A análise do colunista matutino sobre a escravidão moderna separa (coagula) a dimensão econômica – certamente central – da dimensão étnico-racial, sem a qual o próprio sistema econômico escravagista não poderia se sustentar.
Magnoli faz assim as vezes de pastor de um falso liberalismo para o qual o nascimento do capitalismo teria sido supostamente, como o nascimento da filosofia, um milagre. De nada valeu o ouro das minas que singravam sobre o lombo do escravo e, por transações escusas, chegavam às mãos da coroa inglesa para patrocinar o progresso da indústria. Como racialista amigo, ignora a noção da América como vasto império do Diabo, lembrado por Galeano, e da missão contra as heresias dos bugres e do negro-corso que operacionalizavam o significante racial como uma “autorização” de domínio e organização da violência. Significante que com o advento da república será operacionalizado para organizar o mercado de trabalho brasileiro em bases racistas que permanecem até hoje intocadas.
Talvez não seja escusado assinalar que a comparação da pretérita escravidão interna africana com o sentido que esta adquiriu com o tráfico internacional de escravizados é tão insustentável que há tempos já foi rejeitada por historiadores de várias vertentes epistemológicas, e uma simples consulta a clássicos como os escritos por Gorender e Ciro Cardoso, além de obras sobre a história do continente africano, resolveria o problema – se é, claro, que o autor queria mesmo resolvê-lo.
Além do mais, com os malabarismos próprios ao crente que prefere ignorar a lidar de frente com a verdade de sua própria ideologia, Magnoli finge não saber que a construção identitária do racismo e da ideia de raça são frutos do sistema econômico que promove segregação e diariamente a identificação dos corpos racializados. Ignora, portanto, que foi sobretudo a Europa que organizou as identidades e os lugares próprios a cada uma delas no espaço algébrico do poder assentado na valorização do valor capitalista. Por fingir que não sabe disso, pouco lhe importa a questão da identidade como processo de desnudamento subjetivo daqueles que foram condenados a não se ver como sujeitos do processo histórico graças à ideologia racista atual.
O combate a um suposto “identitarismo racialista” levado por Magnoli nada mais é do que a defesa corporativa dos interesses dos proprietários – de esmagadora maioria branca – do capital, escamoteada através de um liberalismo rebaixado que esqueceu até o princípio da igualdade humana, caro às suas origens. Que haja pós-modernismos e formas teóricas ecléticas na luta antirracista faz parte da construção de enfrentamentos a cada dia mais complexos. Não obstante, precisamos ter claro que “identitarismo” é similar a “corporativismo” (conforme assinalou o cientista político Douglas Alves), isto é, a defesa de interesses e temas de certos grupos específicos. A diferença entre o corporativismo proprietário, que pretende se vestir de manto falsamente universal, e as lutas das organizações de trabalhadores, de negros e negras contra o racismo, de mulheres, de indígenas, das lutas ambientais, etc., é que estas estão plasmadas em horizonte efetivamente universalista e igualitarista, o que as leva a integrar o caudal crescente do enfrentamento ao capital. Por isso o horror de Magnoli e por isso sua desqualificação como meramente “identitárias”. Ele teme exatamente a importância e a universalidade real da luta antirracista.
*Felipe Demier é historiador, professor da UERJ e colunista do EOL
*Douglas Barros filósofo e doutor pela UNIFESP
*Virgínia Fontes é historiadora e pesquisadora da UFF
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