1. O contexto atual da USP
Inseridas num contexto de intensa perda de direitos dos trabalhadores e, especialmente, de precarização, privatização e piora geral dos serviços públicos, a educação e a ciência vêm sofrendo com cortes sucessivos e avassaladores há anos, o que já causou efeitos alarmantes.
A USP, sob essa conjuntura, vive um momento crucial de sua existência. Desde 2014, vêm sendo implementadas sucessivas políticas de ajuste fiscal na universidade, que reduziram o comprometimento do orçamento da USP com a folha de pagamentos de mais de 100% para cerca de 70%. Embora devamos ter seriedade para discutir e fiscalizar supersalários e outros benefícios indevidos, esses cortes se deram às custas da qualidade da operação de muitos institutos, com uma redução drástica do quadro de docentes e funcionários com planos de demissão voluntária, suspensão de contratações efetivas e, em vez disso, contratação de docentes “temporários” em condições precarizadas. Também se deram às custas da permanência estudantil, cujo orçamento se viu estagnado, apesar da democratização do acesso e o enegrecimento da universidade, com o valor das bolsas moradia, PEEG e PUB estagnado, desde 2013 até o começo desse ano, em insuficientes 400 reais. As exigências históricas de trabalhadores e estudantes da comunidade universitária, por isso, eram de que a situação deficitária da universidade fosse coberta mediante um aumento dos repasses estaduais; e mesmo na ausência desses repasses, deveriam ter sido cortados gastos supérfluos ou privilégios indevidos. O que vimos foi o contrário, de modo que em pleno ajuste fiscal a reitoria construía para si um novo e luxuoso prédio!
O fato é que hoje a USP, diferente da maioria das universidades do país, se encontra hoje em uma situação superavitária (tendo suas reservas financeiras aumentado desde 2019, mesmo no período pandêmico). Isso, somado à recuperação econômica pós-pandemia, torna urgente uma rápida recomposição dos salários dos docentes e funcionários, das contratações e, principalmente, da permanência estudantil, que se encontra em situação desesperadora. E só com a longa pressão que o movimento estudantil, dos funcionários e professores é que, muito lentamente, a cúpula dirigente da universidade começa a reconhecer essa situação e a fazer certas concessões. O aumento, muito insuficiente, de 25% nas bolsas de permanência (o aumento, para fazer frente ao índice IGP-M (FGV) de inflação acumulada, deveria ser de quase 90%, para não falar da inflação de aluguéis na região do Butantã) sinaliza esse fato e representa uma resposta que a reitoria teve que dar às lutas por permanência e à situação deplorável e autoritária a que relegou o CRUSP.
2. As chapas reitorais e suas propostas.
É nesse contexto que se situa a eleição reitoral de 2021. Duas chapas participam desse processo: a chapa USP Viva, dos professores Carlotti e Maria Arminda, e a chapa Somos Todos USP, dos professores Hernandes e Cidinha. Em seus programas, ambas as chapas se comprometeram com aumento do orçamento de permanência estudantil (a chapa USP Viva inclusive com a criação de uma Pró-Reitoria de Permanência), ambas se comprometeram também com reajustes dos salários e retomada de contratações ao longo dos próximos quatro anos, ambas se comprometeram com a defesa das cotas e concebem a possibilidade de instauração de uma banca de heteroidentificação (a chapa Somos Todos USP se comprometendo explicitamente com isso em seu programa), ambas as chapas denunciam o negacionismo do governo federal, ambas defendem a interlocução com as entidades estudantis, ambas se comprometeram com o aumento da dotação do Escritório de Saúde Mental e disponibilização mais eficaz de acompanhamento psicossocial, ambas defendem uma reforma do CRUSP, ambas criticaram a instalação de uma faculdade privada da BTG Pactual no campus Butantã, em acordo realizado com o IPT, e ambas se comprometeram, em entrevista concedida à gestão do DCE, com a remoção do posto da PM da frente do CRUSP, realocando-o para perto da Academia de Polícia.
Curiosamente, embora ambas as chapas concorrentes sejam oriundas da atual gestão (o Professor Hernandes é Vice-Reitor, o Professor Carlotti é Pró-Reitor de Pós-Graduação, a Professora Cidinha é Pró-Reitora de Cultura e Extensão e a Professora Maria Arminda é coordenadora do Escritório USP Mulheres), ambas se postulam como mais participativas e socialmente engajadas do que a gestão Vahan – no caso do Professor Hernandes, ele vincula essa diferenciação, em entrevista concedida à gestão do DCE, ao fato de que o grande comprometimento da gestão Vahan era com a “estabilização da Universidade”, e agora a situação é outra.
É um momento de colocar as nossas demandas – e, quem quer que seja eleito, exigir com muita mobilização que as promessas sejam cumpridas.
