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CULTURA

Uma vida por outra: maternidade, machismo e reprodução social em Maid

Carolina Freitas, de São Paulo, SP
Divulgação/Netflix

A série Maid, sucesso recorde da indústria cultural, é uma história sobre violências incolores que vão dilacerando as possibilidades substratas da vida. Um conto sobre o primordial tirado de nós, um “sem nome” que vai da nossa psique de criança à extração da mais-valia absoluta. Um “sem nome” com “quando”: o tempo de vida de bilhões de pessoas do gênero feminino no mundo.

O capitalismo transforma a atividade mais importante do ser – a socialização, o cuidado, os usos vitais – em degradação superexploratória de um exército infindo de mães precárias – desempregadas, faxineiras, mantenedoras de toda espécie de infraestrutura social.

A série é sobre uma jovem mãe da “white-trash” (a decadente classe trabalhadora branca norte-americana), que busca sobreviver, despossuída de qualquer meio material e espiritual; em aparência, tudo lhe foi tomado pela violência. A sequência narra – num contexto específico que poderia ser tantos outros – a trajetória de expropriações que erodem histórias pessoais de mulheres e que tramam uma condição social genérica.

Um rosto sem descrição, de horror surdo, existe por trás da máscara da patroa, da assistência, do judiciário, do pai, do marido. O capital lança mão dessas personificações da violência porque precisa sistematicamente enterrar a expectativa de viver. O “neocortéx” do controle sobre a reprodução crítica da vida sob o comando do dinheiro é a subjugação das mulheres proletárias. Afinal, são elas as portadoras da condição mais primordial do proletariado: a prole.

É desta condenação psicossocial que padece a mãe jovem proletária da trama, marcada pela disjuntiva subjetiva entre nascer amando incondicionalmente aqueles que deveriam nos proteger quando somos seres indefesos e sofrer uma vida inversa, agredida e talhada pela violência, com contornos frequentemente hereditários.

A recusa veemente de Heleieth Saffioti em interpretar a violência contra as mulheres sob a chave reificadora da “vitimização” cabe muito bem na narração. Não há nada de passivo na saga da moça franzina e emudecida. Sua vida misteriosamente insiste e há uma inteireza hipnótica no seu caminho: uma integridade no seu cuidado incontinente de mãe. Não se trata de qualquer romantismo maternal ideológico; é uma persistência de carne e osso, de uma mortal pela vida, pela comida, pelo banho, pela inflamação no ouvido, pelas histórias, pela memória, pelo amor da sua menininha de três anos.

O capitalismo transforma a atividade mais importante do ser – a socialização, o cuidado, os usos vitais – em degradação superexploratória de um exército infindo de mães precárias – desempregadas, faxineiras, mantenedoras de toda espécie de infraestrutura social.

Maid sugere que o dilema da reprodução tem a ver com a oposição interna entre a degradação social em curso e a possibilidade de um outro modo de produção da vida humana. Entre a solidão materna movida a baixos salários e a teima incessante pelo afeto, que vibra de algum lugar escondido.

Em Maid, a vida é invisível, precisa ser proibida, mas tem uma mãe que insiste.

 

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