brancas” (HOOKS, 2018, p. 90).

O feminismo negro de bell hooks é também profundamente comprometido com o AMOR. Aliás, esse é um dos aspectos de sua perspectiva teórica que mais tiveram impactos sobre mim e, é importante que se diga, essa é uma perspectiva de coletividade que ajuda diversas mulheres negras a olhar de maneira diferente e empática para si mesma. Ter empatia consigo mesma, ter senso de coletividade e saber a singularidade de suas experiências históricas é uma arma poderosa de fortalecimento para mulheres negras comprometidas com sua emancipação. hooks compartilhou desse amor em seus escritos para fortalecer mulheres negras sem romantizar esse lugar, mas a partir das experiências concretas do seu povo. A mulher negra que, desde criança, vivenciou a realidade de um país segregado e marcado pela violência racista, ousou falar de amor para os seus, um tema que pode parecer controverso e até estranho diante da realidade dura vivenciada por mulheres e homens negros, mas que para hooks fazia (e faz) todo sentido:

“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso. (…) Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, “feridos até o coração”, e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos”. (hooks, Vivendo de amor, Portal Geledés).

 A experiência concreta da coletividade e, diga-se de passagem, de um feminismo marcado pela diversidade, é uma marca importante do ativismo antirracista e bell hooks soube trabalhar isso de forma séria, concreta, dura e ao mesmo tempo amorosa para com suas irmãs/irmãos. Com sua voz ela enfatiza para nós que “enfrentar o medo de se manifestar e, com coragem, confrontar o poder, continua a ser uma agenda vital para todas as mulheres” (HOOKS, 2019). É por isso que hooks falava de forma tão simples (e, ao mesmo tempo, bastante complexa) sobre o amor no interior do movimento feminista (e para as mulheres negras em especial), porque essa era a experiência concreta de feminismo que ela queria (e conseguiu) compartilhar:

Quando aceitarmos que o verdadeiro amor é fundamentado em reconhecimento e aceitação, que o amor combina com cuidado, responsabilidade, comprometimento e conhecimento, entenderemos que não pode haver amor sem justiça. Com essa consciência, vem a compreensão de que o amor tem o poder de nos transformar e nos dar força para que possamos nos opor a dominação. Escolher políticas feministas é, portanto, escolher amar. (hooks, 2018).

Hooks, nós estamos em luto! os feminismos negros (sim, somos muitas, somos plurais, o feminismo negro não é homogêneo) ficaram em luto, mas temos muito a agradecer e um legado enorme para discutir, apontar, questionar e, acima de tudo, honrar. Obrigada por tanto Bell Hooks! Nós continuamos aqui, fazendo do nosso luto luta e seguindo com resiliência. Que nossas ancestrais te recebam com muita festa!

*Mestra em Direito Público pela UFAL. Militante da Resistência Feminista/AL e da Resistência/PSOL AL.

 

Referências Bibliográficas:

hooks, bell. O Feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Tradução Ana Luiza Libânio. 1º ed. Rio de Janeiro: Rosa do Tempos, 2018.
hooks, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Tradução Rainer Patriota. São Paulo: Perspectiva, 2019.
hooks, bell. Black Woman: Shaping feminist theory. Revista Brasileira de Ciência Política, 2015, n. 16, pp. 193-210.
hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Editora Elefante, 2019.
hooks, bell. Vivendo de amor. Portal Geledés. Disponível em: https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. 1º ed. São Paulo: Boitempo, 2016.