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O espetáculo do eu: personalismo e parlamentarismo na esquerda socialista

O Demônio das Onze Horas (1965), de Jean-Luc Godard

Felipe Demier

Doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e professor da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É autor, entre outros livros, de “O Longo Bonapartismo Brasileiro: um ensaio de interpretação histórica (1930-1964)” (Mauad, 2013) e “Depois do Golpe: a dialética da democracia blindada no Brasil” (Mauad, 2017).

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Uma espécie de senso comum da esquerda, não totalmente desprovido de razão – como, aliás, é o senso comum -, sempre se queixou de que a população em geral acaba votando mais “em pessoas do que em programas”. Nos últimos tempos, talvez pelo avanço da espetacularização da vida em função da overdose das redes sociais, a própria esquerda parece ter sucumbido, para sermos eufemísticos, ao personalismo, dado que o espetáculo político pode garantir resultados eleitorais espetaculares.

A conversão molecular do petismo em lulismo, como numa inflexão da consciência de classe para uma consciência de massa – resgatando aqui a sociologia marxista do populismo em sua inspiração lukacsiana -, fala por si só. Mas se o lulismo, ao suprassumir o petismo, tornou este viável eleitoralmente, o fez em uma perspectiva de teor universalista, ou ao menos mais propriamente nacional, na medida em que as principais lideranças e representantes do partido, a começar pelo próprio Lula, se dispuseram quase sempre a concorrer, por meio de eleições majoritárias, aos cargos do poder executivo. Fenômeno um pouco distinto parece ocorrer com a esquerda socialista. Uma parcela não desprezível dos nossos parlamentares e das nossas chamadas “figuras públicas” (o que em si talvez já seja problemático, mas aí é outro papo) parece cada vez apostar mais na sua própria imagem, na sua “identidade”, e menos em um programa político propriamente dito. Em uma lógica de crescente estetização, o indivíduo se sobrepõe ao coletivo, e o particularismo, ao universal, o que se explica, também, e talvez sobretudo, pelo fato de haver uma aposta muito maior das correntes da esquerda socialista na conquista, por meio de eleições proporcionais, em postos parlamentares – o que, sabemos, e não precisamos aqui esconder, ajuda em grande parte à sustentação material das correntes e, por conseguinte, à reprodução dos mandatos, e assim a roda gira.

Como o particularismo é mais exitoso do que o universalismo em eleições proporcionais, da mesma forma que o é menos em eleições majoritárias, a noção de que um candidato proporcional saia em campanha com um programa de abrangência mais geral, embalado pela velha e boa ideia de pedagogicamente tentar fazer avançar a consciência dos explorados e oprimidos (de “massa”, mera adição de singularidades homólogas, para “classe”, de corte universalizante) se torna cada vez uma ideia apenas velha (porquanto eleitoralmente ineficaz). Assim, gradativamente, uma parte significativa de nossos representantes opta por representar apenas grupos particulares, o que parece vir acompanhado de uma adesão acrítica e empiricista ao modo de vida desses grupos e de suas referências simbólicas, culturais e comunicacionais. Mesmo no interior do dito ativismo, que se joga com um ânimo quase carnavalesco nas campanhas proporcionais, a imagem parece substituir a palavra, esta, o texto, e a propaganda dá lugar à estética do mesmo modo que a formação, à lacração, o livro, ao tiktok, e a educação, à performance.

Transformados em celebridades de nichos particulares, esses representantes, com destaque para os parlamentares e candidatos a parlamentares, buscam cada vez mais se apresentar como uma expressão dos anseios e demandas de grupos particulares, ou, melhor dizendo, dos anseios e demandas de um pequeno punhado de indivíduos, via de regra pequeno-burgueses ou com pretensões de ascensão social individual, no interior desses grupos particulares – e talvez seja esse o estrato social realmente representado pela “ideologia da representatividade” (e se seu número é reduzidíssimo no universo dos grupos particulares envolvidos, seus votos, contudo, parecem ser suficientes para algumas poucas cadeiras nos parlamentos). Cada vez mais apresentados pelo que “são” e não pelo que propõe acerca das grandes questões nacionais (emprego, terra, moradia, violência, fome, opressão etc.), tais representantes só parecem representar seu público atomizado, seu universo não universal de singularidades individualizadas, na medida em que representam eles mesmos, representantes, enquanto indivíduos representativos da representatividade. Nesta derrota de uma práxis crítica, o particular não é mais uma expressão concreta do universal, e sim a afirmação positiva de uma singularidade alienada. O sujeito parece dispensar qualquer predicado, e os verbos se bastam, deixando os adjetivos apenas para serem endereçados aos críticos – estamos no aguardo.

Talvez venha a calhar aqui a analogia – e talvez não seja só uma analogia – com os reality shows que, desde as suas primeiras temporadas (quando ainda não eram chamadas de temporadas e quando estas ainda não se valiam da “ideologia da representatividade”), expõem participantes que, para vencer, peremptoriamente afirmam ao público que mostrarão “lá dentro” o que realmente “são”, ainda que, em sua maioria, não sejam nada, ou quase nada, a não ser o que alienada e ordinariamente são. Bom, hoje recebi a notícia de que alguns parlamentares e candidatos, inclusive alguns da esquerda, serão jurados em um reality show de aspirantes a…políticos. Não perdoai-vos, Hegel, a coruja já alçou voo e eles já sabem o que são.