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BRASIL

O feminejo feminista de Marília Mendonça

Rejane Carolina Hoeveler*

*Este texto foi originalmente publicado no Blog Junho em janeiro de 2017 e sofreu pequenas atualizações para a atual publicação. 

A comoção causada pela morte de Marília Mendonça não é apenas um fato midiático; embora o sensacionalismo da indústria cultural em cima inclusive da morte de um artista famoso (o que levará certamente a muitas gravações inéditas e novas versões da cantora), o sentimento de perda de uma figura na qual muitas mulheres se reconheciam, uma das poucas com tantos holofotes quanto os sertanejos tradicionais. Marília Mendonça foi um produto da indústria cultural, seguramente. Entretanto, o apelo de suas canções não se dava apenas pela repetição constante nas rádios, ela trazia uma novidade, que era a voz de uma mulher cantando dilemas e questões íntimas para a mulher contemporânea nos interiores do Brasil. Suas letras interpelavam a um público muito mais amplo que chega um discurso propriamente feminista dos movimentos sociais. Isso não pode levar a uma ode a-crítica à sua obra e muito menos uma validação de quaisquer posturas políticas e ideológicas; entretanto sabemos que a obra transcende o autor e a recepção também vai além da emissão. Os assuntos tratados nas canções são universais, o amor, a traição, os dramas pessoais, o que é a família. 

Mesmo que não fosse um objetivo da cantora, muitos de seus temas são um desafio ao conservadorismo que reina atualmente no Brasil; aqui, o homem é livre para trair, a mulher é livre para trair, e também para se vingar, para sofrer. Em muitas canções que não foram analisadas neste artigo, pois são mais recentes, continua a mensagem que apontamos, a da independização da mulher que reflete sobre sua subalternidade e não se conforma com as posições marginais nas quais uma sociedade marcadamente misógina procura sempre empurrá-la. Apontaremos apenas uma delas: em “Supera”, Mendonça se coloca como interlocutora de uma mulher que pode ser uma amiga, em um conselho íntimo: Ele tá fazendo de tapete o seu coração/Promete pra mim que dessa vez você vai falar não/De mulher pra mulher, supera.” 

 A obra de Marília Mendonça talvez ainda não tenha sido compreendida por uma visão mais estreita de crítica cultural, a qual não se permite valorizar determinados impactos culturais e sociais dessas contradições da própria indústria cultural. 

Marília Mendonça chega aonde este texto não chega. Esta frase tem se tornado um clichê, mas como todo clichê, tem um fundo de verdade. 

Uma das maiores novidades da indústria cultural na música brasileira atual é certamente aquilo que vem sendo chamado de “feminejo” – música sertaneja composta e cantada por mulheres. Em sua maioria, trata-se de um estilo musical que nos últimos anos se restabeleceu com certo padrão estilístico, mais ou menos pré-definido e com poucas variações. Certamente consolidado como um dos ramos mais lucrativos da indústria musical, agora o sertanejo, depois de inúmeras mutações, consolida um nicho surpreendentemente pouco explorado por muitos anos: o das mulheres. Embora sempre tenham sido consumidoras ávidas dos produtos musicais do ramo, as mulheres apareciam com pouca freqüência como cantoras e compositoras, e menos ainda expressando um ponto de vista explicitamente feminino.

Mas o que chama atenção na nova leva de sucessos é que não se trata unicamente de uma “versão feminina” da velha “dor de corno” tão característica das letras da música sertaneja, em suas variadas versões históricas. Na verdade, a velha “dor de cotovelo” já não era a mesma há algum tempo. A diferença crucial é que essas dores e (delícias) estão sendo mais assumidamente cantadas através do ponto de vista feminino, em uma chave que declara independência e insubmissão a práticas machistas comuns em relacionamentos amorosos em geral, e que se encontram estruturadas e diluídas na sociedade. Para uma música cujo alcance é de massas, e que está presente de maneira tão cotidiana na vida de milhões (ela se faz presente em bares, lojas, rádios, e certamente em todas as festas de fim de ano), não se trata de um fenômeno desprovido de significância. 

