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Colunas

A maldição dos vices

Sarney, Itamar, Temer e, agora, Alckmin

Temer, Dilma (com a faixa presidencial) e Lula, na cerimônia de transmissão do cargo, em 2015. Os três estão na rampa do palácio e com as mãoes erguidas.
Agência Brasil

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

A ocasião quando é propícia, tolo é aquele que a desperdiça.
Sabedoria popular espanhola

A presença de Alckmin em uma chapa Lula em 2022 não é uma solução tática “imbatível” para vencer Bolsonaro. O “giro ao centro” não precisa ser a orientação da campanha contra Bolsonaro.

Reconheçamos, honestamente. Tem pesado nem parcelas da esquerda uma idealização de que Lula vai vencer as eleições para a presidência e ponto. Mas a verdade é que ninguém sabe, com um ano de antecedência, quem vai vencer as eleições de 2022. Isso não é sério. Três décadas e meia de eleições ininterruptas, a cada dois anos, criaram uma mentalidade que alimenta uma expectativa. Há ligeireza e superficialidade neste otimismo ingênuo.

Uma Frente Única de Esquerda pode vencer as eleições se conseguir empolgar a classe trabalhadora e a juventude.

Lula não deveria se preocupar em tranquilizar a classe dominante que não há rancor ou ressentimento pela sua prisão. Uma Frente Única de Esquerda pode vencer as eleições se conseguir empolgar a classe trabalhadora e a juventude. Porque, se colocarmos esta base social em movimento, é possível arrastar uma maioria entre os pobres semiproletários das cidades, e dividir uma parcela das camadas médias. Sem confiar na mobilização de massas não será possível derrotar Bolsonaro.

Luta eleitoral é luta de classes. Não será um conflito entre propostas, será uma disputa de interesses. Em 2022 não será luta eleitoral “a frio”. Será “a quente”, porque Bolsonaro depende da mobilização dos setores exaltados e exasperados de sua base social para chegar ao segundo turno, ainda mais agora com uma conjuntura econômica em degradação e a disputa acirrada com as candidaturas da “terceira via”. Seu resultado vai depender de quem conseguirá colocar em movimento uma força social de choque mais poderosa.

As oportunidades perdidas deixam lições valiosas. A “maldição” dos vices é uma das crueldades da história contemporânea do Brasil. Assim como o regicídio, o assassinato do rei, era o perigo das monarquias, a posse do vice é a ameaça institucional do presidencialismo. Depois da posse de três vice-presidentes é incontornável equacionar os riscos.

Podia ter sido diferente? Sarney, Itamar e Temer eram inexoráveis? A percepção de que o que aconteceu era inevitável é uma ilusão de ótica anacrônica. Toda luta social e política é um campo de possibilidades. Nem tudo é possível, claro. Mas há sempre em disputa, em função da relação de forças entre as classes, distintos desfechos. Nada é fatal, até que é tarde demais. Contrafactuais, a consideração como hipótese de outros cenários, são exercícios legítimos.

O mandato de cinco anos de Sarney entre 1985/89 não era o único desenlace imaginável da campanha pelas Diretas Já. Era possível ter ido além, se não tivéssemos recuado da proposta da greve geral, quando milhões já estavam nas ruas. Não era incontornável a posse de Itamar em 1992. O impulso da explosão estudantil que culminou com Atos de meio milhão de pessoas era plausível. O impeachment de Dilma Rousseff e o mandato de Michel Temer eram o único epílogo previsível dos treze anos de governos de coalizão liderados pelo PT. Se o governo Dilma não tivesse capitulado à pressão burguesa, e aceitado a imposição de Joaquim Levy, por exemplo, ou se tivesse desafiado Eduardo Cunha e, a partir da Presidência, enfrentado o golpe, convocando a classe trabalhadora e a juventude às ruas. Escolhas erradas foram feitas, decisões absurdas foram tomadas e, portanto, tiveram consequências.

Entre todos estes processos, o mais profundo e mais importante foi a batalha na fase final da luta contra a ditadura. Em 1984, ao final da campanha das Diretas Já, a maioria da esquerda brasileira decidiu que a melhor orientação era apoiar a eleição indireta de Tancredo Neves e José Sarney no Colégio Eleitoral. Estavam errados. O PT se opôs e, por isso, ganhou autoridade para chegar com Lula ao segundo turno em 1989.

O processo das Diretas foi grande o bastante para consolidar nas ruas a conquista das liberdades democráticas, e derrotar o regime. Foi a mobilização de milhões que derrotou a ditadura, porém, paradoxalmente, não culminou com a queda do governo Figueiredo. Por quê?

A pactuação de um consenso entre a direção do PMDB e as forças políticas que sustentavam a ditadura – PDS e, sobretudo, Forças Armadas – resultou em um compromisso político com uma solução institucional de conciliação. Este entendimento não teria sido possível sem a mobilização de massas que subverteu o país, e impôs uma nova relação de forças. O projeto de uma abertura lenta e gradual de Geisel/Golbery, e até mesmo de Figueiredo, foi implodido, mas só parcialmente. Seus planos de transição controlada “pelo alto” foram subvertidos pela mobilização “por baixo”

A direção do PMDB estava dividida, seriamente, em relação à tática, portanto, em relação ao objetivo das Diretas desde o início da campanha. Ulysses Guimarães de um lado, e Tancredo Neves do outro, disputavam entre si a candidatura à presidência. Ulysses queria ser candidato em eleições diretas e Tancredo acreditava que só poderia vencer em eleições indiretas. Por isso, Tancredo iniciou negociações com a direção do PDS desde antes do comício da Praça da Sé de 25 de janeiro de 1984.

Aliás, o que merece ser considerado excepcional no processo das Diretas não é que Tancredo tivesse conspirado com a ditadura, mas que Ulysses e Montoro tenham convocado à mobilização de massas contra Figueiredo. A desconfiança da participação popular foi o padrão da conduta política da burguesia brasileira. Só a obstinação da alta oficialidade das Forças Armadas na defesa obtusa do regime, quando uma nova relação de forças interna e internacional o deixaram obsoleto, pode explicar a decisão in extremis de Ulysses e Montoro de resolver conflito apelando à mobilização de massas.

Eis a principal lição da história: uma esquerda que não aposta na mobilização não se eleva na luta pelo poder.

As formas institucionais do processo de passagem da ditadura para a democracia pareceram as de uma transição negociada, mas elas ocultaram o conteúdo político-histórico do que tinha acontecido: o governo se manteve até a eleição de Tancredo e Sarney pelo Colégio Eleitoral, mas, paradoxalmente, junto com Figueiredo era a ditadura que tinha sido vencida.

A análise histórica precisa reconstituir os contextos, descrever os acontecimentos, e explicar a grandeza e os limites destes combates democráticos. O que não deve fazer é diminuir a imponência das mobilizações políticas das massas populares que derrotaram uma ditadura longeva de vinte anos. Porque ela não conseguiu conduzir, como queria, a transição que tinha planejado. Não caíu derrubada pela classe dominante que a tinha apoiado. Caiu, porque foi colossal a entrada em cena de forças sociais e políticas até então contidas – um bloco social de aliança da classe trabalhadora com a maioria da classe média e minoritárias frações burguesas – que deslocaram as relações de forças que permitiu por fim ao regime ditatorial.

Eis a principal lição da história: uma esquerda que não aposta na mobilização não se eleva na luta pelo poder.