Pular para o conteúdo
Colunas

Boulos ou Haddad?

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

Um camelo não zomba da corcunda de outro camelo

Sabedoria popular árabe

Qual deve ser a tática eleitoral da esquerda em São Paulo em 2022? Indo ao ponto: o critério de definição não pode se resumir a um cálculo que reduz o desafio à melhor colocação nas pesquisas com um ano de antecedência. Essa simplificação oculta o mais importante. Porque, hoje por hoje, é impossível prever e as variações são quantitivas. As pesquisas são um fator, mas não exclusivo. A inteligência tática exige uma avaliação mais complexa.

Esta discussão não deve se dramatizar, tampouco, em saber quem apoia quem: PSOL apoia Haddad ou PT apoia Boulos? Haddad declarou, recentemente, que PT e PSOL têm programas diferentes. Óbvio “ululante”. Deixou, portanto, subentendido que essas diferenças justificam duas candidaturas no primeira turno.

Mas, se o PSOL decidiu que vale a pena discutir um programa e orientação tática comum para as eleições, e considera a possibilidade de não ter candidato presidencial, um evidente sacrifício para um partido que precisa supercar a cláusula de barreira, por que o PT não pode, em reciprocidade, fazer o mesmo gesto em São Paulo? Alianças não são indolores. Por que só o PSOL deve correr riscos?

A questão central é que as eleições de 2022 colocam a esquerda diante de um dilema. Qual deve ser o eixo da tática político-social da esquerda? Não pode existir qualquer dúvida de que precisa ser a derrota de Bolsonaro e da extrema-direita. Esse é objetivo principal. E não serão eleições a “frio”. A situação é “anormal”, porque a presidência é ocupada por um neofascista. Serão eleições a “quente”.

A decisão do TSE de anunciar, por antecipação, que não irá tolerar a manipulação do disparo de fakenews pelas redes sociais é mais uma indicação da tempestade que virá. Bolsonaro irá disputar a reeleição, furiosamente, nas ruas e nos espaços virtuais. A esquerda terá que enfrentá-lo incendiando a força de mobilização de massas.

Há dois perigos que devem ser evitados. É possível vencer eleições, mas depois ser, politicamente, derrotado. O primeiro perigo é imaginar que estamos em 2002, não em 2022. Os últimos vinte anos não passaram em vão. O “já ganhou” é pensamento mágico, puro desejo. Quem está no poder é Bolsonaro. A classe dominante está dividida entre a extrema-direita e a oposição liberal, o que abre uma oportunidade. Há figuras em “voo solo” como Delfim Netto, prevendo que, na massa do eleitorado, a escolha do segundo turno será antecipada para o primeiro, e seria prudente um alinhamento com Lula para “precificar” negociações. Mas não há nenhum setor significativo da burguesia disposta a apoiar Lula no primeiro turno. Não importa o que a direção do PT prometa. Não é possível vencer com uma nova “carta” para “tranquilizar” o mercado. No Brasil ou em São Paulo a disputa será, prioritariamente, contra a extrema-direita, mas, também, contra a “terceira” via da oposição liberal de direita.

O segundo perigo é imaginar que é possível repetir a campanha de 2014. A campanha “Dilma coração valente, nem que a vaca tussa” segurou o “violino” com a mão “esquerda”, mas depois com a “direita” nomeou Joaquim Levy para liderar um choque fiscal devastador com consequências desastrosas. As “pedaladas” fiscais foram o pretexto para o golpe institucional de 2016, mas foram o desemprego e empobrecimento que explicam porque não foi possível uma mobilização de massas contra o impeachment. Confiança se ganha com honestidade.

Boulos representa uma candidatura que não irá poupar Alckmin. Não podemos esquecer que o PSDB abriu o caminho para Bolsonaro. Portanto, um novo governo Alckmin será um ponto de apoio central para a burguesia, seja qual for o resultado da eleição presidencial.