Uma das mais conhecidas e talvez a mais radical dentre as “feminejas” atuais é certamente a cantora e compositora goiana Marília Mendonça, que em sua ascensão meteórica emplacou em poucos meses diversos hits como “Eu sei de cor”, “Infiel”, “Amante não tem lar”, “Alô porteiro”, “Como faz com ela” e “Se ame mais”. 

Todas as suas músicas tratam de casos de amor, traição, paixão e sexo – e sempre do ponto de vista da mulher, seja inspirada em sua própria experiência, de outras mulheres ou de mulheres imaginárias. A arte é capaz de expressar sentimentos universais, e com apenas 24 anos a artista parece captar a essência de uma série de situações (e complicações) amorosas contemporâneas vividas por homens e mulheres, talvez em especial aquelas vividas por mulheres jovens.  

A mulher de saco cheio de um namorado controlador; a amante do homem casado; a mulher que trai e é traída; aquela que afoga as mágoas de um amor findo; e provavelmente o mais chocante para a música sertaneja, cujo romantismo é tão marcante, até mesmo uma mulher que embarca conscientemente em um relacionamento puramente sexual sem a menor intenção de continuidade. Nesses desabafos cantados com refrões que colam na mente, a linguagem é totalmente coloquial. E, se por um lado é completamente sintonizada com as novas formas de comunicação, a música trata, em essência, de muitas situações e sentimentos bastante antigos.

Por exemplo, num dos maiores sucessos da cantora, a música “Infiel” narra uma situação em que uma mulher repetidamente perdoa e aceita o homem “traidor”. Mas o recado final da música, ao contrário de um clichê da música romântica, em que tudo é perdoado porque a paixão é demais e o amor supera tudo, é mais realista: “ele nunca vai mudar”. Na letra, que na verdade é construída a partir de um duplo diálogo, de uma mulher pra outra, e da mulher para o homem “infiel”, a mulher traída deve finalmente realizar para si o fato doloroso porém inelutável do “homem traidor”. Embora o “Você não vai mudar” possa trazer, no fundo, um clichê machista (“homens são assim por natureza”), ela aponta fundamentalmente para a necessidade da ruptura definitiva por não aceitar esse tipo de relacionamento. 

“Com certeza ele vai atrás mas com outra intenção

‘Tá’ sem casa, sem rumo e você é a única opção

‘Tá’ na sua mão, você agora vai cuidar de um traidor/me faça esse favor

Infiel/Eu quero ver você morar num motel

Estou te expulsando do meu coração

Assuma as conseqüências dessa traição

Infiel/Agora ela vai fazer o meu papel

Daqui um tempo você vai se acostumar

E aí vai ser a ela quem vai enganar

Você não vai mudar”

 

Já em “Amante não tem lar”, a letra da música fala sobre a mulher que tem um caso com um homem casado e pede desculpas à mulher traída. Ao mesmo tempo em que “assume a culpa” pela destruição da família da mulher traída, o que certamente denota uma compreensão conservadora que anula a responsabilidade do homem, a personagem da música também expõe de forma crua e irônica, num misto de choro e protesto, a visão social que classifica a “amante” como alguém que não “merece” o casamento, e que “ninguém respeita na cidade” (“Ninguém me respeita nessa cidade/Amante não tem lar/amante nunca vai casar/A amante não vai ser fiel, a amante não usa aliança e véu”). O sentimento predominante é do medo de “não conseguir um casamento”, mas, havendo ou não um real arrependimento em levar a tal “vida de amante”, há uma constatação/contestação da idéia socialmente construída de que a “amante” “nunca vai casar”. Ao dar visibilidade social à amante, a autora toma posição a favor dessa personagem, além de trazer à tona esse tema que inacreditavelmente ainda é tabu, principalmente em cidades pequenas. 