Já vimos, em outras oportunidades, reitoráveis se comprometendo com pautas sociais na universidade mas que, ao assumirem, se alinharam incondicionalmente ao governo estadual e abriram mão completamente do diálogo com os estudantes e suas entidades. Embora nos encontremos em uma situação mais favorável, não devemos depositar nossa confiança incondicional em nenhuma das chapas. É um momento de colocar as nossas demandas – e, quem quer que seja eleito, exigir com muita mobilização que as promessas sejam cumpridas. Dois documentos que são importantes nesse sentido são a “Carta de Demandas Estudantis aos Candidatos à Reitoria da Universidade de São Paulo”, a qual, embora ainda muito superficial, é um importante passo de formulação coletiva de reivindicações do movimento estudantil da USP, e a “Carta Compromisso aos Reitoráveis USP 2021” do Núcleo de Consciência Negra. Esta última é uma das mais importantes entidades do movimento negro na cidade, que devemos fortalecer mais do que nunca, à luz dos persistentes desafios à nossa frente no que se refere à consolidar a democratização do acesso e assegurar a permanência, tendo em vista que ano que vem será um ano de intensa luta em defesa da política de cotas, que será revista.
Devemos também estar atentos a possíveis retrocessos que se encontrem escondidos nas entrelinhas de projetos que tentam se apresentar como progressistas. Assim, por exemplo, há muitos anos a gestão da USP discutia a possibilidade de instauração de uma central de gestão de resíduos em um terreno que funcionava como acúmulo de lixo, o “Buracanã”. Agora que o território foi limpo e ocupado por centenas de famílias em busca de moradia, vemos no texto programático da chapa “Somos Todos USP” a proposta de instauração de uma Central de Triagem de Resíduos Sólidos no Campus Butantã, para ser administrada em conjunto com moradores da São Remo. Essa proposta é muito positiva, mas o texto não explicita onde ela seria instalada; não podemos tolerar que se decida por sua instalação no terreno de “Buracanã”, às custas da desapropriação de centenas de famílias. A solidariedade à luta por moradia na São Remo deve continuar sendo prioridade do movimento estudantil.
3. Quero votar para reitor! Por democracia na USP.
A USP tem uma das estruturas de poder mais antidemocráticas das universidades no país. Além de um CO (Conselho Universitário) com uma participação mínima de representantes de alunos, graduandos e pós-graduandos, de funcionários e de docentes e garantida a setores como a FIESP, a reitoria da USP não é eleita pelo sufrágio universal dos membros da comunidade universitária; em vez disso, participam do processo apenas membros do CO e das congregações das unidades, estas últimas que também possuem baixíssima representação discente e de funcionários técnico-administrativos. Existe uma “consulta à comunidade universitária”, a qual, como o próprio nome diz, não tem qualquer efeito deliberativo. Como se já não bastasse, mesmo a eleição oficial da reitoria, feita apenas pelo CO e pelas congregações, não elege o reitor: elege, em vez disso, uma “lista tríplice” (no caso deste ano, uma “lista dual”), cabendo ao governador, que tem sido do PSDB há 30 anos, nomear o próximo reitor (sendo que já houve casos do governador nomear o segundo colocado nas eleições!). Ou seja, o projeto autoritário de controle das universidades federais proposto pelo governo Bolsonaro, através de interventores, ocorre na USP há anos, com a única diferença de que este autoritarismo aparece maquiado por uma “eleição”.
O sistema da USP é não apenas menos democrático que o das universidades federais, como é menos democrático até do que outras universidades estaduais, como a Unicamp, em que todos os membros da comunidade podem votar para a definição da lista tríplice, numa proporção de 3/5 para os votos da categoria docente, 1/5 para os votos da categoria dos servidores técnico-administrativos e 1/5 para os votos da categoria discente – o que ainda assim, não corresponde a uma verdadeira democracia universitária, na qual a comunidade universitária decide de fato os rumos da universidade.
A luta por uma democratização da estrutura de poder da universidade é fundamental. Para além de exigir eleições diretas para reitor, devemos exigir uma democratização da paridade do CO e a revinculação das eleições de RDs aos processos de eleição das entidades – pauta à qual, em entrevista concedida à gestão do DCE, ambas as candidaturas fizeram sinalizações favoráveis. É hora de exigir que essa democratização seja colocada em prática!
4. O que a representação discente do Afronte! defende?
Diante do cenário descrito acima podemos observar que, lamentavelmente, neste momento as chapas que se lançam à disputa possuem importantes limitações e, assim, não expressam a defesa daquilo que se torna especialmente essencial no atual cenário: os acúmulos históricos dos movimentos estudantil e negro da Universidade.
Somado ao aspecto antidemocrático geral do processo eleitoral, que deve ser mais uma vez denunciado e combatido, a pressão por um esvaziamento do debate político e programático sobre a universidade tende a se apresentar sobre o conjunto da comunidade universitária. É por essa razão, que desde já precisamos reafirmar a importância de que o conjunto do movimento estudantil esteja comprometido com a mobilização como forma de arrancar conquistas fundamentais como o investimento em permanência estudantil e a continuidade da política de cotas.
Por esse motivo, a representação discente do Afronte! nos Conselho Universitário e nas Congregações defende que nenhum voto de confiança seja dado à chapa “Somos Todos USP”, pois ela representa a mais íntima relação de continuidade do projeto elitista e antidemocrático de Vahan. Por outro lado, diante das importantes lacunas na defesa de históricos eixos programáticos dos movimentos sociais, a chapa “USP Viva” também não receberá nosso voto de confiança.
Defendemos, por fim, que os estudantes, trabalhadores e professores que compõem a universidade e fazem ela existir de fato no dia a dia, limpando os prédio, fazendo pesquisas, dando aulas etc., seja na gestão Hernandes ou Carlotti, atuem em unidade na luta por suas reivindicações históricas e por uma universidade democrática, gratuita, de qualidade para todes!
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