Há 50 anos, por proposta do destacado intelectual e ativista negro gaúcho, Oliveira Silveira, e por inciativa do Grupo Palmares, o 20 de novembro ganhou a marca de Dia da Consciência Negra. A data foi escolhida por carregar a simbologia da luta negra por liberdade e por prestar homenagem à biografia de Zumbi dos Palmares, líder do quilombo dos Palmares e símbolo da resistência negra contra a escravidão, que foi assassinado pelas forças escravistas em 20 de novembro de 1695.
Portanto, naquele 20 de novembro de 1971, o Dia da Consciência Negra surgiu como reapropriação coletiva da memória histórica da luta negra contra a escravidão e o racismo e em defesa da liberdade em contraponto à narrativa histórica oficial, que expropriava a memória do povo negro ao apresentar o fim da escravidão como ato de benevolência da princesa Izabel e das elites brancas dirigida às pobres almas negras.
Combater o racismo estrutural e a necropolítica
Do primeiro Dia da Consciência Negra aos nossos dias eventos históricos progressivos reconfiguram a paisagem política e social brasileiras: a queda da ditadura militar deu lugar ao regime democrático da “Nova República”, o País ganhou uma “Constituição Cidadã”, os brasileiros elegeram um líder operário para a Presidência da República e garantiram quatro mandatos presidenciais seguidos ao maior partido da esquerda brasileira, avançou-se na implementação de políticas de ação afirmativa no combate à desigualdade racial e foi ampliada a presença de negros e negras nas universidades brasileiras. Apesar tudo isso, negra continuou sendo a cor da “carne mais barata do mercado” e negros continuaram sendo os corpos mais sujeitados à violência policial, ao encarceramento, ao desemprego, ao trabalho forçado, à pobreza, à fome, ao sofrimento, à dor e à morte produzida.
Como dizia Malcom X “não há capitalismo sem racismo”. E como ensina Silvio de Almeida, o racismo é parte da estrutura da sociedade e da economia capitalistas. Por ser estrutural, o racismo não deu trégua mesmo nos momentos mais favoráveis da nossa história recente, quando, sob os governos do PT, se combinou um ciclo de expansão econômica do País, turbinado pelo preço das commodities no mercado internacional, a adoção de uma política nacional-desenvolvimentista, com investimentos do BNDES aos grande competidores brasileiros no mercado mundial, políticas sociais compensatórias, a exemplo do Bolsa Família, valorização real do salário mínimo e a adoção de políticas de ação afirmativa, a exemplo das cotas para ingresso de negros e negras nas universidades.
Mesmo nesse período de crescimento e bonança, dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) indicam que a população carcerária avançou de 232.755 detentos, em 2000, para 622.202 detentos, em 2014, registrando um crescimento de 161%. Compondo as pessoas negras 70% dessa massa de encarcerados. A taxa de homicídios, por sua vez, cresceu 13,9% entre 2006 e 2016, segundo dados do Atlas da Violência, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Sendo que entre a população branca houve um decréscimo de 6,8%, enquanto entre a população negra houve crescimento de 23,1%.
Sob o signo do golpe parlamentar reacionário de 2016, da vitória eleitoral do presidente neofacista, em 2018, da disseminação do discurso de ódio por Bolsonaro e pelo bolsonarismo, das políticas de armamento dos setores mais reacionárias das classes médias, do empoderamento das polícias na forma de um quase salvo-conduto para matar, da retirada de direitos sociais e trabalhistas e do desmonte das frágeis políticas de igualdade racial, não apenas os indicadores de encarceramento e de homicídios da população negra se viram negativamente afetados. De outro lado, a combinação de crise econômica, pandemia da Covid-19 e política negacionista do governo, em favor dos lucros do capital, tanto empurrou negro e negras para um novo ciclo histórico de desemprego, pobreza e fome, quanto produziu um ciclo de morte de corpos negros em escala industrial.
As duas últimas décadas de nossa história evidenciam, portanto, que, se de um lado o racismo estrutural não se deixa curvar pelas políticas de reformas parciais destinadas à humanização do capitalismo, de outro lado, a dinâmica neoliberal do sistema econômico só reserva ao povo negro políticas de morte. Assim, desafiar o racismo exige enfrentar a necropolítica, ou seja, a expressão neofascista do poder das elites racial-capitalistas, e, por essa via, enfrentar o próprio capitalismo por meio da implementação de transformações estruturais. Desafio estratégico que atualiza a memória histórica das lutas do povo negro brasileiro e que faz justiça às aspirações de Oliveira Silveira e aos 50 anos do Dia da Consciência Negra.