Através da personagem de “Eu não sou novela”, a compositora fala sobre uma mulher que está sabidamente em uma relação que não vai “dar certo”, “sem futuro”, mas que se permite viver com este parceiro – sob “suas regras” – relações sexuais casuais. Em determinado trecho a personagem afirma:

“Provou/e vai querer de novo/mas não deixo rastro

Pirou/já ‘tá’ achando que é meu namorado

Quanto mais provoco mais você se assanha 

Já vi que eu te ganhei na manha

Vou embora/mas não estranha

É que eu não sou novela/por favor não me acompanha”

De maneira parecida, o eu lírico de “Por mais três horas” não apenas parte de uma revolta sobre o controle exercido pelo parceiro, como estabelece para ele e para si mesma um tipo de relação no mínimo inusitada para a chamada “sofrência”:

“Não sei o que você tava pensando

Me controlando/sufocando

Sabe, eu não nasci pra isso/Apesar de você ser um vício

Agora vai quebrar a cara

Eu sei que nós dois não dá em nada,

É como a sede/Depois de um gole passa

Larga esse copo agora/Quero você agora

Nas minhas regras/No meu jogo/Até meu corpo se cansar

Tem que ser agora/E vê se baixa a bola e vem sem reclamar (…)

Só quero você por mais três horas/E nada mais/Você vai ver”

Em uma situação completamente diferente, a mulher encontra-se diante de uma desilusão amorosa. Finalmente temos a velha dor de corna. Os elementos tradicionais da música sertaneja, como a bebida alcoólica que “afoga as mágoas” e o “coração machucado”, estão todos lá, mas a conclusão de “Até o tempo passa” também não deixa de surpreender:

 

 “Um monte de conselho, um pouco de vergonha na cara

Três doses de whisky/no tempo que um cigarro apaga

Esse amor acaba e some igual fumaça

Se até o tempo passa/imagina o seu amor

Devolve o meu tempo que eu fiquei ligando, mandando mensagem

Implorando/por favor 

Vou cobrar com juros o que você me tirou

Se até o tempo passa/imagina o seu amor

E esse arranhadinho no meu coração/Soprou/Passou/Passou

E o tempo levou/Se é pra viver sofrendo eu vou sofrer com um novo amor”

Uma das personagens mais interessantes e que se repete em várias músicas de Mendonça é a da mulher que não suporta mais um relacionamento abusivo, no qual o parceiro estabelece ou tenta estabelecer controle sobre a independência da mulher. Essa temática aparece em diversas letras, como em “Que saudade do meu ex”, onde após relatar que “eu bebia todo dia/hoje mal posso sair”, a personagem parece estar efetivamente declarando sua independência:

 

“Agora eu faço o que eu quero

‘Tô’ nem aí se ‘tá’ com vergonha de mim

Se quer saber/hoje eu vou beber e novo/vou voltar pra casa louca/pra você largar de mim” 

 

Definitivamente, não é uma “Bela, recatada e do lar”.

A legítima revolta sobre uma repetitiva tentativa de controle por parte do parceiro é ainda mais explícita em “Folgado”, onde o eu lírico põe alguns pingos nos “is”:

“Não venha não

Eu vivo do jeito que eu quero/não pedi opinião

Você chegou agora e ‘tá’ querendo mandar em mim

Da minha vida cuido eu…

Dormiu na minha cama e quer dormir com o travesseiro! 

Folgado (…)

Eu não sou obrigada a viver dando satisfação

Eu nunca tive lei, e nem horário pra sair nem pra voltar

Se lembra que eu mandei você acostumar?

‘Tô’ te mandando embora, melhor sair agora

Não vem me controlar!

Folgado! Maldita hora que eu chamei você de namorado

Imagina se a gente tivesse se casado

Deus me livre da roubada que eu ia entrar

Dá um arrepio só de imaginar”

 

A lista de situações abordadas nas músicas de Mendonça seria maior, mas a amostragem trazida aqui dá uma idéia de que nessas músicas é retratada uma nova disposição sentimental, uma postura de independência por parte da mulher, uma leitura de mundo que embora esteja ainda contaminada de conservadorismo (quando se trata, por exemplo, do tema do casamento), tem inegáveis elementos de emancipação.

