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COLUNISTAS

Censura e desmonte: os ataques neofascistas na educação

Verônica Freitas, do Rio de Janeiro (RJ)

“Estou vivendo como um mero mortal profissional
Percebendo que às vezes não dá pra ser didático
Tendo que quebrar o tabu e os costumes frágeis das crenças limitantes
Mesmo pisando firme em chão de giz
De dentro pra fora da escola é fácil aderir a uma ética e uma ótica
Presa em uma enciclopédia de ilusões bem selecionadas
E contadas só por quem vence
Pois acredito que até o próprio Cristo era
Um pouco mais crítico em relação a tudo isso
E o que as crianças estão pensando?”

Exu nas Escolas, música de Kiko Dinucci e Edgar, cantada por Elza Soares

 

Este dia do professor, no ano do centenário de Paulo Freire, nos convida a refletir sobre os desafios para a garantia do acesso à educação, e para seu avanço enquanto ferramenta a serviço da transformação social. No entanto, no lugar de avanços na área, em suas múltiplas expressões, passamos por diversos ataques no Brasil nos últimos anos, intensificados no governo Temer e aprofundados com a ascensão de Jair Bolsonaro. Diante disso, seguindo nosso mestre, é preciso ter esperança, do verbo esperançar, e para isso superar a passividade coletiva, na construção de um novo mundo a ser erguido por nossas próprias mãos.  

Patrono da educação brasileira, Freire nos ensinou o quanto o ensino que ignora a dialética do conhecimento é limitado. Partir das vivências dos educandos é, afinal, uma proposta pedagógica muito mais efetiva. E para formar os homens e mulheres que vão agir pela mudança radical da realidade, a didática socialmente comprometida é um instrumento fundamental. Dessa forma, para os socialistas a formação das novas gerações é tema central. Além dos embates das lutas cotidianas, a questão gerou potentes debates nos processos revolucionários, como aqueles realizados por Vygotsky e Makarenko. Os retrocessos do stalinismo, entretanto, abalaram as profundas conquistas da revolução russa, mas não calaram suas reflexões, que seguem ecoando como um legado fundamental. Em diálogo com esses avanços, Paulo Freire se tornou também imprescindível. 

Apesar de tais avanços históricos, vivemos hoje um momento defensivo. De todo modo, o avanço programático no tema, tendo em vista a construção de novas sínteses e práticas, segue como um desafio para os revolucionários do nosso tempo. Junto com isso vem a necessidade do enfrentamento aos inúmeros ataques da extrema direita no poder, bem como os agentes da direita tradicional e da burguesia. Entre as muitas arenas dessa disputa, a educação ocupa papel central.        

Ataques conservadores na educação em todo o mundo 

Os ataques na educação fazem parte da agenda conservadora internacional. O combate ao chamado “marxismo cultural” caminha junto com uma plataforma reacionária no ensino das novas gerações e daqueles que já se encontram em fase produtiva. E entre suas múltiplas expressões, o tema da manutenção dos valores patriarcais está entre os preferidos da direita global. 

Assim, a “ideologia de gênero” foi uma invenção com origem no catolicismo fundamentalista, mas apropriada por conservadores de diversas matizes, para frear avanços do debate de gênero e sexualidade na educação.

Nesse contexto, a cruzada contra a chamada “ideologia de gênero” começou pelo reacionarismo da Igreja Católica. Seu primeiro registro data de 1998, em uma nota emitida pela Conferência Episcopal do Peru, intitulada “Ideologia de gênero: seus perigos e alcances”. O evento reunia bispos do país, em uma tradição mundial do catolicismo. Em seguida, no ano 2000, a expressão foi usada em um documento da Cúria Romana, na publicação “Família, Matrimônio e União de Fato”, do Conselho Pontifício para a Família, e em 2003 a Igreja Católica elaborou o tema no texto “Lexicon: termos ambíguos e discutidos sobre família, vida e questões éticas”, se posicionando pelo primado da família na educação sexual, em detrimento da escola, e sobre o feminismo como uma ameaça. 