A resistência negra em marcha
O neoliberalismo, as políticas de austeridade, a ascensão do neofascismo e da necropolítica e o recrudescimento das formas mais brutais do racismo, expressões do brutalismo da época presente, são fenômenos de dimensões globais, que tiveram sua capacidade destrutiva reforçada com o tratamento dado pelos governos à pandemia da Covid-19.
Em resposta, a resistência a eles também ergueu a cabeça por todas as partes do globo. Dentre esses processos de luta, o maior levante negro da história dos Estados Unidos, iniciado no dia 26 de maio de 2020 e que durou por quase um mês, abriu caminho para a derrota eleitoral do presidente neofascista Donaldo Trump, estimulou lutas de resistência negra, de povos originários e anticolonialistas em várias partes do planeta, abriu um novo momento do processo de tomada de consciência antirracista no mundo e combinado a outros processos de resistência massiva que, em 2020, tiveram lugar na América do Sul (Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru, por exemplo) e em outras partes do mundo, foi capaz de barrar o ascenso das forças reacionárias e fascistas que se desenvolvia em todo o mundo desde antes da chegada de Trump à Casa Branca, em 2016.
Na esteira desse processo, em junho de 2020, rompendo o relativo consenso quanto à não realização de manifestações de massa durante a pandemia, a juventude negra brasileira protagonizou as primeiras grandes manifestações contra o governo Bolsonaro e sua política genocida. E o impulso de consciência antirracistas derivado do novo momento aberto pelo levante negro também operou nas eleições municipais de 2020, com a ampliação do número de vereadores negros eleitos em todo o Brasil e pelos partidos de esquerda.
No entanto, essa dinâmica não alterou a situação política defensiva. Os setores explorados e oprimidos continuavam sob constantes ataques. De forma que, tanto no 20 de novembro daquele ano, quanto no 13 de maio do ano em que estamos, o protesto negro foi realizado debaixo de muita dor e pesar devido a atos brutais de racismo: no primeiro caso por conta do assassinato de Beto Freitas pelas mãos de dois seguranças de uma loja do Carrefour, em Porto Alegre e, no segundo caso, por conta da chacina de 29 jovens negros, na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. Duas ocasiões nas quais a necropolítica e o brutalismo racial desafiaram diretamente a consciência negra e o protesto antirracista.
E agora negrada?
Desde aquele 20 de novembro de 1971, fomos protagonistas e testemunhas de sucessivas eclosões de protestos de reação a atos de violência, brutalidade e chacina contra negros e negras e de uma progressiva tomada de consciência quanto ao lugar da questão racial no contexto da realidade social brasileira.
A abertura de um novo momento do processo de tomada de consciência antirracista no mundo, desde a eclosão do levante negro nos Estados Unidos, tem dado robustez e nova dinâmica a esse processo. Uma consciência negra, combativa e radical está em gestação nos bolsões das grandes cidades do país, tendo na juventude negra mais precarizada a sua vanguarda. Na medida em que se defronte com a persistência do racismo estrutural é de se esperar que dessa consciência e do protagonismo dessa vanguarda surjam novas e variadas formas de resistência e protestos antirracistas.
Para que essas lutas adquiram a capacidade de gerar transformações estruturais na sociedade e de apontar na direção de um projeto emancipatório para o povo negro e para o conjunto dos explorados e oprimidos é preciso que se formem os meios políticos e organizativos de sua massificação. Para isso, a realidade cobrará dos movimentos negros a maturidade de a partir de sua diversidade política e organizacional constitutiva gerar a unidade necessária para colocá-los à altura dos desafios do presente: derrotar a necropolítica, barrar o genocídio da nossa juventude, impor o respeito e o reconhecimento às religiões de matrizes africanas e aos territórios dos povos quilombolas e remanescentes de quilombos e abrir caminho, a passos largos, na direção das mudanças estruturais capazes de produzir avanços reais na superação do racismo.
Como passo importante nessa direção, o conjunto das organizações negras e de luta antirracista poderiam desde já unificar esforços para organização e massificação de jornadas nacionais de luta contra a carestia e a fome que assola as favelas, periferias e a vida do povo negro. E, com o mesmo objetivo, elas bem poderiam construir unificadamente e apresentar aos candidatos à Presidência da República e aos Governos dos Estados, que tenham algum compromisso com os direitos do povo, propostas de cartas compromissos com medidas efetivas de mudanças estruturais em benefício do povo negro e de combate ao racismo.
Como o racismo é estrutural e jamais nos deu trégua, neste 20 de novembro de 2021, 50º Dia da Consciência Negra, é preciso reafirmar e renovar a radicalidade e combatividade do projeto emancipatório no povo negro brasileiro e, assim, nos fortalecer para as lutas que virão.
Viva o 50º dia Consciência Negra!
Fora Bolsonaro racista e genocida!
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