Outro fato digno de nota é que a própria cantora foge dos cruéis padrões estéticos estabelecidos para as mulheres (em especial a magreza); e, como quem não se importa com isso – ou como quem ainda que se importe, recusa-se a sujeitar-se a tais imposições –, Mendonça usa sua sensualidade de forma desinibida tanto nas letras das músicas como nos shows, mostrando com seu exemplo a idéia emancipadora de que pra a mulher se sentir sensual, segura e bem dentro do seu corpo ela não precisa se torturar com dietas malucas, planos mirabolantes de exercícios, remédios, cirurgias, e um longo etc. A sensualidade natural de uma mulher famosa que aceita seu corpo como ele é tem um impacto nada desprezível na subjetividade de milhões de mulheres. 

Como podemos entender a arte de maneira autônoma em relação ao artista, pouco nos importa se a posição política de Mendonça e de outras cantoras “feminejas” é de apoio explícito ao feminismo ou não. Para ressignificar um termo bastante usado pela extrema direita, em tempos bizarros de “marxismo cultural” (a idéia conspiratória de que o marxismo – ou o que eles consideram como marxismo – está em todos os lugares das formas mais sutis), poderíamos, em chave oposta, falar de um “feminismo cultural”. 

O potencial comercial do “feminejo” foi percebido rapidamente por Roberta Miranda, cantora e empresária classificada por muitos como “Rainha do Sertanejo”, e que hoje se declara feminista. No dia 08 de março de 2017, Miranda lançou um disco apenas com “feminejas” como Simone & Simaria, Solange Almeida, Naiara Azevedo, Maiara & Maraisa, Day & Lara, e a própria Marília Mendonça. Com o sugestivo nome “Os tempo mudaram”, Miranda já elaborava o projeto há dois anos antes do último Dia Internacional da Mulher. O tino comercial certamente falou alto, mas era evidente o entusiasmo de Miranda com a nova geração musical na qual, em suas palavras, existe “um empoderamento que não é vem pra cá me maltratar, pegar o que é meu, dar uma de esperto, que aqui não dá” [1]. 

A relação entre a indústria cultural, o discurso de emancipação e os limites das noções feministas presentes no atual “feminejo” é permeada por ambigüidades, que mereceriam uma reflexão à parte. Mas a necessária crítica à captura comercial do feminismo não deveria negligenciar o poderoso fato de que as músicas de Marília Mendonça de várias outras “feminejas” de sua geração pode ser libertadora para muitas mulheres – muitas das quais dificilmente seriam alcançadas pelo movimento feminista organizado.

Nas contradições e brechas dos fenômenos midiáticos de massa, há uma mensagem na garrafa. Como escreveu anteriormente neste blog o crítico musical Rômulo Mattos, a partir de uma leitura do historiador Marcelo Ridenti,

Apesar do poder de se utilizar das ideias mais críticas para se reforçar, a indústria cultural é portadora de contradições que não lhe permitem mascarar totalmente a realidade social em que se insere [2]. 

*Rejane Carolina Hoeveler é colunista do Esquerda Online e professora da UFF.

 

NOTAS
[1] BANDEIRA, Tatiana. “Roberta Miranda, uma feminista diferenciada: ‘nunca admiti que me faltassem o respeito’. Revista Viva Mais, 05 de julho de 2017. Disponível em: http://bit.ly/2DoeFhs. 

[2] MATTOS, Romulo. “John Lennon e a política de esquerda: a ‘entrevista perdida’ ao jornal trotskista Red Mole’. Blog Junho, 05 de agosto de 2015. Disponível em: http://bit.ly/2DlmLr5. Agradeço ao autor por comentários e sugestões a este texto.