Isto posto, em aparência uma disputa eleitoral é uma luta entre candidatos. Ou, sendo mais rigoroso, entre propostas que se expressam em candidaturas. Mas, não. Na verdade, a luta pelo poder é um embate em que os interesses sociais em conflito medem forças. Eleições são uma forma condensada de luta de classes. Em 2018, por exemplo, a radicalização da classe média para a extrema-direita operou como um arrastão sobre uma parcela imensa do semi-proletariado que vive em condições de informalidade. Em 2022, o desafio será conseguir que o giro maioria da classe trabalhadora para a oposição seja forte o bastante para criar um arrastão do povo pobre, e provocar a divisão da classe média.

Haddad tem priorizado explorar as possibilidades abertas pela divisão dos tucanos entre Alckmin e Doria. Essa escolha tática deixa indisfarçável o projeto de conquistar o apoio de Alckmin para Lula no segundo turno. Acontece que essa sobrevalorização de uma declaração pró-Lula de Alckmin, em provável coligação com o PSB de Márcio França, sinaliza que o PT estaria disposto a renunciar a um confronto com Alckmin no primeiro turno. Essa localização tática seria fatal para a esquerda. Não é possível vencer em São Paulo sem denunciar os trinta anos de hegemonia tucana, ou seja, sem criticar, também, Alckmin. Qualquer “trégua” abriria uma brecha para a extrema-direita explorar o mal-estar popular com décadas de “tucanistão”.

Boulos representa uma candidatura que não irá poupar Alckmin. Não podemos esquecer que o PSDB abriu o caminho para Bolsonaro. Portanto, um novo governo Alckmin será um ponto de apoio central para a burguesia, seja qual for o resultado da eleição presidencial. Isso significa que o destino da esquerda, em escala nacional, e em São Paulo permanece indivisível da capacidade de ser útil, apoiar, e impulsionar a mobilização dos trabalhadores e dos oprimidos. Esta é a questão chave.

Em qualquer eleição, o sentido da existência da esquerda é apresentar um programa que traduza os interesses da classe trabalhadora pra empolgá-la. Ela é a imensa maioria da nação no Brasil. Mas para empolgar, entusiasmar, inflamar é necessário imaginação política.  Isso significa propostas para o salário-mínimo, redução do desemprego, renda básica, defesa do ensino publico e do SUS, direitos reprodutivos das mulheres, políticas de reparação para o movimento negro, reforma da segurança pública, transição energética e descarbonização, direitos dos LGBTQIA+ e por aí vamos. Ou seja, uma linha de classe com um programa de esquerda de reformas estruturais e impulso anticapitalista.

Mas para vencer, no terreno da mobilização de massas ou no eleitoral, não basta a esquerda se apoiar somente entre os setores mais organizados dos trabalhadores. Quais aliados? Será necessário estabelecer, em primeiro lugar, uma ponte com as massas pobres das grandes cidades, e os explorados e oprimidos dos interiores. A unificação desta força social de choque pode arrastar parcelas mais plebeias das camadas médias. Coloca-se, portanto, o desafio de quais devem ser as alianças políticas, porque elas revelam os compromissos de classe.

Duas hipóteses se colocam. Devemos apostar na mobilização popular para dividir a classe média? Ou procurar alianças com dissidências burguesas? São duas táticas diferentes. As alianças eleitorais entre partidos e lideranças devem responder a este desafio. Aqui está o centro das diferenças táticas entre o PT e o PSOL.

O conteúdo do problema se apresenta, em primeira lugar, na dimensão nacional, sobre o destino da candidatura Lula. Alguns consideram que uma Frente de Esquerda não seria possível porque Lula já decidiu, e tem força política suficiente para impor uma aliança eleitoral com dissidências burguesas: estaria explorando as possibilidades com setores do MDB, do PSD, e até de partidos do centrão. Não estão errados e, talvez, seja, infelizmente, assim mesmo. O argumento, portanto, não é falso, mas é um pouquinho parcial.

É verdade que Lula, e a maioria da direção do PT, apostam nas fissuras que se abriram porque a classe dominante se dividiu diante da tragédia social e sanitária provocada por Bolsonaro. Mas, é também verdade que, até agora, está difícil fechar acordos, até mesmo como PSB.