Assim, a “ideologia de gênero” foi uma invenção com origem no catolicismo fundamentalista, mas apropriada por conservadores de diversas matizes, para frear avanços do debate de gênero e sexualidade na educação. Por sua vez, especialistas de múltiplas áreas reforçam a importância de debater esses temas no ensino básico, sendo um passo fundamental para a superação do machismo e lgbtfobia, na educação sexual para prevenção de doenças e gravidez indesejada, bem como para combater a violência contra crianças e adolescentes. 

O termo ficou famoso no Brasil no episódio em que o MEC tentou incluir a educação sexual e o combate a discriminações no Plano Nacional de Educação (PNE), em 2014. Após um longo debate, o PNE foi aprovado sem fazer menção a gênero e ao tema da orientação sexual. Nas eleições de 2018, o assunto voltou à tona quando Bolsonaro (então PSL) e seus aliados tentaram descredibilizar Haddad (PT), afirmando que ele seria responsável pela tentativa de implementar o “Kit Gay”. O episódio se tornou uma das principais fake news daquela disputa eleitoral. 

Com a vitória da extrema direita, foi reforçada a ideia infeliz de que tais assuntos devem se limitar à família. Este discurso fortalece uma lógica perversa de silenciar e manter na ignorância temas centrais para o desenvolvimento humano, como é o caso da recorrência da violência sexual em ambientes domésticos. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a maior parte dos estupros registrados no Brasil em 2020 contra pessoas até 19 anos ocorreram na faixa entre 10 e 13 anos, dos quais 64,9% dentro de casa, de um total de 46.289 registros. Destas, ao menos 5.140 vítimas tinham entre 0 e 4 anos, sendo esta a maior incidência de estupros na própria residência, com 70,4% dos crimes. São dados assustadores. Como querer que o tema da sexualidade seja tratado apenas em casa, quando é justamente nela que a maioria das violências acontecem? Assim, além de ser uma pauta da esquerda e do feminismo, desde 1995 a ONU se posiciona pela importância do debate de gênero na educação, com a aprovação na Conferência Sobre as Mulheres, realizada em Pequim, de uma orientação para que os governos incorporassem os estudos sobre gênero em seus programas.  

No Brasil, o fenômeno do combate à “ideologia de gênero” caminhou junto com o “Escola sem partido”. Este surgiu como o Movimento Escola Sem Partido, fundado em 2004 por um procurador de São Paulo, Miguel Nagib. Ele propunha combater a instrumentalização do ensino para fins ideológicos, propaganda partidária e seus ideais. Essas propostas permaneceram sem força, até que em 2014, o então Deputado Estadual do Rio de Janeiro Flávio Bolsonaro (PP), convidou Nagib para escrever uma iniciativa no estado, com a proposição do Projeto de Lei 2974/2014. No mesmo ano, Carlos Bolsonaro (PP), então vereador do Rio, lançou uma proposta de mesmo teor, o PL 864/2014. O procurador disponibilizou no site do movimento os dois projetos, que serviram de inspiração para iniciativas em Câmaras Municiais e Assembleias Legislativas em todo Brasil. Em âmbito federal, tramita o PL 867/2015 e outros PLs com propostas inspiradas neste ideário.   

Como desdobramento, em 2015, a cidade de Santa Cruz do Monte Castelo (PR) tornou-se o único município do país a adotar a legislação, que foi aprovada também em Campo Grande (MS) e em Picuí (PB), mas vetadas pelos respectivos executivos, após protestos. A lei também chegou a ser aprovada em Alagoas, mas foi contestada pela AGU por considerar o tema de competência da União, com base no artigo 206 da Constituição, que assegura a pluralidade de ideias no ensino. O que se percebe é que o Escola Sem Partido pretende esvaziar o potencial da educação, censurando a busca pelo conhecimento crítico. Essa disputa se revela como a imposição não de uma escola “sem partido”, mas sim a promoção de um partido único, do conservadorismo patriarcal, lgbtfóbico, racista e elitista. É a luta por um ensino estéril, para desarmar a população contra um sistema cruel.  

