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BRASIL

A cor sem ilusões (ou Quem são os identitários, Magnoli?)

Virgínia Fontes, Douglas Barros e Felipe Demier*

Harro Harring, Brasilianaiconográfica.art.br

Escrava recebendo punição. Harro Harring, 1840. Brasilianaiconografica.art.br

O que o deletério artigo publicado no último sábado, 09, na folha de Demétrio Magnoli faz é simplesmente dizer que a escravidão negra moderna nada tem a ver com o racismo!. Desse modo, pela pena de Magnoli, a “economia” acaba por se tornar imediatamente algo necessário e… limpo, promovendo assim propositalmente o esquecimento de que as desigualdades promovidas por tal ‘economia’ sempre geram racismos e formas de opressão (além de negros, indígenas, mulheres, estrangeiros, etc.), e que a escravidão foi a pior dessas formas, de uma massividade e brutalidade quase incomparáveis.
O artigo negacionista de Magnoli ignora as múltiplas determinações que organizam sentido numa experiência histórica, a “unidade do diverso” que possibilita o alcance da verdade que organiza as relações humanas num determinado período – ou, em léxico hegeliano, “o princípio da identidade da identidade com a não identidade”.
A análise do colunista matutino sobre a escravidão moderna separa (coagula) a dimensão econômica – certamente central – da dimensão étnico-racial, sem a qual o próprio sistema econômico escravagista não poderia se sustentar. Pior: tal cisão antidialética entre as esferas é anacronicamente aplicada a um período histórico em que nem mesmo a tal autonomia relativa entre “economia” e as demais esferas – proporcionada pela emancipação jurídica dos produtores – existia de forma plena. Na verdade, quando da origem e desenvolvimento da escravidão moderna, esta estava apenas em seus primeiros momentos, por meio da corrosão das relações feudais, que exigiria ainda muitas lutas sociais para permitir a quebra das diferenças estamentais/religiosas/étnicas (“naturais”) entre os sujeitos da esfera produtiva.
A análise do colunista matutino sobre a escravidão moderna separa (coagula) a dimensão econômica – certamente central – da dimensão étnico-racial, sem a qual o próprio sistema econômico escravagista não poderia se sustentar.
Ademais, vale lembrar que tal separação relativa entre a “economia” e as demais esferas da vida social está estreitamente ligada ao avanço do capitalismo e à proteção à propriedade do capital de qualquer interferência política impulsionada pelas massas trabalhadoras. Mesmo então a escravidão nas colônias não apareceu senão como o seu avesso, e, naqueles tempos esclarecidos de negação das diferenças naturais entre os seres humanos, o racismo grassaria justamente por ser fundamental agora uma nova justificativa ideológica para tal opressão entre os seres humanos. Se no primeiro momento isso ocorreu pela negação do estatuto plenamente humano do escravizado (daí tanto a noção de ausência de “alma” dos cativos, como também o fato de as legislações, com variações temporais e espaciais, trabalharem com a ideia do “escravo-coisa”, como um “bem semovente”, isto é, mercadoria), no segundo momento agiu pela afirmação de que no mundo não europeu residiriam povos ainda em um estágio infantil, pré-civilizado, o que imputaria ao colonialismo – e, por conseguinte, à escravidão – uma dimensão educadora e civilizatória.

Magnoli faz assim as vezes de pastor de um falso liberalismo para o qual o nascimento do capitalismo teria sido supostamente, como o nascimento da filosofia, um milagre. De nada valeu o ouro das minas que singravam sobre o lombo do escravo e, por transações escusas, chegavam às mãos da coroa inglesa para patrocinar o progresso da indústria. Como racialista amigo, ignora a noção da América como vasto império do Diabo, lembrado por Galeano, e da missão contra as heresias dos bugres e do negro-corso que operacionalizavam o significante racial como uma “autorização” de domínio e organização da violência. Significante que com o advento da república será operacionalizado para organizar o mercado de trabalho brasileiro em bases racistas que permanecem até hoje intocadas.

Talvez não seja escusado assinalar que a comparação da pretérita escravidão interna africana com o sentido que esta adquiriu com o tráfico internacional de escravizados é tão insustentável que há tempos já foi rejeitada por historiadores de várias vertentes epistemológicas, e uma simples consulta a clássicos como os escritos por Gorender e Ciro Cardoso, além de obras sobre a história do continente africano, resolveria o problema – se é, claro, que o autor queria mesmo resolvê-lo.

Além do mais, com os malabarismos próprios ao crente que prefere ignorar a lidar de frente com a verdade de sua própria ideologia, Magnoli finge não saber que a construção identitária do racismo e da ideia de raça são frutos do sistema econômico que promove segregação e diariamente a identificação dos corpos racializados. Ignora, portanto, que foi sobretudo a Europa que organizou as identidades e os lugares próprios a cada uma delas no espaço algébrico do poder assentado na valorização do valor capitalista. Por fingir que não sabe disso, pouco lhe importa a questão da identidade como processo de desnudamento subjetivo daqueles que foram condenados a não se ver como sujeitos do processo histórico graças à ideologia racista atual.

O combate a um suposto “identitarismo racialista” levado por Magnoli nada mais é do que a defesa corporativa dos interesses dos proprietários – de esmagadora maioria branca – do capital, escamoteada através de um liberalismo rebaixado que esqueceu até o princípio da igualdade humana, caro às suas origens. Que haja pós-modernismos e formas teóricas ecléticas na luta antirracista faz parte da construção de enfrentamentos a cada dia mais complexos. Não obstante, precisamos ter claro que “identitarismo” é similar a “corporativismo” (conforme assinalou o cientista político Douglas Alves), isto é, a defesa de interesses e temas de certos grupos específicos. A diferença entre o corporativismo proprietário, que pretende se vestir de manto falsamente universal, e as lutas das organizações de trabalhadores, de negros e negras contra o racismo, de mulheres, de indígenas, das lutas ambientais, etc., é que estas estão plasmadas em horizonte efetivamente universalista e igualitarista, o que as leva a integrar o caudal crescente do enfrentamento ao capital. Por isso o horror de Magnoli e por isso sua desqualificação como meramente “identitárias”. Ele teme exatamente a importância e a universalidade real da luta antirracista.

*Felipe Demier é historiador, professor da UERJ e colunista do EOL
*Douglas Barros filósofo e doutor pela UNIFESP
*Virgínia Fontes é historiadora e pesquisadora da UFF