É verdade que Lula, e a maioria da direção do PT, apostam nas fissuras que se abriram porque a classe dominante se dividiu diante da tragédia social e sanitária provocada por Bolsonaro. Mas, é também verdade que, até agora, está difícil fechar acordos, até mesmo como PSB. Porque ninguém ignora que essa brecha será ocupada, no primeiro turno, pela candidatura de “terceira via” melhor colocada.

Lula tem muita força, mas não pode tudo. Um acordo exige reciprocidade. Até o momento, nenhuma fração importante da burguesia tem disposição de apoiar Lula desde o primeiro turno. O desenho da fratura burguesa pode mudar, mas, provavelmente, somente no segundo turno. A luta eleitoral terá dois tempos. A tática lulista de apostar em dissidências burguesas está orientada, essencialmente, para o segundo turno, não para o primeiro.

Por outro lado, não há nada que impeça a defesa de uma Frente de Esquerda com Lula contra a opinião de Lula, quando a proposta desperta simpatia no “povo” de esquerda. Este debate assume um outra forma em São Paulo, onde a relação política de forças entre PSOL e PT legitima a disputa entre Boulos e Haddad.

Neste marco se coloca a questão da disputa da classe média. O papel social e lugar político das camadas médias está entre os mais complicados, quando refletimos sobre a luta de classes no Brasil. A pequena-burguesia proprietária manteve, na maioria dos momentos chaves da história do Brasil, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, um alinhamento com a burguesia.

Ofereceu sustentação a Vargas no auto-golpe que gerou o Estado Novo em 1937, constituiu a maior parte da base social da UDN entre 1945/64, manteve apoio à ditadura militar durante vinte anos, apostou na estabilização da moeda oferecendo votos para as vitórias eleitorais em primeiro turno dos dois mandatos de FHC/PSDB, e foi o núcleo duro das mobilizações reacionárias inflamadas pela Lava-Jato que abriram o caminho para o impeachment de Dilma Rousseff.

Mas a classe média não é nem social, nem politicamente, homogênea, e não se resume, no Brasil, à pequena-burguesia proprietária rural e urbana. Este setor é somente uma das componentes das camadas médias. O tenentismo nos anos vinte foi uma refração político-militar democrático-revolucionária das camadas médias contra a República oligárquica. Não é possível compreender as mobilizações antifascistas pelo engajamento do Brasil na Segunda Guerra Mundial contra os nazistas, a partir de 1944, sem o engajamento de setores médios. Enquanto uma parcela das camadas médias se radicalizava á direita, sobretudo, depois da vitória da revolução cubana, outros se posicionavam por um projeto nacional-desenvolvimentista, e ofereceram apoio ao governo Jango.

A nova classe média de escolaridade mais elevada que cresceu na medida em que completava a transição da urbanização se dividiu, também, nos últimos anos do regime militar, em especial, depois de 1979, e uma parcela se deslocou para a oposição, apoiando a resistência operária. E na linha de frente da radicalização política, os estudantes universitários, um sub-grupo mais geracional do que socialmente homogêneo, mas que antecipa, muitas vezes, os deslocamentos políticos dos humores das classes médias urbanas. Esta fratura das camadas médias pode se repetir em 2022.

Outra polêmica é aquela que se concentra em aferir, avaliar, ou calibrar a importância relativa dos diferentes movimentos sociais. Ela é legítima, mas não deve ser dramatizada. Em determinadas conjunturas, os movimentos estudantis estiveram na vanguarda, em outras foram os movimentos feministas, ou as articulações negras contra o racismo, mas greves dos batalhões mais massivos da classe operária, como os metalúrgicos de montadoras como na GM, ou do funcionalismo, como dos professores permanecem decisivas. A esquerda deve unir todos para poder vencer Bolsonaro e o perigo neofascista. Mas para ter credibilidade precisa ser capaz de se unir a si própria.