Ampliação dos retrocessos com a vitória da extrema direita

A vitória de Bolsonaro ampliou a disputa na arena da educação. Com sua ascensão e a nomeação de Weintraub vivemos a chamada “Tsunami da Educação”, em 2019, com manifestações massivas em todo o país. Com a mobilização de mais de um milhão de pessoas, estudantes e movimentos se levantaram contra a proposta do Future-se, de privatização da universidade pública, pela valorização do ensino e a resistência ao neofascismo. 

Esses ataques fazem parte de um projeto de poder. Não à toa, a irmã de Paulo Guedes é a vice-presidente da Associação Nacional de Universidades Privadas. Assim, enquanto dissemina pelo país as escolas cívico-militares, Bolsonaro e seu governo promovem ataques sucessivos à educação pública e à ciência. Seu negacionismo ao acúmulo histórico de conhecimento é generalizado, como a anticiência diante da pandemia e da emergência climática, e o fundamentalismo religioso protagonizado por Damares Alves. Além disso, os cortes nas áreas de pesquisa vêm ocorrendo de forma sucessiva, como foi a recente aprovação no Congresso do corte de 92% das verbas da ciência, com cerca de R$ 690 milhões realocados a pedido do Ministério da Economia.

No tema das medidas com relação à pandemia, é notório também a tentativa de ampliar as modalidades de educação à distância. Isso já vinha se fortalecendo nos últimos anos, de forma mundial, com pressões de gigantes como o Google, e com o isolamento encontrou-se um terreno fértil para a tentativa de consolidar formas precarizadas de ensino como uma medida permanente. Nesse sentido, destaca-se que em situações excepcionais as modalidades virtuais podem ser um caminho importante, mas como regra geral amplia a exploração de educadores, especialmente as mulheres com a sobreposição do trabalho profissional e doméstico, suprime o espaço de convívio da comunidade escolar, prejudica a interação durante as aulas e amplia ainda mais a desigualdade, tendo em vista a falta de acesso a equipamentos e internet. 

Com a chegada de um neofascismo ao poder, os ataques nos aparelhos de hegemonia se intensificaram. Além do já famoso Escola Sem Partido e a cruzada contra a “ideologia de gênero” supracitados, uma novidade foi a organização das famílias do agronegócio para incidir na educação. Assim, recentemente foi criado o movimento conhecido como “Mães do Agro”. Formado por mulheres de famílias latifundiárias, estas se articulam nacionalmente para censurar materiais didáticos. Atacam os conteúdos referentes a direitos de indígenas e quilombolas, bem como tentam passar uma visão positiva do agronegócio para as novas gerações. Uma das mudanças sugeridas pelo grupo, por exemplo, é trocar a palavra “agrotóxico” pelo eufemismo de “defensivos agrícolas”. 

É tempo de esperançar

Apesar dos inúmeros retrocessos que vivemos nos últimos anos, intensificados desde o golpe de 2016, e aprofundados com a vitória do neofascista Jair Bolsonaro, não é tempo para um pessimismo paralisante. Pelo contrário, esperançar segue como uma chama necessária. Do contrário, podemos cair em uma espiral de retrocessos, que só acumulam derrotas em uma realidade profundamente violenta e excludente, como a que vivemos em nosso capitalismo marginal.   

Assim, precisamos fazer valer conquistas já realizadas, como a Lei 10.639/03, que obriga o ensino da história e cultura afro-brasileira. E urge irmos além. Se o conservadorismo se aprofundou nos últimos anos usando da fé de inúmeras famílias, das redes sociais com a propagação das fake news, da frustração de setores decadentes da classe média, a educação é um dos espaços de disputa basilares para nos reerguermos. Não se trata de acreditar que uma mudança viria tão somente pela educação, mas de enxergar essa esfera fundamental da vida como mais um campo de batalha, que precisa ser travado em conjunto com as outras disputas da classe trabalhadora em movimento – como nos ensinou Paulo Freire. Elaborar e praticar uma educação libertadora, em conjunto com as demais lutas sociais, se impõe, afinal, como uma urgência do nosso tempo.